Mulheres, não se enganem: rehab para quem cometeu violência doméstica é boa notícia

Lei que obriga agressores a receber atendimento psicossocial é vitória em meio à destruição de projetos contra violência doméstica no governo Bolsonaro.

Mulheres, não se enganem: rehab para quem cometeu violência doméstica é boa notícia

Passar por centros de reabilitação e receber atendimento psicossocial: é isso que os agressores enquadrados na Lei Maria da Penha serão obrigados a fazer se um projeto aprovado pelo Senado em 6 de fevereiro for colocado em prática. “Espera aí, eles ficam em casa com a vítima, só fazendo cursinho????”, revoltou-se uma comentarista. “Não deveria ser para a vítima física e moralmente ferida?!”, questionou outra. Transformado em “absurdo” nas redes, o projeto é, na verdade, uma grande vitória.

É preciso deixar claro, em primeiro lugar, que as imposições do projeto não vão acabar com a punição criminal. Como a obrigação de afastar-se da vítima, elas serão uma forma de medida protetiva determinada por juízes enquanto os processos correm na justiça. Então, não, elas não farão os agressores ficarem em casa com a mulher. O que elas farão é acrescentar uma outra camada à forma como lidamos com esses homens.

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Desde que foi aprovada em 2006, a Lei Maria da Penha – considerada pela ONU uma das três melhores do mundo no enfrentamento à violência doméstica – prevê a criação de centros de reeducação para agressores domésticos. Se isso praticamente não saiu do papel, não é pela desimportância da medida, mas pelo foco colocado na punição ao se executar a lei. A reabilitação dos agressores é considerada essencial por especialistas que estudam violência doméstica – e surte resultados. O projeto Grupo Reflexivo de Homens, que foi criado Ministério Público do Rio Grande do Norte e reúne acusados em dez encontros de duas horas para discutir machismo, violência e controle da raiva, por exemplo, atendeu 800 acusados desde 2012. Deles, nenhum voltou a cometer abusos contra mulheres.

O sucesso dessas iniciativas e a defesa delas por quem trabalha com violência doméstica tem uma explicação simples. Esse tipo de abuso tem suas raízes em crenças e hábitos culturais muito fortes. Quantas vezes já ouvimos falar de um homem não permite que sua namorada saia com roupas curtas, que proíbe certos comportamentos ou amizades, ou que obriga sua namorada ou esposa a transar – ou, usando o termo correto, que estupra sua companheira?

Se a memória falhar, os números podem te ajudar. Uma pesquisa nacional de 2015 mostrou que quase metade das jovens de classes C, D e E de 14 a 24 anos já foram estupradas por parceiros. Outra, divulgada em 2013, revelou que 85% dos homens acham “inaceitável” a companheira ficar bêbada e 46%, que ela saia com roupas justas e decotadas.

A realidade incômoda é que agressores não são monstros nem exceções – são homens comuns.

Esses são exemplos cotidianos que demonstram o sentimento de posse e de diminuição do valor da mulher por parte dos homens. São dois elementos presentes em todos os casos de violência doméstica. Os agressores veem suas parceiras como propriedades e acreditam que elas têm obrigação de obedecer suas regras e vontades. O agressor faz uso da manipulação para tentar impor seus desejos e, quando a vítima não atende a suas expectativas, a violência psicológica, sexual ou física entra em cena.

Por mais confortável que seja para nós, enquanto sociedade, acreditar que os homens que agem dessa forma são monstros, exceções que podem ser contidas com a punição penal, essa não é a realidade. Mais da metade de dos homens brasileiros de todas as classes sociais já cometeram algum tipo de violência contra uma mulher. É consenso entre especialistas que o agressor é um homem comum. É seu vizinho. Seu antigo colega de escola. O cara que senta do seu lado no trabalho e dá flores para a namorada no dia da mulher e compartilha #NãoÉNão no carnaval.

Nenhum homem nasce com um lado maligno que o deixa propenso a abusar de uma parceira. Vale lembrar, por exemplo, que muitos agressores cresceram vendo suas mães sendo agredidas por seus pais. Isso de forma alguma justifica o abuso que eles próprios cometem. Mas o atendimento psicossocial é fundamental para que possam aprender a lidar de forma não-violenta com um possível histórico pessoal de violência e com sentimentos de raiva ou possessividade.

Se a violência é aprendida, ela pode, em muitos casos ser desaprendida. E é essa a importância do projeto. Ele ajuda a prevenir que os agressores – que, mesmo quando encarcerados, voltam ao convívio da sociedade em algum momento – cometam abusos novamente.

E o dinheiro para as mulheres?

Para ser colocado em prática, o projeto ainda precisa passar pelo Bolsonaro, que tem poder de veto. Coincidentemente, o presidente se pronunciou sobre a violência contra as mulheres na véspera da votação no Senado com as seguintes palavras: “É postura, mudança de comportamento que temos que ter no Brasil, é conscientização”. Seremos obrigadas a concordar com Bolsonaro? Finalmente o convencemos de que existe machismo no Brasil e que isso tem que mudar?

Como você deve estar imaginando, não. A afirmação do dia 5 de fevereiro não passa de uma malandragem: Bolsonaro usou uma reivindicação histórica de quem luta contra a violência doméstica, subvertendo seu significado, para justificar os cortes fez que fez no combate a esse problema. “Não é dinheiro, recurso” que importa, ele disse. “É postura”.

Em 2015, o governo federal deu R$ 34 milhões para o enfrentamento à violência contra a mulher. Já em 2019, deu meros R$ 194 mil. Parece um pouco abstrato? Imagine então que, em 2015, você recebesse R$ 1 mil de salário. Depois dos cortes de Bolsonaro, você passaria a receber R$ 5,70. Foi isso que ele defendeu em seu discurso.

Por mais esdrúxulo que seria esse seu salário imaginário, ele ainda seria maior do que a verba recebida pelo principal programa federal voltado para vítimas de violência doméstica e sexual no governo Bolsonaro. As Casas da Mulher Brasileira – que reúnem num mesmo local serviços especializados como assistência psicossocial, delegacia, juizado, ministério público e defensoria pública – não receberam sequer R$ 1 neste mandato.

O comportamento da sociedade em geral e, principalmente, dos homens agressores precisa mudar sim. Mas essa mudança não acontece com um passe de mágica. Ela depende de políticas públicas. E políticas públicas, para sair do papel, precisam de dinheiro. Então, não é por conta desse novo projeto de lei que as sobreviventes de violência doméstica vão ficar sem atendimento nos centros que existem para acolhê-las e que muitos deles estão definhando. É porque o governo Bolsonaro não se importa.

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