“Os palestinos estão vivendo em um sistema de apartheid muito pior do que o que enfrentamos na África do Sul”, afirmou Mandla Mandela, neto de Nelson Mandela, em entrevista concedida ao Intercept Brasil sobre a situação na Faixa de Gaza. Ele criticou também a rotulação de ativistas humanitários em apoio à Palestina como “terroristas”, chamando a narrativa de uma forma de criminalizar a solidariedade internacional.
Mandela, representante da África do Sul na Flotilha Global Sumud, missão humanitária lançada em 31 de agosto para levar ajuda à Faixa de Gaza, disse que decidiu embarcar na iniciativa como uma extensão de seu compromisso histórico com os direitos humanos e a justiça social. “É impossível ficar indiferente quando um povo sofre sob ocupação e bloqueio”, declarou.
Mandla Mandela é ativista e político, tendo sido eleito em 2009 para o Parlamento da África do Sul pelo Congresso Nacional Africano (ANC). Ele também atua como chefe tradicional da vila de Mvezo, local de nascimento de seu avô, Nelson Mandela.
Intercept Brasil – Sr. Nkosi, você embarca conosco na Flotilha Global Sumud não apenas como ser humano, mas como pessoa que carrega o legado do seu avô. Poderia nos contar um pouco mais sobre a decisão de vir se juntar a nós nessa missão?
Mandla Mandela – Primeiro, Giovanna, a nossa luta está enlaçada com a luta do povo palestino. E vou começar falando como sul-africano, de uma perspectiva africana. A África sofreu o colonialismo além de precisar lutar contra alguns dos mais brutais regimes opressores no continente africano. Assim, sabemos como é e o que significa viver sob ocupação e sob um violento regime opressor, da África do Sul, na ponta sul da África, até a Tunísia, a ponta norte da África.
Como africanos, estamos unidos para garantir que tentaremos combater qualquer forma de opressão. Mas tem sido um capítulo importante para mim, em especial, embarcar nesta jornada, porque em 27 de fevereiro de 1962, meu avô esteve bem aqui, neste litoral da Tunísia, para mobilizar solidariedade na nossa luta pela libertação. Ele viajou por 15 países do continente africano, incluindo a Argélia, onde recebeu treinamento militar.
Grande parte do nosso povo na África do Sul entendia muito bem que não conseguiríamos obter liberdade sozinhos, e precisávamos mobilizar a região do Sul da África, o continente africano, e toda a comunidade internacional. Foi por isso que ele embarcou nessa campanha africana, que se concluiu em Londres.
Nossa luta está entrelaçada como a de muitos movimentos de libertação, como o da Palestina.
A solidariedade internacional é um pilar muito importante da luta. Então, quando soubemos que a Flotilha Global Sumud estava partindo de Barcelona, vindo se juntar ao restante dos barcos em Túnis, na Tunísia, foi importante para nós enfatizar que nós, como africanos, estamos participando da Flotilha Global Sumud, e vamos navegar saindo de um porto africano. O que também importa para nós é falar da união como africanos, porque nenhum país pode obter a libertação por conta própria.
É preciso confiar em outras lutas. Estamos orgulhosos de estar aqui na Tunísia, especialmente pelo papel que os tunisianos desempenham nos movimentos de libertação em todo o continente. Talvez você saiba que, em 1982, a OLP em Beirute estava sob pressão e sendo questionada, eles fugiram e encontraram abrigo aqui na Tunísia, foram acolhidos pelos tunisianos.
É por isso que dizemos que, como sul-africanos, nossa luta está entrelaçada como a de muitos movimentos de libertação, como o da Palestina. Estamos felizes de ter recebido uma acolhida calorosa aqui na Tunísia, e de como fomos recebidos como a Flotilha Global Sumud na costa da Tunísia.
Sr. Nkosi, essa coletividade que você menciona no seu discurso foi por muito anos, no tempo do seu avô, considerada pelos Departamentos de Estado, como o Departamento de Estado dos EUA, como terrorismo.
Você acha que daqui a alguns anos será a mesma coisa com a luta palestina, com a resistência armada palestina, que começarão a reconhecer que, de fato, eram combatentes da liberdade, e não, terroristas, como eles insistem em classificar as pessoas agora?
Bom, primeiro é preciso entender qual é o uso da palavra terrorista. Meu avô foi considerado terrorista simplesmente por que nos mostrou, como sul-africanos, que tínhamos duas opções: nos submeter e viver sob ocupação, ou resistir. Nós escolhemos resistir. E ele criou controvérsia com a Lança da Nação, que era o braço militar armado do Congresso Nacional Africano.
Por isso foi importante para ele deixar o país e mobilizar o continente africano e a comunidade internacional para apoiarem nossa causa. Ele recebeu, como eu disse, treinamento militar na Argélia com as FLN. Ele conheceu as lideranças argelinas, como Ben Bella, Boudiaf e Boumedienne, que tiveram um papel instrumental na nossa luta pela libertação. Mas ele também foi detido, e preso em prisão perpétua.
Seu nome se tornou sinônimo e ficou interligado com as lutas em todo o mundo, como o camarada presidente Yasser Arafat, na Palestina, Muammar Gaddafi, na Líbia, camarada presidente Fidel Castro, em Cuba. Dessa forma, é por isso que ele era visto e considerado um terrorista. Mas muitos de nós nos movimentos de libertação sabemos que o terrorista de uns é o combatente da liberdade de outros.
Por isso, Madiba precisa ser conhecido como um herói da nossa luta pela libertação. Ele é um ícone mundial porque derrotou não apenas o regime do apartheid, mas seus aliados, como o estado de apartheid de Israel. Nunca esqueceremos o papel do Reino Unido durante o governo de Margaret Thatcher, nem dos EUA, com Ronald Reagan e seu governo, como eles apoiaram o regime do apartheid. Então ele não apenas derrotou o apartheid, mas derrotou as potências ocidentais e o imperialismo. Para nós, ele continuará sendo visto como herói da nossa luta pela libertação.
Sr. Nkosi, e da mesma forma que o seu avô foi pioneiro na luta contra o apartheid, agora a África do Sul está à frente da busca por responsabilização internacional para Israel, pelos crimes cometidos contra os palestinos, especificamente na Faixa de Gaza.
Da mesma forma que a comunidade internacional reluta em chamar isso pelo nome, chamar de genocídio, há muitas décadas a comunidade internacional reluta em chamar de apartheid, reluta em chamar a ocupação, o colonialismo dos assentamentos, a ocupação na Cisjordânia e em outros territórios ocupados, de apartheid.
Você poderia nos dar sua perspectiva de por que os territórios ocupados vivem o que podemos chamar de apartheid?
Para muitos de nós, sul-africanos, que estivemos no estado de apartheid de Israel –– e eu realmente nunca quero pensar nos territórios ocupados da Palestina dessa forma, mas para fins de compreensão – retornamos de lá com uma conclusão: que os palestinos estão vivendo uma forma de apartheid muito pior do que nós jamais vivemos. Quando visitamos a Cisjordânia, em especial, lembramos dos estados TBVC, na África do Sul, os bantustões, que são Transkei, Venda, Boputatsuana, e Ciskei.
Mas em relação ao Oriente Médio, os territórios ocupados nos lembram principalmente Ciskei, que tem um padrão espalhado de terras por toda a área. Quando você viaja, e eu tive oportunidade de viajar, do vale do Rio Jordão para Jericó, até Ramallah, Belém, Jerusalém e Hebron, nessas áreas você vê postos de controle, e vê muros, onde os palestinos são proibidos de se locomover livremente. Tenho amigos que moram, por exemplo, em Belém, e nunca conseguiram ir a Jerusalém.
Está tudo entrelaçado, porque estamos combatendo um sistema, que é o imperialismo ocidental.
Conheço palestinos que ainda precisam carregar documentos, para poderem chegar aos postos de controle e verem se serão aprovados para se locomoverem de uma parte a outra de suas próprias terras. Um amigo meu, que foi estudar na Espanha, e conheceu a namorada na Espanha, voltou para Jerusalém para se casar. Ele se casou sem a família da noiva, porque a família da noiva é de Gaza, e eles não podem ir à Cisjordânia. Depois de se casar, com a noiva, na Cisjordânia, ela não pode viajar para visitar sua família em Gaza, porque, se fizesse isso, ela nunca seria autorizada a voltar. É a isso que os palestinos estão submetidos.
E muitos evitam considerar isso como apartheid, porque o apartheid é um crime contra a humanidade. Muitos de nós, sul-africanos, sempre lembraremos do discurso proferido pelo presidente da Argélia, Boumédiène, quando ele declarou o apartheid como crime contra a humanidade. E isso é uma coisa que explica por que é evitado associar o apartheid na África do Sul com o apartheid em Israel, porque já se sabe que o apartheid é um crime contra a humanidade, então sempre será um tópico evitado. Mas o que a realidade diz ao vivo é que os palestinos estão vivendo em um sistema de apartheid muito pior do que nós vivemos como sul-africanos.
Para encerrar, estamos falando agora para o público brasileiro, que pode se sentir muito distante do que está acontecendo em Gaza agora. Então gostaria que nos dissesse, por que essa também é uma luta nossa como brasileiros? Por que essa também é uma luta nossa, como povo oprimido do Sul Global?
O mundo inteiro, a comunidade global, é um só. Minha luta é a do povo africano, é a da comunidade global. Está tudo entrelaçado, porque estamos combatendo um sistema, que é o imperialismo ocidental, que busca obter o domínio mundial. É irrelevante para eles se é a África do Sul, Angola, Brasil, Venezuela ou qualquer parte do mundo. E por isso nós, em especial o Sul Global, precisamos nos unir, trabalhar juntos, usar nossas vozes para falar em conjunto. Por isso digo a nossos camaradas, irmãos e irmãs no Brasil: a luta palestina depende de que todos se unam em torno dela, porque superar tudo isso significa que termos mais uma vez derrotado o imperialismo ocidental.
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No passado, conseguimos nos unir em torno do movimento antiapartheid, e muitos da comunidade global e da América Latina, inclusive o Brasil, apoiaram a campanha para libertar Nelson Mandela, apoiaram o fim do apartheid, e nós conseguimos isolar o apartheid da África do Sul. E isso foi de várias formas, devo ressaltar, com os boicotes esportivos, conseguimos isolar o apartheid na África do Sul de participar de qualquer esporte internacional.
Conseguimos, com o auxílio da comunidade global internacional, garantir que nenhuma fruta, produto agrícola ou navio proveniente do apartheid sul-africano chegasse ao litoral da comunidade internacional, e assim efetivamente isolamos o regime e causamos o seu fim. Nós, como coletivo, como comunidade global, quando nos unimos, somos fortes. Podemos derrotar o apartheid em Israel e tornar a libertação palestina, tão necessária, uma realidade.
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