Com “Escola Sem Partido” e reforma do ensino médio, estudantes vivem “ressaca” um ano após ocupações

Alunos que ocuparam seus colégios em 2016 se deparam com movimento reacionário formado pelos avanços do "Escola Sem Partido" e da reforma do ensino médio.

Estudantes do Colégio Pedro II, em Realengo, no Rio de Janeiro.

Um ano depois das ocupações em escolas de todo o país, a reforma do ensino médio foi aprovada e investimentos em educação foram cortados. Enquanto aqueles que viam a educação como uma mercadoria começam a recolher os lucros, os secundaristas que participaram das ocupações tendo como lema “Educação não é Mercadoria” hoje sofrem com uma dupla onda reacionária: dentro e fora das escolas.

O avanço da elite financeira sobre a educação e sobre a rede pública era um dos principais temores dos jovens que se apossaram das escolas em outubro de 2016. A “Primavera Secundarista” é lembrada pelos estudantes como um sopro de esperança que passou pelos colégios. Agora, eles relatam viver um momento de nostalgia e letargia — consequências da opressão policial autorizada pela justiça e do trator governista que os atropelou no Congresso, impondo mudanças sem sequer abrir canal para o diálogo.

“Nas ocupas, já se falava que o lucro vem acima de tudo, que o desmonte da educação pública interessava a quem queria criar mercado para a iniciativa privada”, conta Moreno de Mello, 18 anos, que participou de três ocupações em Brasília.

Ele lamenta que as manifestações não tenham reverberado como o esperado:

“Imediatamente após acabarem as ocupações, o movimento estudantil teve uma sobrevida bem importante. Mas, principalmente com as derrotas institucionais, houve uma depressão. A gente viu os atos se esvaziando aos poucos e as coisas passando no Congresso, foi frustrante. Hoje sinto a sociedade quase que conformada com a situação. E, da parte dos estudantes, a galera ficou cansada, porque desgasta muito, pelas repressões, gera um medo”.

A onda reacionária dentro das escolas

A volta à rotina, no início do ano letivo de 2017, muitas vezes veio acompanhada de regras ainda mais rígidas. O Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, por exemplo, endureceu a fiscalização do uniforme. A escola havia retirado a diferenciação de uniforme por gênero em setembro de 2016. Após as ocupações, no entanto, estudantes da unidade Realengo, na Zona Oeste do Rio, relatam que o colégio ficou ainda mais exigente do que antes. “Checam até o tamanho da sua meia e, se você não estiver nos conformes, não pode entrar”, relata Isabella Ferreira, 17 anos, aluna do 2º ano do ensino médio.

Os estudantes também contam que, apesar de sentirem uma maior abertura para o diálogo por parte da direção, o auditório que servia de principal ponto de reuniões durante as ocupações não está mais acessível. Larissa Coelho fala com tristeza dessa proibição de acesso a um lugar que tinha uma importância simbólica para o movimento do Pedro II de Realengo:

“Antes mesmo da ocupação, era como a sala da nossa casa, o nosso ponto de encontro. Só voltei ali duas vezes, cada parede me lembrava algo diferente. Mas não deixam mais a gente entrar, só os professores podem agendar a sala”.

“As mudanças foram de um ou outro professor”

Há casos parecidos em outros estados. Ana Julia Ribeiro, a adolescente que ficou famosa pelo discurso defendendo as ocupações na Assembleia Legislativa do Paraná, falou ao telefone com The Intercept Brasil. Ela admitiu que, no Colégio Estadual Senador Manoel Alencar Guimarães (CESMAG), em Curitiba, onde ainda estuda, as coisas não mudaram muito: “As mudanças foram de um ou outro professor que se identificou um pouco mais com a causa”.

A única transformação perceptível, conta a paranaense de 17 anos, foi o aumento no número de alunos: “Uma escola particular da área já mudou o modelo de ensino para o da reforma, e o pessoal está indo para o meu colégio. Chegaram a abrir uma turma a mais”.

Ela conta que hoje viaja muito para participar de inúmeras mesas de debate, mas desmente afirmações de que estaria filiada ao PT: “Não tenho nenhum vínculo partidário, minha preocupação atual, como qualquer adolescente, é entrar para a faculdade”. E, a poucos dias do Enem, ainda está em dúvida entre os cursos de direito e filosofia.

“Nos manter no lugar já não é mais uma possibilidade”

Apesar de reconhecer que muitos alunos estão desanimados ou, como ela, mais focados no Enem, Ana Julia diz que não vê a situação atual do movimento estudantil como uma derrota. Ela acredita que as ocupações plantaram uma semente em cada um dos participantes e que seus efeitos serão sentidos ao longo do tempo. E interpreta o momento de silêncio das ruas como uma pausa para reorganização: “Agora teremos que pensar em novos formatos de luta, esse é o grande desafio”.

Essa semente já germina entre os alunos do Colégio Pedro II, segundo relata Isabella: “Nos manter no lugar já não é mais uma possibilidade”. Ela conta que a experiência de tomar conta do colégio fez os jovens abrirem os olhos para o que chamaram de “currículo extraoficial”:

“Quando você pega uma vassoura, quando você para na cozinha e tenta fazer comida para cem pessoas…. Você, que na sua casa não fazia nem um miojo, passa a tomar noção do tamanho do esforço feito para te dar uma estrutura mínima de educação.”

Ela afirma que o movimento trouxe para o currículo os debates em torno da limpeza, da alimentação e da segurança, funções majoritariamente desempenhadas por pessoas negras e que foram batizadas pelos estudantes de “os três pilares pretos” da ocupação. “Por outro lado, hoje eu posso contar nos dedos os professores pretos que tenho”, critica Isabella. Durante e após as ocupações, os estudantes debatem formas de reconstruir um espaço escolar democrático em que essas funções não sejam mais subalternizadas.

Larissa Coelho, outra das participantes da ocupação em Realengo, lembra que cuidar do colégio foi uma experiência importante de empatia por funcionários que antes eram invisibilizados — em geral, os terceirizados. Ela conta que foi a partir desse exercício diário de cuidado com a escola e de reflexão sobre todos os que ali trabalham que os estudantes notaram, por exemplo, que a sala dos terceirizados ficava separada das demais, sem ar-condicionado, com estrutura precária em relação à dos professores:

“Vejo a relação que estabelecemos com os terceirizados como um dos maiores ganhos da ocupação. A gente passou por um pouco do que eles passam. Entendemos que a escola não se forma apenas pelo professor e o aluno, que é todo um conjunto que forma a escola.”

Fora das escolas, o trator passa

Fatores que motivaram a “Primavera Secundarista” continuam a preocupar os estudantes: a aprovação da reforma pelo Congresso, o congelamento do orçamento federal e a crescente força do “Escola sem Partido”. O estudante do Pedro II Aires da Silva, de 19 anos, fala sobre alguns dos questionamentos que surgem no momento atual:

“Temos que nos perguntar que educação é essa que as pessoas estão recebendo? O grande diferencial da gente é que nossa educação parte para formar cidadãos. Hoje, as professoras têm medo de falar, de abordar algumas questões. E, com essa reforma, vamos ter aulas como filosofia, sociologia, disciplinas que estimulam o pensamento crítico, ou vão focar no ensino técnico?”

Na semana passada, a dez dias da primeira prova do Enem, em resposta a um pedido do movimento “Escola sem Partido”, o desembargador federal Carlos Moreira Alves chegou a ordenar uma mudança no método de correção das redações. O critério específico que o movimento e o desembargador tentaram remover é a exigência do respeito aos direitos humanos nos argumentos usados pelos alunos nas redações.

Fragmento do manual do candidato do Enem 2017.

O Ministério da Educação emitiu uma nota na quinta-feira, 26, reafirmando os critérios e mantendo o “respeito irrestrito aos Direitos Humanos, conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos, consagrada na Constituição Federal Brasileira”.

O desembargador argumentou, em sua decisão, que quem corrige a prova de redação deve avaliar o “conteúdo intelectual”, e não o “conteúdo ideológico” do trabalho do aluno — como se, dentro de um texto argumentativo, fosse possível desconectar intelecto de ideologia.

A coordenadora do projeto “Campanha Nacional pelo Direito à Educação”, Maria Rehder, acompanhou a elaboração da carta assinada pelo Alto Comissariado dos Direitos Humanos das Nações Unidas, que criticou, em abril deste ano, os avanços do “Escola sem Partido”. Ela lista este ataque ao Enem entre outros retrocessos recentes na mesma esfera, como a retirada da homofobia da lista de preconceitos a serem combatidos na educação e a tentativa de remover o título de Patrono da Educação Brasileira dado ao pedagogo e filósofo Paulo Freire. Rehder aponta esse conjunto de casos recentes como um “movimento reacionário” que faz uma interpretação intencionalmente equivocada das leis:

“É preciso tomar cuidado com o uso errôneo do argumento dos direitos humanos, com a interpretação equivocada da Constituição e com o uso intencional disso para colocar em prática esse momento de exclusão das diversidades.”

Ou, nas palavras da estudante Larissa Coelho, a formação de um modelo de educação onde “o pensar fica para depois”.

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