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Bolsonaro deu um golpe, sim

A ação golpista nas eleições de 2022 foi preparada e colocada em prática, ainda que não tenha se concretizado. E Bolsonaro deve ser punido por isso.

Ex-presidente Jair Bolsonaro, de costas, olha para muro com arame farpado na parte de cima. Foto: Gabriela Biló/Folhapress

Ex-presidente Jair Bolsonaro, de costas, olha para muro com arame farpado na parte de cima. Foto: Gabriela Biló/Folhapress

Costumamos dizer que a ditadura militar nasceu com o golpe de 1964.  E acho que essa é uma definição muito profunda do que de fato aconteceu. 

“Nasce” é a palavra chave aqui, A metáfora perfeita. Pois sabemos que, quando enunciamos um nascimento, estamos dizendo que algo veio ao mundo, que um elemento, um ser, uma ideia, uma instituição, adquiriu enfim uma existência exterior, física e palpável. 

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Com efeito, o nascimento enunciado também revela a existência de um passado, de um estágio anterior,  pois a enunciação de um nascimento inscreve também um destino, um futuro potencial daquela entidade, um desenvolvimento necessário. 

Então, repito: a ditadura militar nasceu com o golpe de 1964! E assim o faço para denunciar, justa e precisamente, o momento em que a trama golpista gestada pela caserna adquiriu uma existência exterior. O que significa dizer também que a trama precede o golpe, que existia sob a forma de uma longa conspiração dos generais. 

Golpes de estado não ocorrem da noite para o dia, especialmente em uma das maiores e mais importantes nações do cenário geopolítico mundial. Para que a ditadura militar pudesse nascer foram necessários anos de planejamento e ações coordenadas dos generais, incluindo-se aí estratégias de desinformação da população e alianças com setores empresariais para o financiamento do golpe – óbvio, com o apoio dos EUA. Era necessário garantir não apenas o nascimento do regime, mas a sua continuidade, especialmente nos primeiros anos, enquanto ela ainda estivesse na fase de desenvolvimento. 

Esta foi, nas palavras de um de seus principais idealizadores, o general Olimpio Mourão, a “maior conspiração das Américas”. E aqui vamos nos permitir uma pequena especulação: e se por algum motivo o golpe de 64 tivesse fracassado, se por algum motivo a insurreição da caserna não tivesse feito nascer o regime militar, se ele não tivesse se desenvolvido, todo esse conluio contra a democracia no país se apagaria da história? Todos os crimes que foram cometidos antes do golpe e em seu nome, simplesmente desapareceriam? A resposta me parece um tanto óbvia, não? 

Um eventual fracasso da “maior conspiração das Américas” não apagaria os crimes que ela cometeu, correto? A morte no nascimento do golpe não apagaria o fato de que ele foi de fato gestado! 

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Assim, se conseguimos ter esse entendimento sobre o que se passou na ditadura, por que algumas pessoas ainda insistem na reprisada tese de que “se não houve golpe de estado não houve crime” para defender Jair Bolsonaro e seus asseclas? Percebam, inclusive, que estas pessoas sequer se dão o trabalho de contestar os elementos da investigação conduzida pela Polícia Federal. Ignorando, talvez de forma deliberada, que estes elementos, se forem comprovados, em si mesmos, já atentam contra a democracia no país. 

Ou alguém acha minimamente razoável que um presidente da República utilize-se das prerrogativas e dos poderes que seu cargo lhe empresta para ativamente atacar o sistema democrático brasileiro? Pois, segundo as investigações da PF, foi exatamente isso que Bolsonaro fez quando publicamente e de forma reiterada pôs em dúvida a segurança das urnas eletrônicas. Inclusive, foi um destes ataques, a famigerada reunião com os embaixadores, que lhe deixou inelegível.E, mais uma vez, isso não é tudo! 

Estamos falando de um presidente que, segundo as informações que vazaram do inquérito, não apenas pressionou ativamente outras pessoas, especialmente ministros e aliados políticos, para embarcarem na sua aventura golpista, como se utilizou das redes sociais para deliberadamente desinformar a população a respeito do pleito eleitoral e lhes incutir a ideia de que uma intervenção militar seria necessária. 

Isso para não falarmos dos escândalos envolvendo a suposta criação de uma estrutura clandestina na Abin para monitorar os seus adversários políticos e o bloqueio de estradas no Nordeste durante as eleições presidenciais. 

O golpe de fato ocorreu, ele foi gestado e efetivamente nasceu! Ele apenas não teve forças para se desenvolver.

Todo esse planejamento, toda essa mobilização, tudo isso deve ser esquecido, relativizado, apenas por que eles falharam no seu intuito? Apenas por não terem sido capazes de repetir o feito da “maior conspiração das Américas” e dado um novo golpe militar no país? O fracasso do golpe anularia tudo aquilo que foi feito em seu nome? 

A resposta deveria ser óbvia, não? 

Assim como deveria ser óbvia a constatação de que se as investigações da Polícia Federal estiverem corretas, o Brasil não esteve na iminência de sofrer um golpe em 2022. Ele de fato sofreu um!

E escrevo isso sem medo de parecer leviano. Pois não há outra palavra capaz de designar com a mesma precisão o que vivemos naquele ano. 

Ou alguém aqui seria capaz de dizer que uma eleição que se deu sob a influência direta dessa máquina de desinformação em massa foi realizada nos termos de uma “normalidade democrática”? 

Uma máquina de desinformação que, inclusive, segundo as investigações, agiu sob as ordens de integrantes do governo e se voltou até contra oficiais das próprias Forças Armadas que não embarcaram nessa trama golpista. 

Se tudo isso for verdade, o golpe de fato ocorreu, ele foi gestado e efetivamente nasceu! Ele apenas não teve forças para se desenvolver, ao menos, não ao ponto de impedir a derrota de Jair Bolsonaro e a ascensão de um novo governo do PT. 

No fim, foi o povo, a sua vontade, que o matou! Mas ele existiu. 

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