A palestina Wejdan Shaheen está tentando sair de Gaza para se refugiar no Brasil. Desde que os ataques de Israel começaram, ela perdeu um filho de oito anos e ficou ferida, junto com duas outras filhas. Está morando com a família nos escombros de sua casa destruída, sem comida, água e remédios. O marido cozinha sopa de grama.
Segundo as regras do Itamaraty, Shaheen pode vir para o Brasil por ter um irmão naturalizado brasileiro – contanto que deixe suas duas filhas e o marido para trás.
Shaheen é uma das clientes da advogada M.P., especializada em direitos humanos e das mulheres. Em março, ela, outras três advogadas e dois palestinos naturalizados brasileiros, Hasan Rabee e Faysa Daoud, enviaram uma carta ao Itamaraty pedindo vistos humanitários de reunião familiar a 103 palestinos em Gaza que têm família no Brasil.
Cerca de um mês depois, no dia 10 de abril, Pinheiro recebeu um e-mail do diplomata André Veras Guimarães, diretor do Departamento de Imigração e Cooperação Jurídica do Ministério das Relações Exteriores, com a resposta: negativa para 63 pessoas da lista.
Segundo Guimarães, não seria possível emitir vistos para 63 dos palestinos – entre eles, as duas filhas de Wejdan, Ayda, de três anos, e Habiba, de um ano e meio, ainda que a própria mãe pudesse vir. “Me recuso a seguir a conta do Itamaraty, ética e moralmente, porque ela separa mães e crianças”, comentou a advogada. “Vou insistir no meu pedido”.
No e-mail, o diplomata afirma que os nomes vetados não estão dentro da norma que rege o instrumento jurídico da “reunião familiar”, que só permite a concessão do visto a parentes de primeiro e segundo grau. A regra foi instituída em uma portaria editada em 2018, durante o governo Michel Temer.
Ao Intercept Brasil, o Itamaraty afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que a lista enviada por Rabee e P. não configura um pedido formal de visto de reunião familiar, que só poderá ser feito mediante “o comparecimento do interessado à unidade consular brasileira”.
Acontece que não há qualquer unidade consular brasileira em Gaza. A embaixada do Brasil na Palestina fica em Ramallah, na Cisjordânia, onde nenhum morador de Gaza consegue chegar devido ao fechamento das fronteiras por Israel.
O Itamaraty informou também que, da lista, “cerca de quinze pessoas estariam enquadradas nos critérios da Portaria que regulamenta o visto de reunião familiar; e cerca de 60, maiores de 18 anos, deverão, ainda segundo a legislação, comprovar condições de dependência”.
Decisão deve ser política e não técnica, diz advogada
A resposta do Itamaraty revoltou a advogada M.P. “Ninguém tem casa, trabalho, comida. As pessoas estão presas num campo de concentração gigante, morando em escombros, sendo obrigadas a comer sopa de grama. Você quer comprovação maior de dependência?”
Segundo a advogada, o Itamaraty jamais havia mencionado a necessidade de protocolar o pedido através dos consulados. “Isso não diz respeito a uma reunião familiar em circunstâncias ‘normais’. Não se trata de um pedido feito em tempos de paz, até porque essas pessoas nem sequer conseguem chegar nos consulados”.
Pinheiro afirma que o Ministério das Relações Exteriores poderia editar uma portaria específica, autorizando a vinda mais ampla de parentes, para o caso dos palestinos. Isso já foi feito, no passado, com refugiados haitianos e afegãos.
“O que a gente quer é uma interpretação mais ampla, com base nos tratados internacionais de direitos humanos e das crianças, dos quais o Brasil é signatário. Como o Itamaraty diz que uma mãe pode vir e seus filhos, não? Não se separa uma criança de uma mãe numa zona de guerra”, critica.
Ela defende que essa decisão não deveria seguir critérios técnicos, e sim políticos – como foi a decisão que resultou na Operação Voltando em Paz, que trouxe mais de 1.500 pessoas e 50 animais de estimação de Gaza, em voos bancados pelo Estado brasileiro, desde outubro do ano passado.
Familiares de Hasan Rabee esperam em Gaza uma decisão do Itamaraty (foto: arquivo pessoal).
Uma dessas pessoas era o próprio Hasan Rabee, de 33 anos, signatário da carta junto com Pinheiro. Rabee vive no Brasil desde de 2014, quando conseguiu um visto de refugiado, depois de pedidos negados pelos EUA, Canadá, Inglaterra e Alemanha.
Mora em São Paulo com a esposa, brasileira, e duas filhas nascidas aqui. Justamente em outubro do ano passado, levou a família pela primeira vez a Gaza. “A ideia era passar três meses, mas logo começaram os ataques”.
Cinquenta dias depois, Rabee, a esposa e as duas filhas foram repatriados em um voo da FAB. “O resto da minha família preferiu ficar, na esperança de que a guerra acabasse rápido”, explicou.
Desde então, mais de 30 mil palestinos – a maior parte mulheres e crianças – foram assassinados. Um deles foi um tio de Rabee, professor de inglês, encontrado morto há uma semana, nos escombros de sua casa em Khan Yunes, depois que o exército de Israel se retirou do que um dia foi uma cidade.
“Não dá para identificar por causa da decomposição, mas parece ser ele, pela roupa. Estava há dois meses desaparecido”, disse Rabee.
Rabee vive situação similar à de Wejdan Shaheen. O Itamaraty informou-lhe que suas duas irmãs poderão vir, desde que deixem maridos e cinco filhos em Gaza. “Achei a resposta do governo brasileiro uma coisa absurda”, disse a advogada. “A criança mais nova tem oito meses. A mais velha tem seis anos. Eu não tenho coragem de dizer a eles que essa foi a solução encontrada”.
Ela lamentou que o posicionamento do Itamaraty difira tanto do posicionamento público do presidente Lula, que declarou, em novembro do ano passado, que o Brasil faria “todo o esforço” que estivesse ao alcance da nossa diplomacia para trazer brasileiros ou parentes de brasileiros sitiados em Gaza.
“Não vejo essas palavras refletidas nessa manifestação”, diz P. “Pelo contrário, vejo a nossa diplomacia impondo a essas famílias novas separações. Isso é um prolongamento da violência que Israel vem perpetrando, e que só adquiriu a dimensão atual de brutalidade genocida por conivência da comunidade internacional”.
Quem são os palestinos que querem vir para o Brasil
Na carta enviada ao Itamaraty, de onze páginas, o grupo pede que o governo edite uma portaria interministerial para resultar “na expedição de visto humanitário de reunião familiar” aos palestinos sitiados em Gaza “com a máxima urgência possível, dado o evidente risco de morte que recai sobre cada um deles e delas”. O texto é endereçado aos ministros das Relações Exteriores, Justiça e ao presidente Lula.
Em março, as advogadas brasileiras e os palestinos passaram três dias em Brasília. “Sentamos com o Secretário Nacional de Justiça, a Ouvidora Nacional dos Direitos Humanos, o diretor do Departamento de Imigração e o chefe de gabinete do chanceler Mauro Vieira, para explicar a demanda”, diz Pinheiro.
Eles apresentaram uma lista com os nomes e fotos de cada uma das 103 pessoas, parentes de dez palestinos – alguns naturalizados, outros não – que vivem no Brasil.
O grupo também deixou claro que a lista inclui familiares não apenas de primeiro ou segundo grau, até porque várias das famílias haviam se reconfigurado em função das mortes ocorridas na guerra. “Ou seja, não queremos trazer só pais, filhos, avôs e irmãos. Há também cunhados, primos, sobrinhos, sogros”, P. explicou.
A lista traz algumas dessas histórias em detalhes. Uma delas é a de Ramadan Abdou, um pai que vive no Brasil enquanto seus três filhos seguem confinados em Gaza – sem a mãe, que foi assassinada num bombardeio nos primeiros dias do massacre. As crianças estão sob os cuidados de uma tia.
Outra história é a de Samera Alnajjar, uma mãe que se viu obrigada a dividir quatro ovos entre mais de dez pessoas, filhos e netos, para que a família tivesse algo que comer.
O pedido também inclui os sete parentes da jornalista brasileira Marina Darmaros, uma história relatada aqui no Intercept recentemente.
Para a advogada do grupo, essas histórias já seriam motivo suficiente para o “Itamaraty enviar um avião pra lá agora”. O pedido feito, no entanto, não inclui o envio de um avião da FAB. “Meu receio era de que isso dificultasse ainda mais a nossa demanda, por isso pedimos apenas o visto com prazo de 72 horas.” As próprias famílias arcariam com os custos das passagens.
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O pedido de reunião familiar é complexo, e a advogada sabe disso. “Uma missão desse porte demanda uma articulação grande, que envolve Israel, Egito, e outros países como Catar, Emirados Árabe e Turquia. Algumas pessoas têm passaporte; outras não. Algumas têm documento de identidade, outras não. Algumas nem sequer têm certidão de nascimento, porque não existia mais Estado quando nasceram.”
Daí o pedido por uma ação interministerial, envolvendo também Justiça e Direitos Humanos, para que as pessoas consigam cruzar as fronteiras sem serem mortas ou barradas. “Sei que é uma bucha geopolítica, mas havendo vontade, o Brasil tem musculatura diplomática para isso.”
O problema é que, até esse momento, o Ministério das Relações Exteriores não parece ter manifestado tanta vontade política. No fim de abril, Rabee e a advogada devem voltar a Brasília para uma nova rodada de conversas com assessores e deputados.
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