Jair Bolsonaro tentou derrubar a democracia brasileira. Para isso, contou com a ajuda dos militares, do agronegócio e de uma extensa rede de fake news.

O que se sabe da arquitetura do golpe de Jair Bolsonaro

Investigação da PF mostra como Jair Bolsonaro quase derrubou nossa democracia. Ele teve ajuda dos militares, do agronegócio, da extrema direita internacional, rede de fake news e Jovem Pan.

Jair Bolsonaro tentou derrubar a democracia brasileira. Para isso, contou com a ajuda dos militares, do agronegócio e de uma extensa rede de fake news.

Todo mundo sabia que estivemos muito, muito perto do golpe. Mas a decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes dá detalhes inéditos do plano de Jair Bolsonaro para golpear a democracia brasileira. O golpe foi minuciosamente arquitetado (em reuniões secretas e muitas mensagens de WhatsApp).

O bolsonarismo levou seu golpe mais duro na manhã desta quinta, 8 de fevereiro. Exatos 13 meses depois dos atos golpistas que destruíram prédios públicos em Brasília – e colocaram em xeque mais uma vez a nossa democracia –, a decisão alvejou figuras-chave do bolsonarismo, como o cabeça Filipe Martins e o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, além de generais como Augusto Heleno e Braga Netto. Atingiu inclusive o ex-presidente, que precisou entregar seu passaporte e está impedido de deixar o país.

Filipe Martins e os militares Marcelo Câmara, coronel da reserva do Exército, e Rafael Martins, major das Forças Especiais do Exército, foram presos. Os outros foram alvos de busca e apreensão. Waldemar Costa Netto foi preso depois que a polícia encontrou uma arma ilegal em sua casa.

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A investigação é baseada principalmente na delação de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, mas é corroborada por mensagens, vídeos e outras provas documentais. 


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As investigações mostram que o plano foi executado por vários grupos da cúpula do governo Bolsonaro. A trama estava detalhada na chamada “minuta do golpe”, um decreto preparado pelo chamado “núcleo jurídico”, responsável por fundamentar o golpe. Seu membro mais proeminente era Filipe Martins, assessor de assuntos internacionais do governo, repetidor de símbolos supremacistas e grande responsável por importar estratégias de extrema-direita internacionais por aqui. 

O decreto trazia o arcabouço jurídico que sustentaria o golpe: a destituição dos ministros do STF e a prisão de Alexandre de Moraes. Uma primeira versão previa também as prisões de Gilmar Mendes e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, mas Bolsonaro achou melhor retirar essas arbitrariedades. Manteve apenas a prisão de Moraes. Uma minuta já havia sido encontrada na casa de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, em operação após os atos golpistas de 8 de janeiro. Na época, Bolsonaro alegou desconhecer o texto. A investigação mostrou o contrário.

Rio de Janeiro - O interventor federal na segurança pública do Rio de Janeiro, general Walter Braga Netto, concede entrevista coletiva à imprensa e apresenta o chefe do Gabinete de Intervenção Federal, o general Mauro Sinott (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Braga Netto xingou comandante do Exército que se recusou a apoiar a tentativa golpista. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Militares no comando: manipulação, mentiras e blindagem 

Para colocar o plano em prática, o governo Bolsonaro se articulou em diversos núcleos de atuação, mostra a investigação. 

Um núcleo de “inteligência paralela”, encabeçado por general Augusto Heleno, então comandante do Gabinete de Segurança Institucional, teria sido o responsável por coletar informações estratégicas – como, por exemplo, a localização de Moraes durante todo o mês de dezembro de 2022, quando poderia ser preso, segundo o planejamento. A existência de relatórios que monitoraram voos do ministro do STF foi uma das evidências que fundamentou a decisão.

“Se tiver que virar a mesa é antes das eleições. E vai chegar a um ponto que nós não vamos poder mais falar. Nós vamos ter que agir. Agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas”, afirmou Heleno, em uma reunião realizada com Bolsonaro e seus ministros para tratar do golpe de estado.

A cúpula militar também usava sua alta patente para pressionar outros oficiais a aderirem ao golpe. De acordo com mensagens obtidas pela PF, o vice na chapa de Bolsonaro à reeleição em 2022, general Walter Braga Netto, chamou de “cagão” o ex-comandante do Exército, general Freire Gomes, que não quis aderir ao suposto plano de golpe de Estado após as eleições de 2022 – e ordenou que seu interlocutor, outros militar, pressionasse o então chefe do Exército.

“Agiram para influenciar e incitar apoio aos demais núcleos de atuação por meio do endosso de ações e medidas a serem adotadas para consumação do Golpe de Estado”, diz a decisão de Moraes sobre o grupo, que também incluía o general Augusto Heleno.

Fazia parte do plano uma espécie de “blindagem institucional” para que os militares envolvidos continuassem em cargos estratégicos, mesmo após a troca de governo. A investigação mostrou que os envolvidos utilizaram diretamente dos cargos que exerciam não apenas na tentativa de executar o golpe, como também para garantir que ficariam impunes pelos crimes que praticavam. 

O general Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira, por exemplo, exigiu – e conseguiu – que Bolsonaro assinasse sua nomeação como comandante do Comando de Operações Terrestres do Exército Brasileiro, detalha a decisão. O militar ficou ainda responsável pelo Comando de Operações Especiais.

 Segundo diálogos encontrados no celular de Mauro Cid, o general teria se reunido com Bolsonaro no Palácio da Alvorada, em 9 de dezembro de 2022, para impor sua condição antes de aderir ao golpe. Segundo a PF, Teophilo teria prometido a Bolsonaro que colocaria a tropa na rua para sustentar o golpe.

Caberiam às Forças Especiais do Exército, comandadas por Theophilo, a missão de prender o Ministro Alexandre de Moraes assim que o decreto presidencial do golpe fosse assinado. As Forças Especiais, também conhecidas como Kids Pretos, são compostas por militares especializados, e são apontadas como articuladoras do golpe. Mauro Cid e outros 26 membros dela tinham cargos no governo Bolsonaro, apontou a Piauí.

General de quatro estrelas, Estevam Theophilo ainda se manteve no cargo por quase um ano do governo Lula, até novembro de 2023. Só  deixou o Comando de Operações Terrestres depois que passou para a reserva. Agora, a PF pediu sua suspensão do exercício da função pública.

Outros seis militares foram alvos do mesmo pedido: coronel Cleverson Ney Magalhães, tenente-coronel Guilherme Marques Almeida, tenente coronel Hélio Ferreira Lima, general de brigada reformado Mário Fernandes, segundo-sargento reformado Ronaldo Ferreira de Araújo Júnior e o tenente-coronel Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiro.

Segundo a decisão de Moraes, a análise da dinâmica empregada pelo grupo revela que o uso das funções dos investigados foi “elemento essencial na atuação criminosa” e na tentativa de se eximirem da punição. Por isso, os mandados são “medida razoável, adequada e proporcional para garantia da ordem pública”, justificou. 

Discípulo de Olavo de Carvalho, Filipe Martins apresentou a minuta golpista a Jair Bolsonaro. Foto: Joyce N. Boghosian/Casa Branca

Jovem Pan e gabinete do ódio espalharam a palavra 

A cúpula militar chegou, também, a usar a emissora Jovem Pan como garota de recado para ameaçar os oficiais. No dia 28 de novembro, o colunista Paulo Figueiredo divulgou no programa Pânico e no Os Pingos nos Is a carta que a cúpula de militares da ativa escreveu contra o STF e o TSE, e citou os nomes dos oficiais que não apoiavam o golpismo. 

Segundo a decisão de Moraes, o general Bernardo Romão Correa Neto, também alvo da operação, já sabia horas antes quais seriam os comandantes expostos na Jovem Pan. “O conteúdo do documento foi disponibilizado a PAULO RENATO DE OLIVEIRA FIGUEIREDO, na dinâmica de coordenação de atividades que norteava a atuação do grupo, o qual o publicizou em post no Twitter de 29/11/2022 e no programa Pânico da emissora Jovem Pan”, mostra a decisão.

Mauro Cid era quem se articulava com outros investigados que discutiam possíveis falhas no sistema eleitoral e alinhavam a narrativa. Entrava em cena, então, a turma de Tércio Thomaz, do chamado gabinete do ódio, no núcleo que Moraes batizou de “Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral”. 

Eles produziam e divulgavam fake news sobre fraude eleitoral, incitando os apoiadores bolsonaristas a irem às ruas. “Nosso time é bom demais”, comemorou o investigado Guilherme Marques Almeida, Tenente-Coronel do Exército, em mensagem à Mario Cid, referindo-se à criação de um site hospedado em Portugal que entrou no ar cheio de material golpista, mostra a decisão.

Conteúdo golpista circulando nas redes, era hora de ir às ruas.  Havia um núcleo para isso: o “operacional”. Dele fazia parte Rafael Martins, major das Forças Especiais do Exército, também preso hoje. Era esse núcleo o responsável por pastorear o gado, levando-o aos pontos de interesse nas ruas. Nas palavras de Moraes: “manter as manifestações em frente aos quartéis militares, incluindo a mobilização, logística e financiamento de militares das forças especiais em Brasília”. 

Ou seja: o que era divulgado como espontâneo, força de manifestação popular, na verdade era minuciosamente articulado, inclusive com apoio financeiro. Nas mensagens, Mauro Cid oferece R$ 100 mil para apoio aos golpistas acampados em Brasília com hotel e alimentação. Como mostramos na época, os acampamentos golpistas não apenas foram tolerados por autoridades em Brasília – mas os manifestantes também foram protegidos. 

A decisão de Moraes mostra que o ex-presidente Jair Bolsonaro, que se recusou a passar a faixa presidencial para Lula, também agiu diretamente na preparação do golpe. Participou de reuniões e palpitou na minuta de golpe enviada por Filipe Martins, além de levar o documento à cúpula das Forças Armadas. Hoje, ele foi alvo de busca e apreensão. Mas o seu esquema estava completamente embrenhado nas repartições de Brasília.

QUEM É QUEM NO GOLPE

Cúpula militar – Segundo relatório da PF, oficiais de alta patente usaram sua influência para incitar apoio aos núcleos do golpe e endossar ações a serem tomadas para a existência da ruptura.

São citados o general Walter Braga Netto; o ex-comandante da Marinha, Almir Garnier Santos; os generais de brigada reformados Mario Fernandes e Laércio Vergílio; o general Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira; e o ex-ministro da defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.

Kids pretos – Forças especiais do Exército, caberia aos Kids Pretos a missão de prender Alexandre de Moraes assim que o golpe entrasse em curso. A equipe estava sob comando do general Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira.

O presidente nacional do Partido Liberal (PL), Valdemar Costa Neto, fala com a imprensa no Centro de Eventos e Convenções Brasil, em Brasília.
Valdemar da Costa Neto, presidente do PL, foi preso hoje por posse ilegal de arma. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasi

Valdemar Costa Neto – Capitaneou a parceria entre o PL, partido que preside, e o “Instituto Voto Legal” e financiou, financeiramente e com sua posição política, representações judiciais após o pleito de 2022. A parceria entre o partido e o instituto divulgou um relatório falso apontando “indícios de funcionamento incorreto do sistema eletrônico de votação e das urnas eletrônicas”. Valdemar também é apontado de ter facilitado o uso da estrutura partidária do PL por integrantes do núcleo jurídico da tentativa de golpe, responsáveis pela redação da minuta de conteúdo golpista.

Anderson Torres – Ex-ministro da justiça de Bolsonaro, integrou o gabinete do ódio, responsável por produzir e amplificar notícias falsas sobre o processo eleitoral com o intuito de criar “ambiente propício para o Golpe de Estado”, e o núcleo jurídico do golpe, que garantiu assessoramento legal e a redação de minutas que atendessem aos interesses golpistas.

Núcleo de inteligência paralela – Foi responsável pela coleta de dados e informações usados para auxiliar Bolsonaro na consumação do golpe de estado, como o monitoramento de deslocamentos do ministro do STF, Alexandre de Moraes, que deveria ser preso pelos Kids Pretos. 

Gabinete do ódio – Relatório indica que uma estrutura de produção e divulgação de notícias falsas sobre o processo eleitoral brasileiro foi instaurada, com o intuito de estimular seguidores a atos de ruptura democrática e criar “ambiente propício para o golpe de estado”.

Fazem parte do grupo o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid; o ex-ministro da justiça de Bolsonaro, Anderson Torres; o major da reserva Angelo Martins Denicoli; o estrategista do presidente da Argentina e responsável por uma live com mentiras sobre o sistema eleitoral Brasileiro, Fernando Cerimedo; o sócio da empresa Gaio.io, parceira do “Instituto Voto Legal” no relatório que dizia apontar “indícios de funcionamento incorreto do sistema eletrônico de votação e das urnas eletrônicas”, Eder Lindsay Magalhães Balbino; os tenentes-coronel Hélio Ferreira Lima, Guilherme Marques Almeida e Sergio Ricardo Cavaliere de Medeiros; e o ex-assessor de Bolsonaro, Tércio Arnaud Tomaz.

Articulação internacional – O ideário de extrema direita golpista vem de longe. Um dos alvos da operação foi o padre José Eduardo, de Osasco. Ele foi uma das pessoas treinadas por um radical católico da Espanha que desembarcou no Brasil em 2013 para insuflar militantes com táticas que elegeram Bolsonaro. Allan dos Santos, blogueiro de extrema direita criador do Terça Livre e que hoje mora nos Estados Unidos, fez parte do mesmo grupo.

Filipe Martins, preso na operação de hoje, era assessor para assuntos internacionais da presidência da República e atuava como um chanceler paralelo do governo. Aluno aplicado de Olavo de Carvalho, era entusiasta de Donald Trump e de seu ex-estrategista digital, Steve Bannon.

O gabinete do ódio, relatório da PF indica, também teve a participação do argentino Fernando Cerimedo, responsável por uma live com informações falsas sobre o sistema eleitoral brasileiro em novembro de 2022 e, posteriormente, um dos principais nomes da estratégia de campanha de Javier Milei à presidência da Argentina. Foi com base no discurso de Cerimedo que Valdemar Costa Neto sustentou, logo após as eleições de 2022, uma cruzada contra o resultado das eleições.

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