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‘Intensificar as batidas nas favelas’ Ă© uma ordem que sempre marcou a atuação das polĂ­cias no Brasil

Ditadura Militar aprofundou essa prĂĄtica, reforçando as conexĂ”es entre a violĂȘncia da polĂ­cia nas periferias e a atuação das Forças Armadas


ORG XMIT: 533101_1.tif RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL, 26-07-2010: Mães da chamada chacina de Acari, levaram faixas e cartazes em protesto e lembrança ao crime, que resultou em 11 desaparecidos e prescreveu hoje sem condenaçÔes. (Foto: Ricardo Cassiano/Folhapress, COTIDIANO)
Mães da chamada chacina de Acari, levaram faixas e cartazes em protesto e lembrança ao crime, que resultou em 11 desaparecidos e prescreveu hoje sem condenaçÔes. (Foto: Ricardo Cassiano/Folhapress, COTIDIANO)

No dia 12 de agosto de 1971, representantes de vårios órgãos da estrutura repressiva da ditadura se reuniram no Palåcio Duque de Caxias, um imponente prédio localizado na Av. Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro.

ApĂłs fazerem uso da palavra os agentes da seção de informaçÔes do I ExĂ©rcito, do Centro de InformaçÔes da Marinha, da PolĂ­cia Federal e do Departamento de Ordem PolĂ­tica e Social, o Dops, chegou a vez do representante da PolĂ­cia Militar do estado da Guanabara falar. 

Na ata que restou do encontro, a mensagem passada por ele era bastante direta: “Vai intensificar as batidas nas favelas, realizando-as da ordem de 3 a 4 vezes por semana”. 

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Aquelas eram reuniĂ”es semanais, em que cada agĂȘncia compartilhava informes sobre as açÔes que vinham desenvolvendo.

Parte dessas atas foram armazenadas no acervo do Serviço Nacional de InformaçÔes, o SNI, e sobreviveram Ă  ditadura, sendo localizadas hoje no Arquivo Nacional. Uma leitura desses documentos mostra como, em geral, as informaçÔes trocadas tinham a ver com operaçÔes contra militantes da oposição, especialmente da guerrilha. 

No entanto, a participação da PM naquela reuniĂŁo de 12 de agosto joga luz sobre um aspecto menos conhecido da ditadura militar: as conexĂ”es entre a atuação cotidiana das polĂ­cias no combate Ă  dita criminalidade comum – tarefa que esconde o uso da violĂȘncia do Estado como meio de controle social das populaçÔes pobres e perifĂ©ricas – e a atuação das forças de segurança do regime na chamada repressĂŁo polĂ­tica.

Essas conexĂ”es permitiam, na prĂĄtica, um aprendizado mĂștuo entre o policial que torturava na favela e o militar que torturava no DOI-Codi. 

‘Eu passei muito tempo interrogando presos de favelas. EntĂŁo a gente vai pegando prĂĄtica.’

FilĂłsofos tĂŁo diferentes como Hannah Arendt e Michel Foucault, recuperando uma ideia originalmente formulada por AimĂ© CĂ©saire, trabalhavam com uma ideia que pode ser Ăștil para entender essa conexĂŁo: o efeito bumerangue. Com isso, Arendt chamava a atenção para o fato de que o colonialismo europeu nos territĂłrios africanos voltaria para a prĂłpria Europa posteriormente, na forma da violĂȘncia nazifascista.

Generalizando o conceito, Foucault apontou que as colĂŽnias e periferias sempre funcionam como laboratĂłrios para tecnologias e dispositivos de violĂȘncia que depois serĂŁo utilizados nas metrĂłpoles. 

EntĂŁo vejamos como se deu, na prĂĄtica, o efeito bumerangue entre as polĂ­cias militares e as Forças Armadas na ditadura militar brasileira. 

“Eu passei muito tempo interrogando presos de favelas, para conseguir descobrir onde estava o depĂłsito de armas. EntĂŁo a gente vai pegando prĂĄtica. Eu tinha experiĂȘncia”. Com essas palavras, Riscala Corbage, um major da PolĂ­cia Militar do Rio de Janeiro, respondeu ao MinistĂ©rio PĂșblico Federal sobre sua atuação no Destacamento de OperaçÔes de InformaçÔes do Centro de OperaçÔes de Defesa Interna (DOI-Codi), a mais temida agĂȘncia de repressĂŁo da ditadura militar (1964-1985). 

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O depoimento se deu no ùmbito de uma investigação do MPF sobre o desaparecimento forçado de Rubens Paiva, ocorrido em 1971.

O agente explicita que a expertise acumulada ao “interrogar” – um eufemismo para torturar – moradores de favelas foi o que o habilitou a ser convocado a atuar no combate aos opositores polĂ­ticos do regime.

Mas o oposto também era verdade. As açÔes de combate à guerrilha produziam aprendizados que depois eram incorporados pelas polícias de modo mais geral.

É o que mostra um documento da Inspetoria Geral das PolĂ­cias Militares (IGMP) localizado tambĂ©m no acervo do SNI. A prĂłpria IGPM foi criada pela ditadura em 1967, como forma de submeter as polĂ­cias ao controle do regime e conectar a “segurança pĂșblica” com a “segurança nacional”. 

O documento Ă© uma “nota de instrução” de junho 1971, que tinha como objetivo “ressaltar ensinamentos colhidos pela experiĂȘncia em atividades de guerrilha e contraguerrilha rural”.

Segundo o relatĂłrio, “na fase repressiva, as PMs nĂŁo poderĂŁo descurar-se da importĂąncia de suas açÔes, complementando as do ExĂ©rcito”. 

A nota trazia vĂĄrios casos concretos que haviam ocorrido no quadro da repressĂŁo a grupos da resistĂȘncia armada Ă  ditadura, e buscava extrair liçÔes deles.

Um dos ensinamentos era o de que “os fatores moral, coragem, Ă­mpeto e agressividade tĂȘm que ser desenvolvidos nos homens. O comandante tem que procurar manter a iniciativa do combate”. 

No mesmo ano de 1971, portanto, um Policial Militar entregava seu conhecimento sobre torturas para aprimorar o trabalho do ExĂ©rcito no DOI-Codi; os militares envolvidos nas operaçÔes de combate Ă  guerrilha rural compartilhavam seus aprendizados com as PolĂ­cias Militares; e o representante da PM da Guanabara informava que iria “intensificar as batidas nas favelas” em uma reuniĂŁo com representantes de todos os ĂłrgĂŁos da estrutura repressiva do regime. 

Apresentada como uma questĂŁo de ‘segurança pĂșblica’, a Chacina de Acari de 1991 nĂŁo foi vista como um sinal de que o regime democrĂĄtico tinha sĂ©rios limites.

Esses documentos e relatos parecem suficientes para sustentar a ideia do efeito bumerangue. Ou seja, havia uma profunda conexĂŁo entre a violĂȘncia de Estado perpetrada nas favelas e periferias, majoritariamente contra a população negra -violĂȘncia que evidentemente antecede o prĂłprio golpe de 1964 – , e aquela que se voltou contra os militantes da oposição ao regime. 

Mas por qual razĂŁo, entĂŁo, ao falarmos da ditadura hoje, parece que estamos limitados a este segundo aspecto? 

Porque durante a redemocratização essas duas dimensĂ”es da violĂȘncia de Estado passaram a ser tratadas como distintas. As evidentes conexĂ”es entre elas foram sendo apagadas, na medida em que apenas algumas formas de repressĂŁo passaram a ser vistas como “violĂȘncias polĂ­ticas”.

As prĂĄticas violentas que nĂŁo foram enquadradas dessa forma pelo conjunto da sociedade adentraram a democracia sem que fossem vistas como um problema. É a construção desse discurso duplo sobre a violĂȘncia de Estado que tento analisar em meu livro recĂ©m lançado, A transição inacabada (Companhia das Letras).

Novo regime, velhas prĂĄticas

Se poucos anos depois da Constituição de 1988, policiais militares assassinassem sob tortura e desaparecessem com o corpo de 11 militantes polĂ­ticos de uma sĂł vez, e justificassem isso como uma prĂĄtica para defender a “segurança nacional”, teria havido um escĂąndalo de grandes proporçÔes.

Todos diriam que a recĂ©m-nascida democracia estava em risco. Mas isso nĂŁo ocorreu. 

Aconteceu, porĂ©m, com 11 jovens negros moradores da favela de Acari. Apresentada como uma questĂŁo de “segurança pĂșblica”, nĂŁo de “segurança nacional”, a Chacina de Acari de 1991 nĂŁo foi vista como um sinal de que o regime democrĂĄtico que começava a se institucionalizar no paĂ­s tinha sĂ©rios limites.

As consequĂȘncias dessa divisĂŁo sĂŁo muitas, atĂ© hoje. A primeira delas Ă© que ela nos impede de conhecer de forma mais aprofundada a extensĂŁo e o tamanho da violĂȘncia perpetrada pelo Estado na ditadura militar.

A autorização social para a violĂȘncia nas favelas e periferias estĂĄ na origem dos discursos que depois vĂŁo legitimar o autoritarismo polĂ­tico e os ataques ao processo eleitoral.

E isso Ă© um problema porque o discurso de que nossa ditadura nĂŁo teria sido tĂŁo violenta estĂĄ no centro das visĂ”es negacionistas que buscam legitimar aquele perĂ­odo. No marco dos 60 anos do golpe de 1964, superar essa visĂŁo Ă© uma tarefa urgente. 

Mas outra consequĂȘncia nĂŁo tem a ver com a forma como vemos o passado. Tem a ver com a maneira pela qual enxergamos os problemas do presente.

Desde o golpe de 2016, e particularmente com o governo Bolsonaro, a questĂŁo das Forças Armadas voltou a figurar no centro do debate pĂșblico.

Ao mesmo tempo, o problema da violĂȘncia policial, que nunca deixou de estar presente, tambĂ©m tem recrudescido. Infelizmente, porĂ©m, esses temas costumam ser tratados como coisas distintas. 

É verdade que hĂĄ medidas especĂ­ficas para lidar com cada um deles. Por exemplo, Ă© urgente rever o artigo 142 da Constituição para submeter definitivamente as Forças Armadas ao poder civil; ao mesmo tempo, Ă© necessĂĄrio cobrar que os MinistĂ©rios PĂșblicos exerçam sua tarefa de controle externo da atividade policial. 

No entanto, a persistĂȘncia dessa divisĂŁo entre o que seria o problema das polĂ­cias, de um lado, e a questĂŁo das Forças Armadas, de outro, nos impede de ver que as mesmas conexĂ”es existentes durante a ditadura seguem operando. 

Em outras palavras, quero chamar a atenção para o fato de que precisamos enxergar um efeito bumerangue, por exemplo, entre o massacre perpetrado pela Polícia de São Paulo na Baixada Santista e a participação das Forças Armadas na tentativa de golpe no 8 de Janeiro.

Um alimenta o outro. A autorização social para a violĂȘncia nas favelas e periferias estĂĄ na origem dos discursos que depois vĂŁo legitimar o autoritarismo polĂ­tico e os ataques ao processo eleitoral.

Porque afinal, em ambos os casos, o que estĂĄ em jogo, como disse a cientista polĂ­tica Ana Penido em texto recente, sĂŁo os “instrumentos (humanos e materiais) de violĂȘncia de Estado” e a dificuldade histĂłrica de se estabelecer qualquer tipo de controle polĂ­tico sobre eles. 

A Frente Ampla que se constituiu em 2022 para derrotar Bolsonaro nas eleiçÔes teve como eixo fundamental a defesa da democracia.

Contudo, jĂĄ estĂĄ evidente que muitos setores da sociedade que se mobilizam para defender a realização de eleiçÔes nĂŁo acham que uma operação policial que deixa mais de 50 mortos Ă© tambĂ©m um problema para nossa democracia. 

Evidenciar o efeito bumerangue e as conexĂ”es entre esses dois pontos, e combatĂȘ-los como dois lados de uma mesma moeda, Ă© a Ășnica forma que temos de tentar quebrar definitivamente os ciclos de violĂȘncia de Estado e autoritarismo que tĂȘm marcado a histĂłria do Brasil. 

Temos uma oportunidade, e ela pode ser a Ășltima:

Colocar Bolsonaro e seus comparsas das Forças Armadas atrås das grades.

NinguĂ©m foi punido pela ditadura militar, e isso abriu caminho para uma nova tentativa de golpe em 2023. Agora que os responsĂĄveis por essa trama sĂŁo rĂ©us no STF — pela primeira e Ășnica vez — temos a chance de quebrar esse ciclo de impunidade!

Estamos fazendo nossa parte para mudar a histĂłria, investigando e expondo essa organização criminosa — e seu apoio Ă© essencial durante o julgamento!

Precisamos de 800 novos doadores mensais atĂ© o final de abril para seguir produzindo reportagens decisivas para impedir o domĂ­nio da mĂĄquina bilionĂĄria da extrema direita. É a sua chance de mudar a histĂłria!

Torne-se um doador do Intercept Brasil e garanta que Bolsonaro e sua gangue golpista nĂŁo tenham outra chance de atacar nossos direitos.

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