Vídeo: Josh Begley
Senhoras e senhores, esta é a mais importante retrospectiva da temporada da Liga de Futebol Americano dos EUA. Mas é também o vídeo que a NFL não quer que vocês assistam.
Como em qualquer temporada, esse ano tivemos passes incríveis, corridas que rompem barreiras, e impressionantes field goals de longa distância. Mas houve também um outro tipo de recorde, bem mais destrutivo: foram registradas 281 concussões desde a pré-temporada da NFL até hoje, segundo as próprias estatísticas da liga. É o maior número de concussões desde que a NFL começou a manter esse registro, há seis anos.
A NFL fez um esforço magistral para naturalizar a violência do jogo, de tal forma que o público não se sinta tão mal em relação ao que acontece. Nenhuma palavra protege mais a NFL dos verdadeiros custos da violência do que “concussão”. Essa palavra coloca uma barreira protetora entre nós e o que realmente se passa no campo.
Muitos de nós aceitamos a violência da NFL porque não conhecemos esses homens.
Não é uma simples dor de cabeça. Não é “bater o coco”. Não é um coco. É uma lesão cerebral traumática. Cada concussão é uma nova lesão. Além dos ligamentos rompidos, além das horríveis fraturas, a NFL diagnosticou pelo menos 281 lesões cerebrais traumáticas nessa temporada, e nenhum documento expõe tão bem esse horror como “Concussion Protocol” [Protocolo de Concussão], um filme de Josh Begley e da produtora Field of Vision.
Muitos de nós aceitamos essa violência, de forma consciente ou inconsciente, porque não conhecemos esses homens.
Em apenas dois dias quentes de julho de 2016, os Estados Unidos presenciaram duas terríveis ocorrências de violência policial contra afro-americanos. Primeiro, em um vídeo gravado por transeuntes inocentes, testemunhamos Alton Sterling ser morto por tiros à queima-roupa do lado de fora de uma loja de esquina em Baton Rouge, onde ele vendia CDs. No dia seguinte, ao vivo pelo Facebook, em filmagem feita por sua noiva, vimos Philando Castile, um supervisor de refeitório muito querido, dar seu último suspiro depois de receber vários tiros de um policial que, por ter visto a forma do nariz de Castile quando passava de carro, suspeitou equivocadamente que ele tivesse cometido um assalto a mão armada.
No dia seguinte, recebi a primeira das centenas de mensagens que viria a receber do então quarterback do San Francisco 49ers, Colin Kaepernick. Ele queria que eu explicasse para ele esses incidentes. Depois continuou a me pedir para explicar outros. A inteligência de Kaepernick transparecia nas perguntas instigantes que fazia. Ele ainda não tinha se ajoelhado ou protestado publicamente durante o hino nacional — isso só viria a acontecer dali a algumas semanas –, mas as injustiças já estavam corroendo sua alma.
E não era só Kaepernick. Naquelas semanas que antecederam o início da temporada da NFL, dezenas de jogadores me procuraram. Eles queriam que eu esclarecesse detalhes da violência policial contra afro-americanos, e que os aconselhasse sobre o que poderiam fazer ou dizer para denunciar essas injustiças.
Foi aí — antes que Kaepernick se ajoelhasse, antes que qualquer jogador levantasse o punho ou permanecesse sentado — que começou a mudar a forma como eu assistia os jogos da NFL.
Shaun King e Donte Stallworth, um veterano da NFL, foram convidados por Josh Bengley para discutir o filme “Protocolo de Concussão” no podcast Intercepted (em inglês).
Eu amo esportes. Durante a infância e a adolescência, e mesmo depois de entrar para a faculdade, eu sonhava em ser diretor-geral de um time ou agente desportivo; até hoje ainda penso nesses sonhos. Até meu boicote à NFL nesta temporada, eu tinha assistido a todas as temporadas de futebol americano religiosamente por mais de trinta anos. Mesmo sabendo bastante sobre a dura realidade da violência do jogo e do dano cerebral irreversível que ela causava aos jogadores, eu continuava assistindo.
No entanto, no momento em que me tornei amigo dos homens em campo, foi como se uma chave tivesse virado na minha cabeça. Num primeiro momento, fiquei entusiasmado para torcer pelos times cujos jogadores eu tinha conhecido pessoalmente. Naquela época, em 2016, eu comprava o NFL Sunday Ticket, uma assinatura mensal de televisão que me permitia assistir e acompanhar todos os jogos da liga. Porém, antes do final do primeiro jogo, eu já tinha visto vários caras que eu conhecera e com quem tinha uma relação de amizade sendo completamente esmagados por violentos tackles. Ao longo do dia, vi o mesmo acontecer com outros caras, com quem eu havia trocado mensagens e conversado ao vivo ou por Skype durante a semana. Quando chegou a noite de domingo, depois de dezenas de jogos, minha empolgação com a NFL tinha desaparecido.
Eu adorava assistir homens que eu não conhecia praticarem um esporte que lesionava seus cérebros e arrasava seus corpos. Ficava emocionado com o jogo, mas mantinha uma distância emocional dos seres humanos que o protagonizavam. Quando aqueles homens deixaram de ser apenas corpos num campo ou destaques no noticiário, no momento em que se tornaram meus amigos e irmãos, eu deixei de torcer tanto. Praticamente só esperava, ansioso, que estivesse tudo bem com meus camaradas.
Imagine se você descobrisse que a pessoa mais querida da sua família sofreu uma lesão cerebral traumática hoje, causada por um ataque violento. Você certamente ficaria perturbado, e iria querer descobrir não só o responsável , como também quais sistemas teriam falhado para causar o acidente. É o mesmo que acontece na NFL.
Embora a NFL alegue que esteja protegendo os jogadores, ocorreram centenas de lesões cerebrais traumáticas este ano.
Embora a NLF alegue que esteja protegendo os jogadores, ocorreram centenas de lesões cerebrais traumáticas este ano. O acúmulo dessas e de todas as lesões não diagnosticadas ao cérebro desses atletas está causando uma terrível doença degenerativa chamada Encefalopatia Traumática Crônica, mais conhecida como ETC.
Segundo os especialistas da Universidade de Boston, a ETC “é uma doença degenerativa progressiva do cérebro encontrada em pessoas com histórico de trauma cerebral de repetição (em geral, atletas), incluindo concussões sintomáticas e pancadas assintomáticas. O traumatismo cerebral de repetição desencadeia a degeneração progressiva do tecido cerebral, incluindo um acúmulo anormal de proteína tau. Essas alterações no cérebro podem começar meses, anos, ou até décadas depois do último trauma ou do fim do envolvimento atlético ativo. A degeneração cerebral está associada aos sintomas comuns da ETC, que incluem perda de memória, confusão mental, juízo crítico comprometido, impulsividade, agressividade, depressão, tendência ao suicídio, parkinsonismo, e até mesmo demência progressiva”.
O futebol americano, da forma como é jogado atualmente, está destruindo vidas. Isso não é uma simples teoria: ao estudar os cérebros de 111 ex-jogadores da NFL, a Universidade de Boston concluiu que 110 deles sofriam de ETC.
Ao longo do ano passado, conversei com diversos jogadores aposentados da NFL e suas famílias, que contam que a ETC os destruiu. Um jovem aposentado me disse que sua memória de curta duração está tão ruim que ele tem dificuldade para lembrar o caminho de casa e muitas vezes se perde em conversas telefônicas simples, e acaba se repetindo várias vezes. Outros familiares me disseram que a ETC tranformou seus maridos, filhos e irmãos em monstros que não conseguem controlar a raiva, a fúria e os comportamentos autodestrutivos, mesmo com ajuda de terapia, medicamentos e um desejo sincero de melhora.
Quando nosso entretenimento custa os cérebros daqueles que estão nos entretendo, isso significa que ultrapassamos um limite indefensável e cruel de insensibilidade. À medida que esses riscos vão se tornando mais conhecidos, cada vez menos famílias permitem que seus filhos pratiquem esse esporte. Em certas regiões mais abastadas, onde as famílias não consideram o esporte um meio para obter uma bolsa de estudos na universidade ou construir uma carreira, os programas de futebol americano estão sendo encerrados.
Quando ouvir conservadores de todo o país, inclusive o presidente Donald Trump, se referirem aos jogadores da NFL como “filhos da puta” que são “ingratos” pelo que têm, lembre-se que esses homens colocam suas vidas em jogo cada vez que entram em campo para nos entreter.
O meu boicote à NFL é principalmente pelo modo como trataram Colin Kaepernick, e por ele ter sido sido incluído numa espécia de lista negra. Mas toda essa violência deixa minha decisão mais fácil. A NFL precisa tomar medidas drásticas para lidar com o que é feito aos corpos e cérebros de seus jogadores.
É verdade que a NFL criou um protocolo de concussões, mas o dano continua.
Tradução: Deborah Leão
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