Enquanto defende soberania e critica big techs, Brasil torrou R$ 10 bilhões em um ano com Google, Microsoft e Oracle

Licenças de bilhões

Enquanto defende soberania e critica big techs, Brasil torrou R$ 10 bilhões em um ano com Google, Microsoft e Oracle


Publicamente, o discurso é de defesa da soberania digital. Na hora de assinar contratos, porém, a teoria é outra. Enquanto o governo federal endurece o discurso sobre a interferência dos EUA e do domínio de grandes empresas de tecnologia, o Brasil segue jorrando bilhões e bilhões em dinheiro público para essas mesmas gigantes.

Um estudo inédito de pesquisadores da USP, a Universidade de São Paulo, e da UnB, Universidade de Brasília, e da FGV, a Fundação Getúlio Vargas, quantificou o tamanho deste mercado. Desde 2014, o país já gastou mais de R$ 23 bilhões em licenças de software, cloud e segurança de empresas como Google, Microsoft e Oracle. 

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Só no último ano – de junho de 2024 até junho de 2025 –, foram R$ 10 bilhões – R$ 4,6 bilhões pagos pelo governo federal, e o restante, por estados e prefeituras.

“Se um botão for apertado no Vale do Silício, existem políticas públicas que podem ser imediatamente interrompidas. Nossos dados públicos, sistemas e serviços essenciais estão condicionados a contratos de aluguel digital”, disse ao Intercept Brasil Ergon Cugler, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas da FGV e um dos autores do estudo

“Quantificar é o primeiro passo para enfrentar esse sequestro silencioso da máquina pública por interesses privados. Saber o valor da fiança é essencial para romper com essa lógica que aprisiona o Brasil”, destacou.

Para você ter uma ideia, esse é um valor suficiente para sustentar por quatro anos e meio a Universidade de Brasília. Ou pagar bolsas de estudo de todos os pós-graduandos do país por mais de um ano. 

“Em vez de investir no fortalecimento da indústria nacional de software, na formação de mão de obra qualificada ou no desenvolvimento de soluções abertas e interoperáveis, o país opta por contratar produtos prontos, ofertados por grandes corporações estrangeiras, especialmente pelas chamadas big techs”, cita a pesquisa.

O estudo foi feito levando em consideração dados públicos de compras, disponíveis no Painel de Preços, no Portal Nacional de Contratações Públicas e no Catálogo de Soluções de TIC com Condições Padronizadas. Os valores são referentes a compras de licenças de software, como pacote Office e Workspace do Google, serviços de hospedagem em nuvem e soluções de segurança.

Os pesquisadores ainda alertam que esse valor é a ponta do iceberg. Os números podem ser ainda maiores, já que não foram corrigidos e muitos contratos são feitos por meio de intermediárias, o que dificulta o rastreio. Além disso, falta transparência: não há um repositório central que detalha todas essas contratações, que são espalhadas em diferentes sistemas.

Só a Microsoft já abocanhou mais de R$ 3 bilhões 

A dependência das big techs atravessa todas as esferas de governos – municipais, estaduais e federal – e vem de longe, passando por todos os últimos governos. 

O governo Lula, apesar do discurso público sobre soberania digital, não apenas manteve a política, como também não deu sinais de que pretende diminuir a dependência estrutural das grandes empresas de tecnologia no serviço público. Os valores têm crescido nos últimos anos em todas as esferas de governo, inclusive na federal.

Nos últimos dois anos e meio, segundo os pesquisadores, foram gastos mais de R$ 17 bilhões em licenças, serviços de hospedagem em nuvem e segurança digital, “categorias estratégicas dominadas por fornecedores estrangeiros”, como definem os responsáveis pelo estudo.

Valores gastos em contratos disponíveis no Portal Nacional de Contratações Públicas.

Valores gastos em contratos disponíveis no ComprasNet.

Quatro empresas lideram as compras públicas. A primeira, disparada, é a Microsoft, que recebeu R$ 3,27 bilhões, segundo contratos listados no ComprasNet. Só em 2025, foi R$ 1,6 bilhão em serviços da big tech. Depois, vem a Oracle (R$ 1,02 bilhão), seguida por Google (R$ 938 milhões) e Red Hat, que não é uma big tech do porte das outras, mas é ligada à IBM (R$ 909 milhões).

“Hoje, há um descompasso entre a retórica da soberania digital e a prática orçamentária”, diz Ergon Cugler. “Isso ocorre, em parte, porque muitos gestores sequer enxergam o problema, e boa parte das lideranças políticas não compreende a gravidade.” Ele questiona, por exemplo, a normalização do uso do Microsoft Teams como plataforma de videoconferência. 

“É preciso transformar discurso em política pública estruturante. Enquanto isso não acontece, seguimos perpetuando uma lógica que bloqueia o desenvolvimento de soluções próprias e aprofunda nossa vulnerabilidade estratégica”, diz o pesquisador.

E qual é o problema? Os riscos para o Brasil – e para os brasileiros

Para os pesquisadores, o mais preocupante é o padrão dos contratos: são serviços cruciais para o funcionamento do estado brasileiro. Eles incluem licenças para sistemas operacionais, servidores em nuvem e plataformas de inteligência, todos utilizados em larga escala em forças de seguranças, hospitais, escolas e no próprio computador de quem toma as decisões no Brasil.

“Parte do funcionamento do estado brasileiro já depende de servidores, softwares e sistemas sob jurisdições estrangeiras. Isso significa que dados sensíveis, como históricos de cada um de nós, planos logísticos, comunicações institucionais, podem ser acessados, bloqueados ou manipulados por governos ou corporações de fora”, exemplifica Cugler.

Um exemplo das consequências é o que aconteceu com as universidades públicas brasileiras. Elas adotaram docilmente as soluções do Google para educação. A oferta, afinal, era gratuita, e incluía o Drive, docs e outros serviços úteis para estudantes e professores. Só que o Google decidiu, unilateralmente, restringir o tamanho do armazenamento. Resultado: alunos e professores perderam arquivos.  

Há problemas ainda mais graves. Se o caso Snowden ensinou que o poder de colaboração entre big techs e agências de espionagem não liga para fronteiras nem para direitos fundamentais, sob o governo de Donald Trump nos EUA o cenário fica ainda mais preocupante.

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O republicano já mostrou que tem conexões profundas com os tecnocratas do Vale do Silício – e não tem medo de fazer ameaças diante de seu poder e domínio. Na Europa, uma luz amarela já se acendeu em relação à dependência de serviços dos EUA, particularmente de computação em nuvem. Google, Amazon e Microsoft dominam dois terços do mercado europeu – ou seja, os dados e comunicações dos cidadãos e estados europeus estão sob jurisdição de Trump. Se o presidente dos EUA quiser, ele pode vasculhar e puxar a tomada da internet. E quase ninguém vai escapar.

Na Alemanha, por exemplo, o governo de um estado anunciou em junho que decidiu abandonar os serviços da Microsoft para adotar programas em código aberto. A Dinamarca fez o mesmo.

“Em um cenário de conflito internacional, mudança de governo em potências como os EUA, ou disputas comerciais, ficamos vulneráveis à espionagem, chantagem ou paralisação”, exemplifica Cugler. “Precisamos lembrar de algo que é concreto: existem milhares de metadados de cada um de nós em algum data center do Vale do Silício. É uma ameaça concreta à nossa soberania e à continuidade dos serviços públicos.”

O estudo veio em um momento oportuno. Nesta terça-feira, 8, ativistas, pesquisadores e políticos estarão em Brasília para discutir o tema e lançar um plano nacional e uma nova frente parlamentar mista para a soberania digital. Em um Congresso já dominado pelo lobby e pela ideologia do Vale do Silício, não vai ser fácil. Mas é um começo.  

O seu futuro está sendo decidido longe dos palanques.

Enquanto Nikolas, Gayers, Michelles e Damares ensaiam seus discursos, quem realmente move o jogo político atua nas sombras: bilionários, ruralistas e líderes religiosos que usam a fé como moeda de troca para retomar ao poder em 2026.

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