Planalto é o maior difusor de mentiras sobre a Amazônia no YouTube

Amazônia inventada

Planalto é o maior difusor de mentiras sobre a Amazônia no YouTube

A máquina da morte da extrema direita está literalmente botando fogo em nosso país, enquanto muitos fingem que não.

Ela tem trilhões de reais para gastar em propaganda, e a grande mídia está muito feliz em aceitá-los.

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Impulsionados por uma profusão de cliques e remunerados pelas ferramentas de monetização, canais do YouTube com viés de direita se empenham em difundir desinformação sobre Amazônia, mudanças climáticas e a sociobiodiversidade brasileira. E uma das principais fontes da desinformação veiculada por esses canais é o Palácio do Planalto.

Esse é o resultado da análise realizada pelo projeto “Amazonas: mentira tem preço”, que mapeou mais de 400 vídeos no YouTube, com cerca de 70 milhões de visualizações e 67 milhões de interações no total.

Discursos mentirosos ou distorcidos do presidente Jair Bolsonaro e dos seus filhos Eduardo e Flávio, com 5,2 milhões de seguidores, e de ministros do primeiro escalão são replicados em um exército de canais pró-governo mas que afirmam fazer jornalismo independente e têm milhares de seguidores. No time ainda estão youtubers negacionistas e revisionistas alinhados ao discurso presidencial. Dos canais analisados, cinco integram a lista dos 14 punidos pelo Tribunal Superior Eleitoral por suspeita de disseminar desinformação sobre o sistema eleitoral. Apesar de estarem na mira do TSE, Folha Política, Te atualizei, Vlog do Lisboa, Ravox e Emerson Teixeira seguem no ar sem problemas.

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“O YouTube, sem dúvida, é o grande protagonista da desinformação, o centro de produção dela. Em uma analogia com o tráfico de drogas, é como se os aplicativos fossem os aviõezinhos e o YouTube, a boca de fumo”, afirma Leonardo Nascimento, pesquisador de redes de desinformação e Coordenador do Laboratório de Humanidades Digitais da Universidade Federal da Bahia. “É uma logística de produção industrial de desinformação”.

A pedido da reportagem, a empresa Novelo, que pesquisa desinformação, usou algoritmos de automação e análise de dados para encontrar os vídeos mais vistos desde janeiro de 2019 em canais favoráveis a Bolsonaro que tivessem a temática socioambiental. A lista foi então verificada, descartando-se os que apenas mencionam palavras-chave mas não tratam do assunto, como por exemplo os qua trazem a palavra Amazônia mas fazem relação a um programa televisivo.

Garimpo em terras indígenas

Com 3,6 milhões de inscritos em seu canal do YouTube, o presidente Jair Bolsonaro é um dos principais difusores de desinformações sobre a temática socioambiental e a Amazônia na plataforma. O próprio presidente teve 32 vídeos de seu próprio canal analisados pela Novelo. Eles somam 4.626.547 visualizações. Em sua maioria, trata-se das lives semanais de Bolsonaro, também transmitidas pelo Facebook. Mas o conteúdo gerado por ele abastece outros canais, que replicam e reforçam seu discurso. Por isso, o nome Bolsonaro aparece em 177 títulos dos vídeos analisados.

Em 8 de agosto de 2019, numa de suas lives semanais, Bolsonaro recebeu dois indígenas de Roraima acompanhado de Ricardo Salles, então ministro do Meio Ambiente, e aproveitou para defender a mineração nas terras dos povos originários. “Tem um pessoal que usa o índio como massa de manobra, para demarcar cada vez mais terra. Para deixar ele isolado como se fosse um ser aí, um neandertal”, disse Bolsonaro. O vídeo alcançou 52.560 visualizações. Depois, foi replicado pelo canal Folha Política, o que garantiu mais 218.356 views.

Em outro vídeo, que ultrapassou 74 mil visualizações, o presidente postou um discurso de seu secretário nacional de Assuntos Fundiários, Luiz Antonio Nabhan Garcia , durante uma visita a Roraima. “Nossos irmãos índios de todo o Brasil querem trabalhar, plantar, garimpar, enfim, serem como nós”, escreveu Bolsonaro na descrição do vídeo. Boa parte da terra indígena Yanomami fica no estado, e foi invadida por mais de 20 mil garimpeiros ilegais, segundo a Hutukara Associação Yanomami.

Cercado de alguns representantes de comunidades indígenas, Garcia, que é ex-presidente da União Democrática Ruralista, disse estar “traduzindo o que pensam as comunidades indígenas de todo o Brasil”, e que “os índios querem fazer o garimpo do ouro das suas terras, do diamante, dentro da legalidade”. As frases dele vão na contramão do que defendem organizações nacionais que representam os povos indígenas no país, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a Apib.

Os filhos de Bolsonaro também são responsáveis por propagar as mentiras. Flávio Bolsonaro, 0 91, senador pelo PL do Rio, postou em seu canal com mais de 380 mil inscritos um discurso do pai e presidente em defesa do garimpo. Ele foi proferido durante a inauguração, em 2021, de uma ponte de madeira em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas.

No canal do 02, o deputado estadual Eduardo Bolsonaro, do PL de São Paulo, um vídeo com mais de 464 mil visualizações usa a voz do biólogo Richard Rasmussen para dar um verniz de especialista à defesa da posição política do governo. Entrevistado pelo filho do presidente, Rasmussen afirma que “seria burrice não aproveitar uma Amazônia preservada, tem muita riqueza lá”. Só em 2021, uma área equivalente à metade do estado de Sergipe foi destruída na Amazônia.

‘O que dá dinheiro nas plataformas é o tempo de atenção do usuário, views, compartilhamentos, cliques, comentários, likes.’

“Existe uma intenção política por trás da divulgação orquestrada de fake news sobre esse tema”, afirma Nina Santos, pós-doutoranda em Democracia Digital do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia.

Para o advogado e pesquisador em desinformação e regulação em tecnologia da Universidade de Oxford, Caio Machado, grandes empresários, políticos, fazendeiros, grileiros e garimpeiros, além do próprio criador do conteúdo, representam a maior parcela dos beneficiados com narrativas enganosas. “O que dá dinheiro nas plataformas é o tempo de atenção do usuário, views, compartilhamentos, cliques, comentários, likes. É isso o que dá ibope”, explicou. “Tem todo um mercado de cliques de desinformação pelo engajamento, que acaba sendo conivente e tem quase que uma simbiose com a desinformação” .

Segundo as regras do YouTube, para ser remunerado com a ferramenta de monetização da plataforma, um canal precisa ter ao menos mil inscritos e acumular mais de quatro mil visualizações nos últimos 12 meses. Basta atender esses requisitos e seguir as demais diretrizes da plataforma para ser recompensado com valores de 0,25 a 4,50 dólares a cada mil visualizações, algo entre R$ 1,17 e R$ 21, na cotação atual.

Distribuição em rede

Discursos negacionistas ganham potencial para viralizar com o estímulo de Bolsonaro e seus apoiadores. Além de gerar conteúdo para esses canais por meio de seus discursos, o presidente também atua na outra ponta, replicando o conteúdo produzido por eles. “O canal faz o vídeo, o presidente vai lá e responde a ele. Gera uma onda gigantesca com a replicação. O simples interesse da narrativa pode render receita direta para os canais, como o financiamento por empresas do agro, ou indiretamente, com a replicação desses vídeos e a remuneração pelo YouTube. E geralmente é tudo ao mesmo tempo”, diz Machado.

Com 2,6 milhões de seguidores, o canal Folha Política, investigado no inquérito do STF que apura a organização de atos antidemocráticos, está entre os principais difusores de desinformação sobre a Amazônia. Em geral, os vídeos distribuídos pelo canal são gerados por emissoras públicas, como a TV Brasil e a TV Câmara. Nos primeiros 30 segundos de seus vídeos, apresenta ao internauta a seguinte mensagem: “assista ao vídeo e deixe o seu ‘like’ se você apoia o governo Bolsonaro”.

Os vídeos mostram mensagens supostamente patrióticas, que repetem elementos bastante comuns no discurso dos apoiadores de Bolsonaro, como a importância da Amazônia para a tese ilusória e fictícia sobre a “defesa da soberania nacional” ou teorias da conspiração como a que diz que, por trás do interesse em preservar, há governos estrangeiros aliados a ONGs internacionais interessadas em dominar a Amazônia.

O canal também replica os discursos conspiratórios do general da reserva do Exército Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, do deputado federal Coronel Chrisóstomo, do União Brasil de Rondônia, e do ex-comandante do Exército, general Edson Pujol – só um discurso de tom conspiracionista dele alcançou mais de 800 mil visualizações.

Outro vídeo, de agosto de 2019, ultrapassou 1 milhão de views sugerindo que o desmatamento é apenas um discurso inventado, quando dados do próprio governo mostram que o Brasil bateu três recordes consecutivos de desmatamento nos três primeiros anos com Bolsonaro no poder. A legenda atribui uma fala ao presidente: “Não é à toa que outros países tentam ganhar a guerra da informação para que nós venhamos a perder a soberania sobre essa área”.

Outra artimanha bastante comum é confundir o espectador com apresentação de dados falsos ou descontextualizados ou mesmo com a distorção de resultados de pesquisas.

Frases de efeito com informações falsas ou negacionistas são o carro chefe de vídeos da produtora Brasil Paralelo, com 2,44 milhões de inscritos no YouTube. “A Amazônia não está em chamas, a agricultura não é a causadora dos males da questão ambiental no Brasil”, diz o professor e cientista político Christian Lohbauer, candidato a vice-presidente da República na chapa de João Amoêdo em 2018, em um vídeo com menos de 50 segundos e mais de 100 mil visualizações. No canal, o vídeo está ultrapassou a marca de dois milhões de visualizações.

Em outro, com mais de 50 mil visualizações, o antropólogo Edward Luz, que já foi detido por tentar impedir o trabalho do Ibama, afirma que as “ONGs no Brasil plantam indígenas para colherem benefícios financeiros posteriores”. O produto final é um documentário longa-metragem oferecido na íntegra e que está prestes a alcançar dois milhões de visualizações.

O canal Foco no Brasil, que reúne 2,69 milhões de seguidores, alcançou 384 mil views com um vídeo em que o presidente afirma que a Amazônia não pega fogo “porque é úmida”. “Nem se você pegar um fósforo, álcool”, afirmou Bolsonaro a um grupo de apoiadores no “cercadinho” da porta do Palácio da Alvorada. Dados oficiais do próprio governo desmentem o presidente. Já o canal Te Atualizei, com 1,44 milhões de inscritos e punido pelo TSE, isenta Bolsonaro do elevado índice de desmatamento na Amazônia e, em um vídeo postado em agosto de 2019, atribui as queimadas ao “fenômeno natural da seca”, versão refutada por pesquisadores.

Questionamos o YouTube sobre os vídeos analisados. Em resposta, a assessoria da plataforma informou que alguns foram excluídos e, outros, desmonetizados, sem especificar quantos ou quais. Informações falsas deveriam ser retiradas do ar, mas o YouTube não tem se mostrado muito eficaz para filtrar a desinformação usada para ganhar dinheiro.

Em janeiro deste ano, em carta aberta à CEO da plataforma, Susan Wojcicki, mais de 80 organizações de checagem de fatos no mundo todo chamaram o YouTube de “um dos principais canais de desinformação e de propagação de informações falsas online em todo o mundo.” O documento diz ainda que ações contra as fake news foram insuficientes e sugere uma série de recomendações para combater os propagadores de desinformação, como a desmonetização de conteúdo.

Brechas na regulação

Para a pesquisadora Nina Santos, os mecanismos de autorregulação das plataformas (ou seja, o fato de elas determinarem as próprias regras de combate aos conteúdos inverídicos) não são suficientes para combater esse processo desinformativo. “Acabamos ficando na mão das decisões dessas empresas sobre o que pode e o que não pode no debate público. Precisamos ter algum tipo de instrumento externo”, defende.

Em nota, o YouTube afirma que criou regras para a disseminação de informações ligadas à covid-19. Também atualizou as políticas de monetização e anúncios e passou a proibir a remuneração de conteúdos negacionistas sobre as mudanças climáticas. Mas, para vídeos que negam desmatamento e queimadas, motores da crise do clima no Brasil, aparentemente a diretriz não vale.

O YouTube diz ainda que, de julho a setembro de 2021, removeu seis milhões de vídeos em todo o mundo e pelo menos 420 mil no Brasil. As denúncias de usuários resultaram na remoção de 233 mil vídeos. Ainda de acordo com a empresa, os conteúdos publicados na plataforma precisam seguir as diretrizes da comunidade que, entre outras práticas, proíbem a disseminação de desinformação. Caso sejam descumpridas ou se aproximem do que chamaram de “limite”, pode haver retirada daquele vídeo do programa de monetização ou, até mesmo, fechamento de um canal. “A desinformação corrói a confiança do público e dos anunciantes”, diz um trecho da nota, que atribui a fala ao diretor de produto do YouTube, Neal Mohan.

Entramos em contato, por telefone e email, com todos os canais cujos vídeos foram citados e com os políticos cujos depoimentos em vídeo foram registrados nesta reportagem. Só o jornalista Roberto Carlos de Jesus Oliveira, responsável pelo canal RCTV Interativa Oficial, respondeu. Ele afirmou que o vídeo com imagens de indígenas isolados tinha intenção de “mostrar que a Amazônia precisa ser respeitada”.

Os responsáveis pelos canais “Jair Bolsonaro”, “Flavio Bolsonaro”, “Eduardo Bolsonaro”, “Ravox” e “Vlog do Lisboa”, a Empresa Brasil de Comunicação, responsável pela TV Brasil, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, general Augusto Heleno, o secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Luiz Antônio Nabhan Garcia, o general do Exército brasileiro Edson Pujol, o deputado federal Coronel Chrisostomo, o professor Christian Lohbauer e o biólogo Richard Rasmussen foram procurados pela reportagem para prestar esclarecimentos mas não responderam.

O professor Emerson Teixeira, do canal “Emerson Teixeira” no YouTube, afirmou que o conteúdo de seus vídeos são checados por ele mesmo, “baseado em fatos e não em opiniões”, e que não recebe dinheiro pelo canal. “Sou funcionário público e não dependo do canal”, disse, por email. Sobre a decisão do TSE que suspendeu a monetização de seu canal e de outros canais bolsonaristas, por postarem conteúdos ofensivos à democracia e ao sistema eleitoral, Teixeira afirma que nunca publicou “fake news” e que as provas de seu delito nunca foram mostradas a ele. “Sou perseguido político por ter apoiado o presidente”, afirmou.

A Câmara dos Deputados, responsável pela operação da TV Câmara, afirmou em nota que o conteúdo exibido na televisão e no canal do YouTube “pode ser reproduzido e divulgado na íntegra e distribuído de forma não comercial por quaisquer meios de comunicação” e que não é permitido “editar ou alterar o conteúdo”. Sobre o conteúdo dos discursos parlamentares, a assessoria afirma que “conforme o artigo 53 da Constituição Federal, os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Ainda segundo a nota, o canal da Câmara no YouTube “não recebe por visualizações e não é monetizado”.

A Brasil Paralelo, por meio de sua assessoria de imprensa, disse que a afirmação de que o documentário Cortina de Fumaça faria parte de uma lista de vídeos “com desinformações sobre a Amazônia” é mentirosa. “Todos os documentários da Brasil Paralelo passam por uma longa gestação, extensas pesquisas e aprofundamento sobre os temas antes de se iniciar a produção. Cortina de Fumaça traz fatos que são confirmados com dados e reportagens”. A produtora afirmou que ouviu para o documentário “lideranças indígenas, fundadores de ONGs, jornalistas, entre muitos outros nomes importantes para um debate qualificado e plural”. Leia aqui a resposta da produtora na íntegra.

Colaborou Rafael de Pino.

Essa reportagem integra o especial jornalístico Amazonas – Mentira tem preço, produzido pela FALA e pelo InfoAmazonia.

Atualização: 14 de abril de 2022, 11h35
O texto foi atualizado para incluir o posicionamento da EBC, Emerson Teixeira, Câmara dos Deputados e Brasil Paralelo.

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