Depois de ofender e objetificar mulheres ucranianas, Arthur do Val, deputado estadual em São Paulo, viu seu mundo ruir. Ele abandonou seu partido, o Podemos, para não ser expulso, retirou sua pré-candidatura ao governo do estado e enfrenta agora 21 pedidos de cassação de mandato no Conselho de Ética da Assembleia Legislativa de São Paulo.
Seu pedido de desculpas foi insosso. E parece ter convencido somente as lideranças do Movimento Brasil Livre, grupo conservador que ajudou a fundar por volta de 2016. Embora tenha anunciado que vá deixar o movimento, Arthur recebeu apoio de líderes, o que desagradou parte da ala feminina. Em um vídeo que acabou viralizando nas redes sociais é possível ver Renan Santos, principal nome do MBL atualmente, aos gritos defendendo o amigo e convocando outros membros a fazer o mesmo. “Foi uma declaração merda, mas isso não é roubar. E ele tá sendo cassado. A gente precisa começar a agir já”, enfatizou Renan.
Indignada, uma das integrantes do MBL procurou o Intercept para denunciar que essa não é a primeira vez que o machismo pauta as decisões do movimento. Ela viu diversas declarações misóginas em grupos privados, mulheres silenciadas e tentativas de inibir a participação feminina. “Marielle foi só mais uma morta”, disse um integrante do movimento em uma discussão interna no WhatsApp.
Ela contou sua história com o MBL ao Intercept – e cedeu prints de conversas em grupos internos no movimento. Procurei Renan Santos para ouvir sua versão, mas ele não respondeu às minhas mensagens no WhatsApp. O nome dela não será divulgado para evitar eventuais retaliações. Leia o relato abaixo.
Eu tive experiências ruins na esquerda e fiquei meio traumatizada. O que me atraiu no MBL foi o fato de ser uma galera mais ponderada, pendendo para o centro. Era um movimento que aparentemente tinha uma proposta de apoiar um mercado mais livre, abraçar minorias, sem nada reacionário. Eles tinham essa coisa de “ah, a gente apoia mulher, a gente tem gays aqui, pessoas negras”. Me aproximei porque eles pareciam ser bem transparentes e não estavam fechados com o Bolsonaro na época. Pelo contrário, eles “queriam a cabeça” do Bolsonaro.
As grandes lideranças do MBL hoje são o Renan Santos, o Arthur do Val, o Kim Kataguiri e o Ricardo Almeida. Mas quem traça estratégia e ordena a militância são Renan e Ricardo. O Ricardo é mais discreto. Nas lives que o MBL faz, ele é um cara mais quieto, e o Renan é o louco que fica gritando.
Quando surgiu esse negócio do Arthur do Val, eu e algumas outras mulheres do movimento queríamos a expulsão dele e uma maior vigilância por parte dos líderes a respeito de pessoas que se declaram abertamente misóginas e machistas no movimento. E há conivência total por parte dos líderes da Nacional, que é a autoridade máxima do MBL.
Está bem claro no grupo do Telegram do Renan [o entendimento de] que o áudio do Arthur não tem nada demais, que ele está sofrendo cancelamento.
O Renan tem, sim, um histórico de viajar para a Suécia e ir pro interior fazer aquilo que o Arthur contou nos áudios. Todo mundo sabe disso, mas todo mundo resolveu fingir demência e jogar luz sobre o que seria uma fala infeliz do Arthur para que as atenções não se voltassem tanto para o “tour de blonde” do Renan. Aliás, é muito a cara dele nomear isso assim.
Comecei a ver a militância, gente de liderança de núcleo, fazendo piada com o assunto.
Tem um grupo do movimento que se chama MBL Mulher, com perfil no Instagram e grupo no WhatsApp. Quando rolou a polêmica do Arthur na Ucrânia, as meninas do MBL ficaram revoltadas e começaram a falar, a xingar, e aí a moderadora do grupo falou que ia levar as reivindicações pro Renan. Só que ela começou a chorar que nem uma criança, dizendo que estava sendo pressionada a fazer algo que ela não queria, que era soltar uma nota de repúdio às falas do Arthur e que, naquele momento, o que tinha que haver era união e que nós estávamos sendo desleais ao grupo.
A figura do Renan enquanto líder não é muito benquista dentro do movimento. E isso já faz um bom tempo. Qualquer chamada de atenção, ele já classifica como uma ditadura do politicamente correto.
‘O movimento é realmente um espaço muito mais masculino. E aquela base feminina que está ali, está pra seguir a cartilha que é orientada’.
Nosso grupo ficou revoltado, houve um debate intenso por uns dois dias, e as mulheres que não quiseram baixar a cabeça foram basicamente enxotadas. As meninas que tentaram levar a queixa de que existe uma voz extremamente misógina, nojenta e podre crescendo dentro desse movimento foram massacradas. Quando não receberam ameaças.
Todas as mulheres do MBL que são figuras públicas e se pronunciaram no caso do Arthur não ultrapassaram o limite de crítica permitida. Porque sempre há um briefing quando ocorre uma crise. E se estabelece o que pode ou não pode ser dito. Quem ousa erguer o tom um pouco acima do que é permitido é enxotado, é execrado, é ofendido e acaba virando “traidor do movimento”.
O motivo de eu estar fazendo essa denúncia? As mulheres que não aceitaram coadunar com a mais remota possibilidade de isso estar sendo praticado com o dinheiro de suas doações foram assediadas e ofendidas.
Por dentro dos grupos de WhatsApp do MBL
O que ninguém sabe é que existe um grupinho seleto de WhatsApp no MBL em que são ditas as coisas mais bárbaras e horrendas possíveis. A misoginia come solta, o racismo é uma coisa de louco, a xenofobia etc. Tem de tudo.
Quando eu entrei no canal do MBL Mulher, eu vi que os livros que elas revisam são muito enviesados. Eu perguntei quem indicava os livros para elas revisarem e disseram que era o Ricardo. Então, é óbvio que ele vai colocar as meninas pra fazer um estudo enviesado do feminismo. É óbvio. Isso me incomodou. Eu dava sugestão, e a galera não ouvia. Muitas achavam ok ele escolher esses livros.
O Ricardo tem gerado em torno de si uma coisa que chamam de “almeidismo”. Às vezes se referem a isso como um meme, às vezes o meme parece que passa um pouco da conta. Existem meninas muito leais a ele.
Tem muito mais homem do que mulher no MBL. O movimento é realmente um espaço muito mais masculino. E aquela base feminina está ali para seguir a cartilha que é orientada.
E a coisa não se resume ao mundo digital. Na festa do Congresso Nacional do MBL eu vi cara maior de idade pegando adolescente. É uma coisa inacreditável.
Eu, que tô aqui dentro, vejo o tratamento dispensado às minorias. Agora o Renan fica pagando de vítima, de que está sofrendo cancelamento. “Ai, porque o MBL está sendo perseguido. É uma grande perseguição da mídia, é uma grande perseguição do PT, do Bolsonaro”. Até da terceira via ele diz que está sofrendo perseguição. É uma coisa de louco.
O MBL LGBT desapareceu porque eles chegaram a uma conclusão muito progressista, muito linda, muito século 21, de que bicha faz muita fofoca e cria muito problema. Então, o melhor era acabar com o MBL LGBT de vez.
O MBL está se espalhando pelo Brasil e pretende eleger lideranças políticas em cada estado brasileiro. É nisso que eles estão apostando para esse ano. Eles vão investir muito na academia MBL, onde são formadas essas novas lideranças.
Recentemente, eu estava discutindo com um amigo que saiu do MBL. E ele levantou um questionamento interessante: por que qualquer projeto à direita, mesmo que mais liberalóide e nada verde-oliva, parece sempre estar fadado a ser uma caricatura no Brasil? Respondi o que, para nós, que temos o mínimo de consciência social, parece óbvio, mas, para um playboy de São Paulo, de família endinheirada, que se julga um “desajustado” apenas por não ter conseguido terminar uma faculdade de Direito e quebrado uma empresa, parece tão inconcebível: o Brasil é a terra onde a esquerda floresceu e encontrou o apoio das massas porque soube fazer a pesquisa de campo da sociedade em que estava pisando; soube fazer a leitura correta do ambiente.
Um grande partido de esquerda sabe que, embora a Constituição garanta que “todos os cidadãos sejam iguais perante a Lei”, ainda há muitos telhados de vidro a serem quebrados, e é por isso que ainda persistem os sindicatos, os movimentos negro, feminista, quilombola, sem-terra, etc. Essa persistência encontra forças em insatisfações reais: o pobre e o preto, a mãe solteira, indígena, asiática, branca ou preta, enfim, todas as minorias sofrem discriminações em proporções diferentes, mas discriminações reais. As esquerdas, na verdade, são quem está mais atento a essa realidade e quem se propõe a abraçar o grito sufocado dessas categorias. Isso ocorre porque elas têm noção real de povo. O MBL, não. Por essa razão, nunca elegerá um presidente. Se ainda tem pretensão de chefiar a corrida pelas eleições de 2022 à frente da terceira via, seria melhor que esquecesse essa vã fantasia de vez.
Se, por um lado, Renan Santos lê diversos autores de esquerda, é apenas para conhecer o território inimigo, e não para entender as necessidades do povo brasileiro, pelo qual já demonstrou, em stories diversos de Instagram e em lives do YouTube, não nutrir muito afeto. Ricardo Almeida confessa publicamente que minorias são boas no movimento para fins de cálculo eleitoral. É o formador intelectual das novas lideranças do movimento e não tem muito pudor em se mostrar avesso a avanços mais progressistas dentro da estrutura do MBL.
O MBL se julga responsável por liderar o impeachment contra a Dilma. É como um nobre de fraldas que atribui a si maior importância do que a que realmente tem e que, por ter aprendido sobre Adam Smith, Mises ou Rothbard – autores que pensaram a economia em contextos pouquíssimo aplicáveis à realidade brasileira –, não quer enxergar a verdadeira miséria de seu país. Por isso, esse nobre esperneia, exigindo redução de impostos, enquanto se senta sobre uma pilha de latinos feridos, considerados gente de segunda classe por uma elite que, a cada estação e a cada carnaval, veste uma máscara nova.
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