MBL sabia que era ‘impossível defender’ Flavio Bolsonaro, mas minimizou rachadinha

‘tá muito claro que é várzea’

MBL sabia que era ‘impossível defender’ Flavio Bolsonaro, mas minimizou rachadinha

Eleições 2020

Parte 2


Acúpula do MBL olhava para o noticiário sobre a rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro, em janeiro de 2019, e se via num dilema: como apoiar o governo ao mesmo tempo que considerava que era “impossível defender” o senador? Como criticar abertamente a família e um amigo do presidente da República cuja eleição o grupo tinha apoiado e de cujo governo se tornara fiador?

Áudios inéditos enviados ao Intercept mostram os bastidores do Movimento Brasil Livre, grupo que ganhou notoriedade a partir de 2014. Até ali, o MBL rebolava para se manter na base do presidente Jair Bolsonaro – uma ruptura que aconteceria meses depois. Nas gravações, os líderes do grupo revelam as estratégias para tentar aliviar a repercussão do caso das rachadinhas entre seus apoiadores. Enquanto isso, crescia a irritação dos líderes do movimento com os ataques coordenados pelo vereador Carlos Bolsonaro.

O material foi enviado pela mesma fonte do arquivo da Vaza Jato, no mesmo período, em um pacote separado, e não guarda relação com as conversas dos procuradores da República e do ex-juiz e ex-ministro bolsonarista Sergio Moro. A análise dos áudios demandou meses de trabalho e também envolveu apuração com fontes externas e cruzamento de informações e eventos citados nas próprias conversas.

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As gravações foram trocadas por pessoas públicas como o deputado estadual e candidato à prefeitura de São Paulo Arthur do Val, conhecido como Mamãe Falei, e os irmãos Alexandre e Renan Santos, fundadores e coordenadores nacionais do MBL. Todos os áudios usados na reportagem são reproduzidos na íntegra, com o mesmo conteúdo dos enviados ao Intercept, sem cortes ou edição.

A ruptura com o bolsonarismo, exposta em detalhes (e em termos nada sutis) nas mensagens de áudio, cria um mal-estar para Mamãe Falei, que disputa a prefeitura de São Paulo pelo Patriota. Em fevereiro passado, quase toda a cúpula do MBL se filiou à legenda. Mas o partido, ainda um dos nanicos da política brasileira, é presidido por um bolsonarista de carteirinha, Adilson Barroso.

Arthur do Val, o Mamãe Falei, e Kim Kataguiri paparicam Bolsonaro no anúncio do apoio do MBL ao ex-militar de extrema direita no segundo turno das eleições de 2018.

‘É corrupção, mas não escândalo’

A relação entre MBL e Bolsonaro se tornou visível logo após o resultado do primeiro turno das eleições de 2018. Naquele momento, já eleito deputado federal por São Paulo, Kim Kataguiri afirmou que daria um “voto útil” ao candidato da extrema direita. “Não é o cenário ideal, existem pessoas mais preparadas [para a presidência], mas infelizmente é o que a gente tem”, ele justificou ao UOL.

Para Kataguiri, eleger Fernando Haddad, do PT, seria uma “ameaça à democracia”. Alguns dias depois, lideranças do movimento e deputados eleitos pelo partido Novo, o mais alinhado ao MBL, se reuniram com Bolsonaro para declarar apoio a ele.

Logo após o segundo turno, emergiram as primeiras denúncias sobre o esquema de desvio de dinheiro público via “rachadinhas” nos salários de servidores do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Arthur do Val, em dezembro, ainda estava cético: “eu não sei [se Flávio é corrupto], mas eu torço para que ele seja inocente”, disse ele em um vídeo que tinha como título “Flávio Bolsonaro é corrupto?”.

Mas, segundo as conversas trocadas por aplicativo de mensagens, o apoio alegadamente pragmático ao presidente começou a ruir em janeiro de 2019, nos primeiros dias do novo governo, quando um novo relatório do Coaf apontou as movimentações financeiras suspeitas de Flávio Bolsonaro, e o ministro Luiz Fux mandou suspender as investigações a pedido do filho do presidente.

À época, o MBL debateu internamente, em áudios, como se posicionar em relação às denúncias sobre rachadinhas no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O grupo de líderes do movimento buscava uma saída para não ter de condenar com veemência o filho do presidente cuja eleição havia apoiado. Era uma situação constrangedora: foram afirmações duras e pregando intolerância absoluta com desvios éticos que fizeram a fama do movimento durante os protestos de rua contra escândalos de corrupção nos governos do PT.

Em dois áudios, Renan Santos, coordenador nacional do MBL, expôs a questão (clique no botão play para ouvir):

 

Renan Santos

 

 

Renan Santos

 

Naquele momento, portanto, o MBL estava disposto a minimizar o caso das rachadinhas – que meses depois teria desdobramentos como a prisão de um homem de confiança do presidente da República, Fabrício Queiroz, pivô do caso, na casa do ex-advogado da família Bolsonaro.

Assim foi feito. Em vídeos e posts públicos, o grupo manteve a retórica de que seguiria com o governo e sua agenda de reformas econômicas. Na mira do MBL, naquele momento, estava apenas o comportamento de confronto que Bolsonaro manifestava em relação ao Congresso.

The son of the candidate Jair Bolsonaro, Flavio Bolsonaro, arrives at the Albert Einstein hospital on the afternoon of Friday 07, Bolsonaro, who suffered an attack on the afternoon of yesterday in Sao Paulo. Juiz de Fora, MG, while fulfilling campaign agenda, was transferred to Sao Paulo this morning to continue the recovery treatment, his condition is considered serious and stable. Photo: Suamy Beydoun / AGIF (via AP)

Flávio Bolsonaro tenta explicar as rachadinhas à imprensa: o MBL achava difícil acreditar nas justificativas do filho 01 do presidente, mas vacilava em condená-lo publicamente.

Foto: Suamy Beydoun/AGIF via AP

‘É impossível você defender o Flávio’

Mas a reação da família Bolsonaro às denúncias contra Flávio, replicadas pelo exército de robôs e perfis em redes criados pelo “gabinete do ódio”, espantou o MBL. Mesmo após o senador e filho 01 assumir que os depósitos revelados pela imprensa eram verdadeiros, a narrativa preponderante no bolsonarismo era de que se tratava de uma armação para prejudicar o presidente.

Fazer barulho para emplacar uma narrativa mentirosa é algo que o MBL sabe fazer bem. Um caso notório é o da exposição Queermuseu, num espaço cultural que pertence ao banco Santander, em Porto Alegre, fechada depois de o grupo fazer acusações mentirosas de que nela havia incentivo à pedofilia. Agora, porém, a mentira do presidente que ajudara a eleger passou a incomodar o MBL:

 

Remetente não identificado

 

Em janeiro de 2019, Flávio havia feito uma série de posts no Instagram para se defender das acusações envolvendo o esquema de rachadinha. Em um deles, de 22 de janeiro, ele confirmava o recebimento de depósitos parcelados em valores pequenos pela venda de um imóvel.

Em outro áudio, Renan Santos conta aos colegas ter sido procurado pelo jornalista Cláudio Dantas, do site O Antagonista, que lhe trazia uma dica para ironizar Carlos Bolsonaro:

 

Renan Santos

 

Carlos de fato seria investigado por manter funcionários fantasmas. Naquele momento, porém, o confronto direto com o furioso filho 02 não parecia estar nos planos do MBL. Em vez disso, Renan repassa uma sugestão de Luciano Ayan (pseudônimo de Carlos Augusto de Moraes Afonso, preso em julho de 2020 numa investigação que mirou o MBL):

 

Renan Santos

 

Mamãe Falei retrucou que aquele não era o momento para comprar briga com o bolsonarismo. Para ele, isso não deveria ocorrer antes de o governo “afundar um pouco mais”:

 

Mamãe Falei

 

Mas já havia ressentimentos aflorando. Renan Santos lembrou aos amigos que estava cansado de ouvir “indiretinhas desse bosta”, fazendo referência a Carlos Bolsonaro:

 

Renan Santos

 

Brasil, São Paulo, SP, 25/09/2015. Retrato de Renan Santos (e), Kim Kataguiri (c) e Alexandre Santos (d), candidatos à eleição do Movimento Brasil Livre (MBL). - Crédito:NILTON FUKUDA/ESTADÃO CONTEÚDO/AE/Código imagem:196467

Renan Santos, Kim Kataguiri e Alexandre Santos: hesitação entre se manter nas graças do bolsonarismo e responder a Carlos Bolsonaro.

Foto: Nilton Fukuda/Estadão Conteúdo/AE

‘Eu tô com o Bolsonaro, mas ele que se cagou’

Alexandre Santos, o Salsicha, deu razão a Mamãe Falei, ainda que projetasse novos desgastes para o MBL por causa das suspeitas de que desviar dinheiro público era rotina nos gabinetes do clã presidencial.

 

Alexandre Santos (Salsicha)

 

Salsicha ainda sugeriu uma saída para que o MBL não entrasse em confronto aberto com o bolsonarismo: franquear as redes sociais do movimento para que Flávio pudesse se defender “sem risco da imprensa manipular”.

 

Alexandre Santos (Salsicha)

 

Salsicha ainda trouxe mais um motivo para que Flávio fosse poupado da ira com que o grupo presenteia seus adversários:

 

Alexandre Santos (Salsicha)

 

Mesmo assim, se manteve aberto à ideia da ruptura:

 

Alexandre Santos (Salsicha)

 

Salsicha continua, respondendo a colegas:

 

Alexandre Santos (Salsicha)

 

Mas havia riscos em fazer isso, avaliou Mamãe Falei:

 

Mamãe Falei

 

O problema era que Kim Kataguiri e Fernando Holiday, dois dos três líderes do MBL com mandato parlamentar, já haviam criticado Flávio em suas redes sociais. Kataguiri disse que a história “cheirava mal”. Para um dos líderes do MBL, que não conseguimos identificar, o colega se precipitara:

 

Remetente não identificado

 

Kim Kataguiri e Mamãe Falei então gravaram vídeos colocando em prática as estratégias debatidas no grupo de mensagens. Como combinado, o tom usado foi cauteloso, sem críticas duras ou cobranças públicas ao senador. Foi como se Flávio fosse tema de um comentário da TV Record, principal aliada do bolsonarismo na mídia.

Com isso, ao menos àquela altura o MBL conseguiu evitar se tornar um alvo preferencial do bolsonarismo. Salsicha já tinha percebido qual seria o custo da ruptura com o clã presidencial e seu exército virtual:

 

Alexandre Santos (Salsicha)

 

Mas mesmo Salsicha mostrou perceber que a ruptura seria inevitável:

 

Alexandre Santos (Salsicha)

 

Brasil, Brasília, DF, 01/01/2019. Leonardo Rodrigues de Jesus (e), o Leo Índio, sobrinho do presidente Jair Messias Bolsonaro, acompanhado do vereador Carlos Bolsonaro (PSC), filho do presidente, durante a cerimônia de posse no Palácio do Planalto. - Crédito:DIDA SAMPAIO/ESTADÃO CONTEÚDO/AE/Código imagem:223017

À direita, Carlos Bolsonaro, o filho 02 e arquiteto das redes sociais bolsonaristas: “Eu prefiro muito mais um político corrupto, vagabundo, do que eles”, diria Renan Santos.

Foto: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo/AE

‘É uma galera asquerosa’

A desconfiança quanto a Carlos Bolsonaro e seu exército virtual, porém, não se dissipou. De outro lado, as suspeitas de desvio de dinheiro no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro se avolumavam.

As duas coisas parecem ter reforçado a impressão do MBL de que se distanciar do presidente seria inevitável.

Em meio à tensão, o MBL buscou um encontro discreto com Gustavo Bebianno, então ministro da Secretaria-Geral da Presidência, que logo se tornaria pivô da primeira crise política do governo. A intenção, segundo os diálogos, era coletar informações que pudessem ser usadas contra Bolsonaro. Bebianno era visto por muitos – e, aparentemente, também pelo MBL – como detentor de segredos que poderiam ferir a imagem pública de Bolsonaro e de seus filhos (ele morreu em 20 de março de 2020, aos 56 anos, de infarto).

Um dos coordenadores da campanha que levou Bolsonaro ao Planalto, Bebianno trabalhava ao lado do presidente em Brasília. Mas a relação começou a azedar quando a Folha de S.Paulo publicou reportagem mostrando que o PSL entregara R$ 400 mil a uma candidata laranja em Pernambuco na época em que era presidido por Bebianno.

A crise do “laranjal do PSL” estremeceu a confiança do presidente em Bebianno. Bolsonaro fez de tudo para se descolar da crise, e isso incluía queimar o aliado fiel. Tentando apaziguar os ânimos, o então ministro sem querer aprofundou a crise ao afirmar ao jornal O Globo que conversara três vezes num único dia com Bolsonaro – à época internado no hospital Albert Einstein, em São Paulo, para uma cirurgia decorrente do atentado à faca que sofreu. Carlos Bolsonaro, que acompanhava o pai, disse que a afirmação de Bebianno era mentira.

Foi em meio a esses acontecimentos que Renan Santos informou os colegas que procurara o humorista André Marinho para chegar a Bebianno. André é filho de Paulo Marinho, suplente de Flávio Bolsonaro no Senado e atualmente desafeto do clã presidencial. Marinho e Bebianno também eram muito próximos.

 

Renan Santos

 

Em outro momento da troca de áudios sobre Bebianno, Renan Santos não poupou críticas aos Bolsonaro:

 

Renan Santos

 

O encontro com Bebianno de fato ocorreu, como apurou o Intercept. Um ex-integrante do MBL que tinha acesso à cúpula do grupo nos confirmou que Renan Santos viajou a Brasília poucos dias depois de dizer aos outros integrantes que iria se reunir com Bebianno. Isso aconteceu nos últimos dias de Bebianno no governo – ele foi demitido em 18 de fevereiro de 2019.

Segundo esse ex-integrante, que pediu para não ser identificado por temer represálias, o objetivo do encontro era buscar a “pacificação pela violência” – ou seja, encontrar formas de conter Bolsonaro por meio de informações privilegiadas que poderiam chantageá-lo ou, em último caso, endossar um pedido de impeachment. Procuramos o MBL com perguntas sobre esse e outros áudios. O movimento, porém, disse apenas que “não comenta material especulativo e supostas conversas privadas entre seus integrantes ou deles com jornalistas e políticos”.

Depois do encontro, Renan publicou um vídeo no qual critica a forma com que Bolsonaro tratou Bebianno. Ele foi gravado em 17 de fevereiro, véspera da demissão do ministro. No vídeo, Renan afirma que “não acha Bebianno bacana” e que “não trabalharia para ele”, mas diz que o ex-aliado foi traído de maneira desonesta por Carlos e Jair Bolsonaro, o que seria atitude de “terrorista”.

De acordo com mais de um ex-integrantes do MBL com quem conversamos e que pediram anonimato, a mesma abordagem foi usada numa reunião entre Salsicha e Kim Kataguiri com Hamilton Mourão, ocorrida em 7 de maio do ano passado e registrada na agenda oficial do vice-presidente.

O objetivo do MBL era buscar alinhamento com pessoas vistas como “mais razoáveis” dentro do governo e que pudessem levar a cabo pautas do movimento como a reforma da Previdência. Àquela época, a reforma patinava por causa dos embates do presidente com o Congresso.

Enviamos a transcrição de alguns dos áudios dessa conversa à Secretaria de Comunicação do Palácio do Planalto, a Secom, pedindo comentários do presidente Jair Bolsonaro. A Secom respondeu que não haveria comentários. Também fizemos perguntas a Flávio e Carlos Bolsonaro, além do jornalista Cláudio Dantas, d’O Antagonista. Nenhum deles respondeu.

Em fins de maio de 2019, acuados por crises sucessivas do governo, apoiadores de Bolsonaro convocaram manifestações contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso. O MBL não embarcou.

Os líderes do movimento olhavam para os números de seguidores em suas redes sociais e viam algo inédito: eles caíam vertiginosamente. Alvo de ataques e mentiras, o movimento encarava, mais uma vez, o ódio da militância de extrema direita de Jair Bolsonaro. O grupo optou por boicotar as manifestações antidemocráticas. E o divórcio com o bolsonarismo foi assinado.

Correção: 29 de setembro, 9h55

Uma versão anterior deste texto atribuía a Renan do Santos um dos áudios. Na verdade, a gravação é de um autor desconhecido para o Intercept. 

O texto também afirmava que, em maio de 2019, em meio à crise do coronavírus e crises sucessivas, os apoiadores de Bolsonaro haviam convocado manifestações contra o STF. Era um erro: em 2019, não havia pandemia. O texto foi corrigido. 

 

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