“Uma guia que trabalha na Casa Dom Inácio de Loyola marcou vários dos matadores profissionais de João de Deus, pedindo para me localizarem”, escreveu Sabrina Bittencourt. A mensagem de WhatsApp chegou às 14h50 de sábado. Menos de seis horas depois, a mulher que ajudou a denunciar os estupros cometidos por Prem Baba e João de Deus publicou sua carta de suicídio.
“Sou imparável até o fim dos meus dias”, ela havia postado dois dias antes. A notícia de seu suicídio foi aterradora. E a cobertura da imprensa sobre o caso, revoltante. No domingo, seu suicídio foi anunciado por diversos veículos da imprensa. Na manhã seguinte, a história já era outra. A incerteza sobre o local exato da morte, a falta de provas do suicídio e a ausência de detalhes sobre seu velório fizeram a imprensa dar um passo atrás: teria a ativista realmente tirado a própria vida? Começava ali a caçada pelo corpo de Sabrina Bittencourt.
Uma notícia do jornal O Globo, que destacava as “informações desencontradas” sobre a morte, apresentou a hipótese de que Sabrina teria forjado seu suicídio e assumido uma nova identidade. Já textos da revista Carta Capital e do Hypeness citavam a opinião de pessoas próximas a ela sobre a possibilidade de uma “morte simbólica”, inventada para que as ameaças contra ela e sua família cessassem.
Trabalhar para provar que essa mulher forjou sua morte para poder continuar viva é colocar sua cabeça de volta numa guilhotina.
Nada poderia ser mais irresponsável. Se a morte for real, a falta de respeito da imprensa pela dor dessa família é, para dizer o mínimo, insensível. Se não for, trabalhar para provar que essa mulher forjou sua morte para poder continuar viva é colocar sua cabeça de volta numa guilhotina com a lâmina pronta para despencar.
Como eu, todas as jornalistas que mantinham contato com ela – que costumava nos enviar mensagens diariamente no WhatsApp por uma lista de transmissão – sabiam o quanto ela temia por sua vida. Ainda assim, de alguma forma, a hipótese de ela ter mentido sobre a própria morte parece soar muito mais plausível do que a possibilidade de essa mulher, alvo de ameaças há meses e que havia tocado no assunto naquele mesmo dia, ter sido assassinada.
A notícia da morte de Sabrina veio cerca de três semanas depois de conversarmos por uma chamada de vídeo. Nunca tinha visto ou ouvido uma pessoa tão exausta. Isolada em algum canto do mundo, ela contava, abatida, as denúncias que vinha recebendo; sua dedicação em tempo integral ao acolhimento das vítimas; as ameaças incessantes contra ela e sua família; e a mudança constante para evitar ser localizada por quem a ameaçava.
Seu suicídio não deixa de ser uma espécie de assassinato. Os responsáveis são aqueles que ameaçavam matá-la.
Nessas condições, seu suicídio não deixa de ser uma espécie de assassinato. Os responsáveis são aqueles que ameaçavam matá-la. Conseguiram. Mas, ao embarcar na hipótese de uma morte forjada sem que isso represente qualquer benefício para a sociedade, a imprensa constrói não apenas um crime sem autores, mas também, como me disse um amigo, um crime sem vítimas.
Qual é o propósito? Qual é a finalidade de ligar para consulados, embaixadas e importunar o único familiar de Sabrina a ter se pronunciado sobre o caso – um menino de 16 anos – sabendo que arriscar a vida de Sabrina (se ela ainda tiver uma) é o único resultado possível da busca por seu corpo?
Esse jornalismo que lava as mãos de suas consequências, cegado pela busca utópica de uma (inexistente) objetividade inabalável, não me interessa. É irresponsável e umbiguista. Seus defensores podem dizer: “É nosso trabalho ir atrás dos fatos, sejam eles quais forem, e reportá-los ao público”. Eu rebato: mesmo quando o único impacto possível de seu trabalho for facilitar o assassinato de uma mulher?
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