Por e-mail, Ana Carolina Fernandes Viegas findou um silêncio que já durava dez anos. Ela havia acabado de ler minha reportagem sobre as denúncias de abuso sexual contra o médico Felizardo Batista, um ginecologista e obstetra conceituado de Teresina, no Piauí, e me escreveu pedindo ajuda:
“Eu também fui abusada por ele! Não sei o que fazer depois de ler isso. Só sei que preciso de ajuda e tenho o dever de me posicionar ao lado das outras vítimas. Me ajuda, preciso de orientação.”
Carol se consultou com Felizardo Batista em 2008, quando o procurou por causa de um sangramento no início da gravidez. Ela estranhou a atitude do médico, que ficou passando os dedos em sua vagina, mas guardou o desconforto para si. Ao ler outros relatos, entendeu que o que ela tinha passado tem nome: abuso sexual.
Ela me mandou um áudio pelo WhatsApp explicando, ou tentando explicar, o que tinha acontecido. Estava desolada e eu mal conseguia entender as suas palavras. “Desculpa, eu não consigo parar de chorar. Eu não tinha noção, ainda era muito nova. Eu não sabia que isso era um assédio. Agora eu não sei o que fazer.”
Felizardo Batista, responsável pela área de ginecologia e obstetrícia de duas clínicas, foi denunciado – até agora – por 11 mulheres. O primeiro inquérito, no entanto, acabou arquivado: o promotor Raulino Neto afirmou que, apesar dos depoimentos das vítimas e dos laudos psicológicos atestando os abusos sexuais, não havia provas suficientes para acusar o médico.
O promotor é investigado pela Corregedoria do Ministério Público, que desconfiou da rapidez com que Raulino analisou o caso. Há evidências de que ele é amigo de Batista. Enquanto o médico era inocentado, mais vítimas o denunciaram, o que motivou um segundo inquérito.
A história de Carol não se diferencia dos relatos das vítimas de abuso sexual que só tiveram coragem de falar sobre o assunto depois de muitos anos, como é o caso de centenas de mulheres abusadas pelo médium João de Deus. Seja por vergonha, medo de julgamentos ou – caso dela – por não ter conseguido diferenciar abuso de um procedimento normal, essas histórias ficam abafadas até que alguém dê o passo inicial na denúncia.
“A gente só cai em si quando aquilo tem um nome. Eu só me vi como uma vítima de assédio sexual depois que li o artigo”, me disse Carol.
Depois de conversarmos, ela decidiu procurar a delegada Adriana Xavier, responsável pelo segundo inquérito contra o médico. O depoimento de Carol vai ajudar a reforçar a denúncia das vítimas que já testemunharam.
Naquela tarde com chuva, duas semanas após o primeiro contato que tivemos, Carol disse que estava mais calma e que já conseguia falar sobre tudo sem chorar. Estava enganada. Depois de alguns minutos de conversa, desabou novamente. “Eu fico pensando que se a minha amiga tivesse entrado comigo no consultório, naquele dia, isso não teria acontecido. De alguma forma ainda fica o sentimento de culpa.”
Ela contou sua história ao Intercept.
Eu tinha 22 anos. Estava com três meses de gravidez, sangrando, com medo. Fui na urgência e tive a infelicidade de cair nas mãos dele. Achei muito estranho aquele comportamento. Estranhei quando ele apalpou o meu seio e a forma diferente como ele tocava na minha vagina. Mas eu não sabia se a conduta de todos os ginecologistas homens era daquele jeito, porque eu só tinha me consultado com mulher. E também, naquele momento, eu só estava preocupada com o meu bebê.
Depois que ele limpou o sangue, ele ficou conversando comigo, só que com os dedos na minha vagina. Falou que quando eu estivesse tomando banho, eu tinha que limpar, mas disse isso passando o dedo ali, como se estivesse me ensinando. Achei aquilo uma grosseria estúpida. Eu não era mais uma menininha que não sabia me limpar. Isso me deixou muito constrangida e aí eu me fechei, me travei. Só que não comentei nada com ninguém.
O pior é porque a gente só vem cair em si que aquilo realmente aconteceu quando a gente tem um nome para isso. Eu só me vi naquela situação de uma vítima de assédio sexual depois que li o artigo. Porque eu me vi naquela situação das outras mulheres.
Durante esses dez anos eu recordava o que tinha acontecido porque o meu pai é amigo do pai dele. Nós éramos vizinhos e papai sempre falava desse médico. Todas as vezes eu sentia um desconforto, me sentia invadida como se estivesse passando por aquilo de novo, mas eu não sabia exatamente o que era. Só depois, quando conversei com a minha irmã, ela disse que isso acontecia porque minha memória acessava o trauma, mesmo que eu não soubesse conscientemente.
A delegada me perguntou se eu tinha visto as notícias das denúncias das mulheres em 2016, mas se eu tivesse visto eu teria denunciado naquela época. Se o que aconteceu comigo há 10 anos tivesse ocorrido agora, eu acredito que teria reconhecido o abuso. Eu acho que a gente só consegue identificar esse tipo de acontecimento na nossa vida quando tem informação e conhecimento de como aquilo se caracteriza.
‘Quando uma mulher denuncia um abusador, as outras mulheres se beneficiam porque a gente está fazendo por todas nós.’
A reportagem do Intercept chegou até mim no grupo de WhatsApp de umas amigas. A pessoa enviou o link e comentou que o médico era um bandido tarado. Eu levei praticamente uma hora pra ler porque eu estava naquela agonia e chorando. Eu não sabia para onde correr, para quem pedir ajuda. Eu não sabia o que fazer. Me senti completamente desamparada. Aquele momento foi o mais doloroso, por lembrar tudo.
Hoje eu já consigo falar sem ficar daquele jeito. O olho ainda enche de lágrima, mas já me sinto mais forte e segura. Eu sei da importância de expor o que aconteceu comigo. Quando uma mulher denuncia um abusador, as outras mulheres se beneficiam porque a gente está fazendo por todas nós. Eu estou pelo menos fazendo a minha parte. Esperando o que vai vir de resultado. Esse silenciamento que a gente tem vem de longe. A gente sempre é culpada, sempre procurou. Porque vestiu uma roupa, porque saiu num horário, porque foi em um médico homem e não em uma mulher. Sempre a culpa é nossa, só que não tinha que ser.
Fiquei com medo de falar para as minhas amigas mais próximas por medo do julgamento. Só que depois eu caí em mim que eu não tenho culpa. Eu sou uma vítima. Assim como nenhuma das outras vítimas têm culpa. Aí eu resolvi falar pra elas e pra minha irmã. E depois que consegui me acalmar um pouquinho mandei mensagem para o meu marido. Ele estava trabalhando e eu disse que precisava que ele voltasse pra casa o mais rápido possível, que depois eu explicava direitinho, mas que naquele momento eu só precisava chorar.
Queria dizer para as mulheres que foram vítimas que elas não estão sozinhas. A culpa não é nossa.’
A primeira coisa que vem na cabeça é o medo de repressão, de ser apontada como a que facilita o abuso, quando na realidade não é. Eu acho que muitas das mulheres estão em relacionamentos abusivos com pessoas que não vão dar apoio para elas denunciarem. São homens que não apoiam porque aquilo vai ferir a masculinidade deles. Nem todo mundo vai se expor.
O meu marido foi maravilhoso. Ele virou pra mim e disse: “a gente vai na delegacia. Eu vou com você”. E isso foi uma das coisas mais importantes… estar com alguém que está comigo. Um momento desse a gente se sente completamente desamparada, se sente perdida, sem chão. E o apoio de alguém que a gente ama é fundamental.
Só que existem várias questões para as mulheres se calarem. Pelo trabalho, por causa do meio em que vivem. Às vezes a pessoa tem um poder aquisitivo alto e passou por um abuso, mas se chegar a falar que foi vítima, vai ser um escândalo. É como se a vida da pessoa fosse desmoronar.
Eu acho que a mulher tem que falar com uma mulher. Porque muitas vezes o homem que está ali para te ajudar também pode te julgar.’
Eu decidi denunciar porque eu quis que não acontecesse com outra mulher. Quis que ele parasse, que ele fosse parado. Enquanto homens não respeitarem a gente, essas coisas vão continuar acontecendo. No primeiro momento que eu fui falar com a delegada, ela me disse que eu teria que voltar e iria falar com o delegado. Eu acho que a mulher tem que falar com uma mulher. Porque muitas vezes o homem que está ali para te ajudar também pode te julgar. Uma mulher tem um pouco mais de empatia com outra, pra que a gente consiga se abrir pra uma estranha. Então eu acho que o primeiro passo seria ter mais mulheres para tratar de mulheres. Fiquei mais arredia e preocupada de falar com um homem, mas eu já havia começado e não queria dar pra trás. Eu tinha que seguir.
Queria dizer para as mulheres que foram vítimas que elas não estão sozinhas. A culpa não é nossa. Precisamos ter força e apoiar pessoas que precisam de nós, apoiar outras mulheres. Ninguém pode nos julgar e devemos procurar os meios de educar nossas filhas e nossos filhos para serem pessoas mais humanas. Para a gente ser mais aberta e um pouquinho mais atenta. Eu só quero que isso pare. E o que for pra gente fazer, a gente que já mostrou a cara, deve fazer. Tem muita mulher que está precisando só de uma ajuda, de uma direção.
Agora não é o momento, mas futuramente eu vou falar para minha filha. Eu sei que a percepção dela com relação ao que é assédio sexual vai ser diferente. Quero que a minha filha saiba que a mãe dela está do lado dela, como mulher, como amiga, como mãe. Uma pessoa a quem ela pode recorrer.
Depois de tudo, passados 10 anos, eu fiquei pensando… Meu Deus, se a minha amiga tivesse entrado comigo naquele consultório, será que teria sido diferente? De alguma forma ainda fica o sentimento de culpa.
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