Será que Donald Trump tem sequer um pingo de vergonha?
O candidato Trump passou boa parte da campanha alfinetando, criticando, denunciando e até ameaçando o Reino da Arábia Saudita. Agora o presidente Trump elege como destino da sua primeira viagem internacional… o Reino da Arábia Saudita.
É uma mudança particularmente descarada, até para os padrões de Trump. Nos primeiros meses de seu mandato, testemunhamos reviravoltas em questões que vão da Otan à China ou ao Export-Import Bank. Vimos o candidato exaltar Bashar al Assad e criticar Janet Yellen e o presidente exaltar Yellen e criticar Assad. Em outubro do ano passado, Trump afirmou que James Comey, à época ainda diretor do FBI, tinha “coragem” de “fazer o certo”; na semana passada, ele demitiu Comey, chamando-o de “exibido” e “fanfarrão”.
Ou seja, para usar um eufemismo, não é a primeira vez que uma opinião de Trump gira 180 graus. Mesmo assim, a mudança em relação à Arábia Saudita – um dos aliados mais próximos dos Estados Unidos desde que o presidente Franklin D. Roosevelt recebeu o rei Abdul Aziz ibn Saud a bordo do USS Murphy em 1945 – deve ser acompanhada de perto. Trump chegará ao país do Golfo no próximo fim de semana. Participará de uma reunião bilateral com o rei Salman e de uma série de encontros com membros do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG).
Não vão faltar apertos de mão, abraços e sorrisos. Aos espectadores, restará esquecer que Trump detonou a família real saudita, classificando-os de aproveitadores, e chegou a fazer ameaças de boicote econômico. Em entrevista ao New York Times no ano passado, Trump afirmou que, sem a proteção e o apoio norte-americanos, “a Arábia Saudita não sobreviveria por muito tempo”. Para Trump, o problema é que, apesar dos sauditas “serem uma máquina de dinheiro, (…) eles não estão nos pagando como deveriam”. Quando perguntado se estaria disposto “a parar de comprar petróleo dos sauditas” se eles não fizessem a parte deles, Trump respondeu: “Ah, claro. Estaria disposto, sim”.
Também teremos de esquecer que Trump criticou duramente o governo saudita por executar homossexuais e tratar mulheres “de maneira terrível”. No terceiro debate presidencial, em outubro do ano passado, Trump repreendeu Hillary Clinton por ter aceitado 25 milhões de dólares dos sauditas, “um povo que joga gays (…) de cima de prédios, pessoas que matam mulheres e as tratam de maneira terrível. E mesmo assim você aceita dinheiro deles”.
Também se espera que varramos para debaixo do tapete a lembrança de que Trump acusou – duas vezes no mesmo dia – a Arábia Saudita de estar por trás dos ataques do 11 de Setembro. “Quem explodiu o World Trade Center?”, perguntou Trump aos seus coleguinhas do programa Fox and Friends, na manhã de 17 de fevereiro de 2016. “Não foram os iraquianos, foram os sauditas. Deem uma pesquisada sobre a Arábia Saudita, vão atrás dos documentos”.
Num evento de campanha na Carolina do Sul, nesse mesmo dia, ele voltou a falar em “arquivos secretos” que comprovariam que “os sauditas” foram os verdadeiros responsáveis pelos ataques. “Não foram os iraquianos que derrubaram o World Trade Center (…), eles têm documentos supersecretos que comprovam que foram os saudistas, tá bem?”
(Para ser justo com Trump, gente mais bem informada e com muito mais credibilidade chegou a conclusões parecidas: “Estou convencido de que havia uma linha direta entre alguns dos terroristas do 11 de Setembro e o governo da Arábia Saudita”, afirmou em 2012, em um depoimento escrito sob juramento, o ex-senador da Flórida Bob Graham, um dos presidentes do inquérito da comissão de inteligência do Senado americano sobre o 11 de Setembro.)
Donald Trump em campanha em Bluffton, na Carolina do Sul, em 17 de fevereiro de 2016. Nesse evento, ele mencionou “arquivos secretos” que comprovariam que “os sauditas” foram os verdadeiros responsáveis pelos ataques do 11 de Setembro.
Talvez nunca saibamos se os sauditas tiveram ou não participação nos ataques do 11 de Setembro. Mas vivemos para ver um candidato à presidência dos Estados Unidos acusá-los – duas vezes – de tal feito. Menos de um ano depois, é surpreendente que a Arábia Saudita seja o país escolhido por Trump para sua viagem internacional inaugural. Podia ter feito como todos os presidentes desde Ronald Reagan e escolhido o Canadá ou o México.
Será que Trump vai voltar dessa excursão saudita com um cheque bem gordo? O tão propalado “ressarcimento”? Será que ele vai ousar falar sobre a questão dos direitos dos homossexuais em Riad? Ou sobre os direitos das mulheres? Vai dar um jeito de trazer de volta um ou dois membros da realeza saudita algemados por conta da (suposta) participação no 11 de Setembro? Até parece. É mais provável o presidente americano voltar convertido ao Islã.
Claro que a hipocrisia não é uma exclusividade de Trump e dos Estados Unidos. A Arábia Saudita se considera “o nascedouro do Islã” e é governada por um rei que se diz “o guardião das duas mesquitas sagradas”. Mesmo assim, nesse próximo fim de semana, o governo saudita vai receber calorosamente um presidente que já disse que “o Islã nos odeia” e que queria proibir 1,6 bilhão de muçulmanos do mundo inteiro de entrar nos Estados Unidos. Quer saber como a Arábia Saudita reagiu à última tentativa de Trump de vetar o direito de viagem de 170 milhões de muçulmanos? Uma decisão “soberana”, com o aparente objetivo de “impedir a entrada de terroristas nos Estados Unidos da América” e tomada por um “verdadeiro amigo dos muçulmanos”.
No domingo, esses sauditas bajuladores vão dar palco para o islamofóbico mais famoso do planeta. Trump vai discursar sobre o Islã, bem no nascedouro do Islã. E deve aproveitar a oportunidade para denunciar “o terrorismo radical islâmico”, bem no país que talvez tenha feito mais do que qualquer outro para incitar, financiar e alimentar o terror.
Os dois países estão unidos pela hipocrisia e também pelo pavor que têm dos iranianos. Na tentativa de minar a influência do Irã sobre o Iêmen e a Síria, os sauditas vêm jogando bombas e armando insurgentes nos dois países. O governo Trump, que está cheio de gente que quer jogar duro com o Irã, está prestes a fechar um negócio de 100 bilhões de dólares em armas para a Arábia Saudita.
Que fique claro: esse giro de 180 graus em relação à Arábia Saudita tem muito pouco a ver com a moderação que exige o cargo ou com a influência do alto escalão de Washington sobre a política externa. Apesar da retórica bombástica que marcou a campanha, nunca esteve nos planos de Trump combater os sauditas quando chegasse à presidência – mesmo depois de tê-los acusado de matar 3 mil americanos. No início da corrida eleitoral, em 2015, um experiente diplomata árabe me contou, sob condição de anonimato, que Trump tinha garantido a quase todos os governos do Golfo, em reuniões reservadas, que sua retórica antimuçulmana e antiárabe era “só para a campanha” e que, uma vez eleito (ou mesmo se ele perdesse as eleições), os negócios com esses países não mudariam em nada.
Como sempre, para Trump, é tudo uma questão de negócios – seus negócios. O voraz crítico dos sauditas vendeu a eles um andar inteiro de sua Trump World Tower por 4,5 milhões de dólares em 2001. E você ficaria surpreso de saber que Trump registrou oito empresas ligadas ao setor hoteleiro na Arábia Saudita, no meio de uma campanha que foi tão dura com o país?
Claro que não. Negócios são negócios. Trump é Trump. Você pode até ficar indignado diante de tanta enganação…mas a cara de pau do presidente é de se admirar.
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