Mehdi Hasan

Você não deve culpar o Islã pelo terrorismo. A religião não é um fator crucial em ataques

O recente ataque terrorista em Londres mostra, mais uma vez, que os terroristas não costumam se encaixar nos estereótipos anti-muçulmanos propagados pelos detratores do Islã.

LONDON, ENGLAND - MARCH 22: An armed police officer stands guard near Westminster Bridge and the Houses of Parliament on March 22, 2017 in London, England. A police officer has been stabbed near to the British Parliament and the alleged assailant shot by armed police. Scotland Yard report they have been called to an incident on Westminster Bridge where several people have been injured by a car. (Photo by Jack Taylor/Getty Images)

No que você pensa quando ouve a palavra “terrorista”? Barbas enormes e peles escuras? Migrantes muçulmanos do Oriente Médio com turbantes? Refugiados, talvez?

De acordo com um relatório da New America Foundation, “desde o 11 de Setembro, todos os jihadistas que perpetraram ataques letais dentro dos Estados Unidos eram cidadãos ou residentes legais”. Um recente estudo realizado na Grã-Bretanha, que acaba de sofrer o pior atentado terrorista desde 2005, revelou que mais de dois em cada três atentados “de inspiração islâmica” foram cometidos por indivíduos “que eram nascidos ou criados no Reino Unido”.

O estereótipo comum do terrorista nascido muçulmano no Oriente Médio não é só preguiçoso e impreciso, é também um terreno fértil para a extrema-direta anti-imigração e anti-Islã. Veja só a rápida reação de Sebastian Gorka, da Casa Branca, ao horrível ataque da semana passada em Londres: “A guerra é real,” disse ele à Fox News, enquanto os corpos das vítimas ainda estavam quentes, “e é por isso que ordens do Executivo, como a proibição de viagens imposta pelo presidente Trump, são tão importantes”.

Desculpe, como é que é? Khalid Masood, o autor dos ataques de Londres, de 52 anos, nasceu e cresceu na Grã-Bretanha. Não teria sido afetado nem de longe por uma restrição à entrada de muçulmanos do Oriente Médio. Ele não era nem refugiado nem imigrante. Não era originário do Oriente Médio e passou a maior parte da vida sem ser muçulmano. Nasceu como Adrian Elms, de mãe branca e pai negro, e foi criado como Adrian Ajao. Acredita-se que se converteu ao Islã na prisão em 2003. Tinha uma extensa ficha corrida antes de sair atropelando pedestres inocentes na Ponte de Westminster e de esfaquear um policial perto das Casas do Parlamento na tarde da última quarta-feira.

LONDON, ENGLAND - MARCH 22:  A member of the public is treated by emergency services near Westminster Bridge and the Houses of Parliament on March 22, 2017 in London, England. A police officer has been stabbed near to the British Parliament and the alleged assailant shot by armed police. Scotland Yard report they have been called to an incident on Westminster Bridge where several people have been injured by a car.  (Photo by Carl Court/Getty Images)

Equipe de emergência socorre uma pessoa perto da Ponte de Westminster e das Casas do Parlamento em Londres (22/03/2017).

Foto: Carl Court/Getty Images

Parece que estou tentando isentar o Islã e os muçulmanos de culpa pelo crime hediondo de Ajao? Pode apostar que sim. E por que não deveria?

Afinal de contas, a fé islâmica teve alguma coisa a ver com a primeira condenção de Ajao por crime de dano em 1983, quando tinha 18 anos? Foi o Profeta Maomé que o orientou a traficar drogas na adolescência? Foi o Corão que, em 2000, inspirou um Ajao bêbado a furar o rosto de um homem que depois precisou tomar 20 pontos? Ajao fazia parte da luta jihadista quando esfaqueou o nariz de outro homem que depois precisou passar por uma cirurgia plástica?

Não, não, não e não. Anos depois, já como Khalid Masood, ele pode ter se radicalizado junto a islamistas violentos numa prisão inglesa ou com jihadistas salafistas numa visita à Arábia Saudita – não sabemos e talvez nunca saberemos. Mas o que é certo é que suas inclinações violentas e seu comportamento antissocial antecediam sua conversão ao Islã, tenha ela sido “radical” ou não. Até o britânico Adrian Hilton, um acadêmico conservador e blogueiro cristão, reconheceu: “Adrian Elms já era um cristão violento antes de se tornar o terrorista muçulmano Khalid Masood… Não foi o Islã que o transformou num degenerado miserável; ele já era um sujeito imprestável”.

Assim como outros muçulmanos convertidos que aderiram ao terror – como o canadense Aaron Drive e o texano John Georgelas, além dos irmãos Kouachi de Paris e os Tsarnaev de Boston –, Masood pode ter se valido de uma interpretação distorcida, simplista e politizada do Islã para justificar a ação violenta, mas duvido muito que ela tenha servido para motivá-lo. Políticos e especialistas estão obcecados pelo peso da ideologia política (o islamismo) e da fé religiosa (o Islã). Convenientemente, quando não irresponsavelmente, desviam o olhar de outros fatores que podem ser ainda mais determinantes: o papel das redes sociais e dos laços familiares; as questões de identidade e pertencimento; o sentimento de perseguição; doenças mentais; dificuldades socio-econômicas; a indignação em relação a conflitos e torturas; o anseio por glória, por um propósito na vida, por ação e aventura. Esses elementos vêm se revelando muito mais eficazes para prever tendências terroristas do que a religião e, mais especificamente, a religiosidade.

London, UNITED KINGDOM: The headquarters of Britain's MI6 intelligence agency are pictured in London, 31 May 2007. The ex-KGB agent Andrei Lugovoi, wanted in Britain for the radioactive poisoning in London last year of the former Russian intelligence agent turned critic of President Vladimir Putin, Alexander Litvinenko, insisted Today on his innocence during a press conference in Moscow. Lugovoi said that either MI6, the Russian mafia, or fugitive Kremlin opponent Boris Berezovsky carried out the killing. Lugovoi claimed that both Berezovsky and Litvinenko were working for MI6. "The poisioning of Litvinenko couldn't have taken place outside the control of Great Britain's special services," Lugovoi told journalists in Moscow. AFP PHOTO/BERTRAND LANGLOIS (Photo credit should read BERTRAND LANGLOIS/AFP/Getty Images)

Quartel-general do MI6, o serviço de inteligência britânico (Londres, 2007). Foto: Bertrand Langlois/AFP/Getty Images

Não precisa confiar só na minha palavra (de muçulmano). Em 2008, vazou um relatório feito por pesquisadores do MI5, o serviço de inteligência para segurança interna da Grã-Bretanha. Alan Travis, do Guardian, obteve o documento secreto, baseado em “centenas de estudos de caso” realizados pela agência. O relatório aponta que “bem longe de serem fanáticos religiosos, muitos dos envolvidos em atos de terrorismo não praticam a fé regularmente”.

“A maior parte era de cidadãos britânicos, não de imigrantes ilegais; e eram novatos na religião, não fundamentalistas islâmicos”, escreveu Travis sobre o relatório. “Pouquíssimos foram criados em ambientes familiares religiosos, e a proporção de convertidos está bem acima da média. Alguns estão envolvidos com uso de drogas, outros bebem e frequentam prostitutas.”

Soa familiar?

A reportagem do Guardian ainda traz outra revelação: “De acordo com o MI5, há provas de que identidades religiosas bem estabelecidas, na verdade, previnem contra a radicalização violenta”.

Desde o vazamento da pesquisa do MI5, na década passada, estudos e mais estudos vêm desafiando a percepção convencional e preguiçosa do peso da religião nos processos de radicalização. Ao longo dos últimos anos, conversei com várias autoridades no assunto – o antropólogo Scott Atran, o psiquiatra Marc Sageman, a historiadora Lydia Wilson – que entrevistaram terroristas “jihadistas” tanto nos campos de batalha no Iraque quanto nas celas nos Estados Unidos. Todos concordam que a fé, seja ela islâmica ou não, não é o fator determinante dessa onda recente de terror global.

“Mais do que qualquer outra coisa, terrorismo é violência política”, me disse Sageman no ano passado. Quando entrevistei Atran no meu programa na Al Jazeera inglesa, ele afirmou que, “se você dialoga com essas pessoas e observa como aderiram à ‘jihad’, (…) percebe que se fala muito pouco em religião”.

Mesmo assim, cada atentado terrorista no Ocidente é seguido de um “debate sobre religião” bem público. Quão islâmico é o ISIS? O Islã precisa de uma reforma? Os muçulmanos são uma ameaça aos valores liberais? Os países ocidentais deveriam barrar imigrantes de países de maioria muçulmana?

The streets are empty near Big Ben on the day following the terror attack Aftermath of terror attack outside parliament, London, UK - 23 Mar 2017 Five people died and more than 40 were injured in a terror attack in Westminster 22 March 2017. (Rex Features via AP Images)

Ruas vazias nos arredores do Big Ben, no dia seguinte ao ataque terrorista (23/03/17). Foto: Rex Features/AP

Ultimamente, o pessoal que quer culpar o Islã nem tenta mais esconder a evidente satisfação que sente quando acontece um ataque terrorista. Só o nome muçulmano do autor basta para justificar o preconceito que têm. A tese deles de que “o Islã é o problema” agora já é senso comum. Eles têm um aliado na Casa Branca, se é que já não têm outra em Downing Street. A ausência de provas claras e empíricas para essa teoria espúria não os incomoda nem um pouco. Ignoram ou minimizam o fato de que a maioria dos terroristas é de “novatos religiosos”, “um conjunto diversificado de indivíduos que não se encaixam em um único perfil demográfico tampouco seguem uma mesma trajetória até chegar ao extremismo violento” – e aqui, mais uma vez, estou citando o MI5.

Como era mesmo aquela piada do Einstein? “Se os fatos não se encaixam na teoria, modifique os fatos”. Ou implante fatos “alternativos”, talvez. Essa abordagem faz sentido se seu objetivo é demonizar o Islã e os muçulmanos, não importa o custo. Mas se você quer evitar o próximo ataque, esse foco excessivo na fé, na crença e na ideologia – que desafia as evidências e os especialistas – é uma distração perigosa. Os terroristas podem querer tentar e legitimar a sua violência apelando cinicamente para a doutrina islâmica, mas não há nenhuma razão para o resto de nós ajudá-los nisso.

Foto no topo: Policial armado perto da ponte de Westminster e das Casas do Parlamento, logo depois dos ataques (22/03/2017).

Tradução: Carla Camargo Fanha

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