Mehdi Hasan

Marine Le Pen no segundo turno é o que acontece quando se estende a mão ao racismo

Le Pen ascende na França porque os principais partidos políticos apostaram na cooptação – e não na confrontação – do racismo da Frente Nacional.

Far-right National Front leader Marine Le Pen addresses activists at the Espace Francois Mitterrand on April 23, 2017, in Henin-Beaumont, north of France. Le Pen will face centrist leader Emmanuel Macron in a run-off for the French presidency on 7 May, near-final results show. With 96% of votes counted from Sunday's first round, Mr Macron has 23.9% with Ms Le Pen on 21.4%. Photo by Aurore Marechal/Sipa USA(Sipa via AP Images)

Que vergonha de todo mundo. Líderes franceses dos mais variados matizes não conseguiram evitar que a candidata da extrema-direita (que já negou que o governo de Vichy tenha tido qualquer participação no Holocausto) chegasse ao segundo turno das eleições presidenciais.

É a segunda vez que um candidato da Frente Nacional (FN) consegue esse feito – a primeira foi em 2002, com o pai de Marine, Jean-Marie Le Pen, fundador do partido e negacionista do Holocausto. Agora, no dia 7 de maio, Marine Le Pen vai enfrentar o candidato independente de centro, Emmanuel Macron. E, pela primeira vez na história da Quinta República francesa, tanto o candidato socialista quanto o republicano vão ficar de fora. Ou seja, nada menos do que um cataclismo político.

Então, quem é o culpado por esse crescimento contínuo de Le Pen e da FN? Segundo a sabedoria tradicional, os principais políticos franceses permitiram que a extrema-direita monopolizasse a questão da imigração e ganhasse votos com isso. Mas, na verdade, é o contrário: ao longo das últimas quatro décadas, tanto os republicanos de centro-direita quanto os socialistas de centro-esquerda fizeram de tudo para cooptar a retórica e as políticas xenófobas dos Le Pen – e isso só fortaleceu e normalizou tanto o pai quanto a filha.

Em setembro de 1984, por exemplo, o primeiro-ministro socialista Laurent Fabius disse a um repórter de TV que Le Pen pai, um racista e neofascista de carteirinha, estava levantando questões certas, mas propondo soluções erradas. Alguns anos depois, o presidente socialista François Mitterrand declarou que a França tinha chegado ao “limite da tolerância” em relação a imigrantes.

Em 1991, depois de uma onda de conflitos entre a polícia francesa e jovens de ascendência árabe e norte-africana, políticos de esquerda, de direita e de centro correram para denunciar a imigração e criticar muçulmanos franceses. Em junho daquele mesmo ano, não foi um dos Le Pen quem denunciou a “overdose” de imigrantes, que traziam para a França “três ou quatro esposas, umas 20 crianças”, além de “barulho” e “fedor” – mas sim o ex-primeiro-ministro de centro-direita (e mais tarde, presidente) Jacques Chirac. Um mês depois, também não foi Le Pen quem anunciou que o governo francês ia contratar voos charter para deportar à força imigrantes sem documento – mas sim o primeiro-ministro à época, Edith Cresson, socialista. Em setembro de 1991, mais uma vez, não foi Le Pen quem alertou sobre uma “invasão” de imigrantes e defendeu que a cidadania francesa passasse a ser atribuída com base no “direito de sangue” – mas sim o ex-presidente Valery Giscard d’Estaing.

Cada vez que políticos e partidos tradicionais endurecem o discurso em relação à imigração ou ao Islã, a FN se torna menos marginal e mais aceita. O maior estímulo à “lepenização” da política francesa veio de Nicolas Sarkozy. Durante seu mandato de presidente, de 2007 a 2012, ele flertou ativamente com eleitores da FN e contribuiu para desmanchar o “pacto republicano”, segundo o qual os dois principais partidos deveriam trabalhar juntos para derrotar a FN tanto no âmbito nacional quanto regional. Lembrando que Sarkozy foi quem lançou, em 2009, o “Grande Debate sobre a Identidade Nacional” e, em 2010, decretou a proibição do véu integral, usado por apenas 2 mil muçulmanas na França, num universo de 2 milhões de mulheres. Foi também ele quem deu aquela declaração absurda de que a carne halal era “a questão que mais preocupava os franceses” em 2012. E foi ainda Sarkozy quem chamou a FN de “partido democrático” e considerou que seus valores eram “compatíveis com a República”.

A esquerda francesa, contudo, também tem culpa no cartório. Manuel Valls, primeiro-ministro socialista entre 2014 e 2016, defendeu a proibição do burkini e afirmou que “a coisa mais importante” não era o desemprego, mas “a batalha pela identidade, a batalha cultural”. Nem Marine Le Pen faria melhor. Uma colega socialista de Valls, Laurence Rossignol, ministra de Direitos das Mulheres, comparou muçulmanas que usam o hijab a “americanos negros favoráveis à escravidão”. E Jean-Luc Mélenchon, candidato da extrema-esquerda que ficou em quarto lugar neste domingo, condenou, nas eleições municipais de 2010, a candidatura de uma muçulmana que usava o véu.

Esse é o abismo moral no qual o socialismo francês vem caindo.

Com inimigos assim, quem precisa de amigos? Deveríamos mesmo ficar surpresos com o fato de Marine Le Pen ter conseguido, nos últimos anos, levar a cabo uma cínica e desavergonhada política de desdiabolização (ou desdemonização), cuja estratégia é minimizar o (impopular) antissemitismo da FN para ressaltar sua islamofobia (bem mais popular)? Sem encontrar muita resistência, Le Pen filha construiu a linha condutora do partido em torno da ideia de que sua política de imigração é uma forma liberal de defender a laicidade francesa de muçulmanos fanáticos e conservadores tanto dentro quanto fora da França.

Há muito tempo que a islamofobia une personalidades francesas de todos os matizes. “O fato de essa retórica anti-muçulmana poder ser usada tanto pela extrema-esquerda quanto pela extrema-direita (…) ilustra bem a convergência de pontos de vista em relação ao islamismo”, afirma Yasser Louati, ativista francês de direitos humanos. “Eles podem discordar em tudo, mas não na questão da islamofobia.”

Segundo ele, para combater a FN, é preciso reconhecer a presença do racismo endêmico e da discriminação religiosa na sociedade francesa, das grandes empresas às periferias. Para Louati, “o racismo está gravado no DNA” de antigas forças coloniais como a França. As estatísticas oficiais de crimes de ódio e o resultado das eleições de domingo apoiam a análise do ativista.

Todavia, para ser justo com os franceses, as últimas pesquisas apontam que cerca de dois em cada três eleitores votarão contra Le Pen e a favor de Macron no próximo turno. Macron deve obter uma vitória retumbante – mas Le Pen já deixou claro que veio para ficar. Ela e seus amigos fascistas voltarão em 2022 para uma nova batalha. Estarão não só entusiasmados e energizados, como também legitimados pelo sucesso de 2017, por terem forçado a esquerda e a direita a dançar conforme sua música intolerante.

Então, acho que a hora é de reflexão. A estratégia das elites francesas de tentar derrotar os Le Pen imitando sua retórica, roubando suas políticas e bajulando seus eleitores fracassou política e moralmente. Como escreveu Gary Young no Guardian depois da vitória chocante de Jean-Marie Le Pen, que foi para o segundo turno em 2002, “cada passo que você dá em direção a um programa racista não ‘neutraliza’ os racistas, mas antes os fortalece”.

Quinze anos se passaram, e nada mudou. Não dá para aplacar o fascismo estendendo a mão aos fascistas; não dá para derrotar o racismo sendo indulgente com os racistas. Talvez os políticos franceses estejam precisando relembrar o lema nacional: lutar por égalité e fraternité, independentemente de raça ou religião, é o único caminho possível.

Foto do título: Marine Le Pen, líder da Frente Nacional, dirige-se a ativistas no Espace François Mitterrand em Henin-Beaumont, no norte da França (23/04/17).

Tradução: Carla Camargo Fanha

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