Avanço de facções ameaça Amazônia e faz Brasil virar um dos maiores refinadores de cocaína do mundo

Avanço de facções ameaça Amazônia e faz Brasil virar um dos maiores refinadores de cocaína do mundo

Com mais de 500 laboratórios de refino e até ‘cracolândia indígena’, Amazônia enfrenta grave risco que vai muito além do caos climático.

Avanço de facções ameaça Amazônia e faz Brasil virar um dos maiores refinadores de cocaína do mundo

O Brasil deixou de ser só rota do tráfico internacional de drogas e despontou como um dos maiores refinadores de cocaína do mundo. Isso é o que revela o estudo Floresta em Pó, que mapeou de forma inédita 550 laboratórios de refino e beneficiamento de drogas no Brasil entre janeiro de 2019 e julho de 2025 — número 32,4 vezes maior do que o reconhecido oficialmente pelos órgãos de segurança.

Esses números foram levantados pelo Instituto Fogo Cruzado para o Floresta em Pó, organizado pela Iniciativa Negra e pela Coalizão Internacional pela Reforma da Política de Drogas e Justiça Ambiental. O estudo revelou ainda que o país movimenta cerca de US$ 6 bilhões por ano só com o refino, patamar comparável às receitas anuais de grandes empresas nacionais, como a fabricante de aeronaves Embraer ou o conglomerado de produtos de beleza Grupo Boticário.

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A descoberta reposiciona o Brasil na geopolítica do comércio de drogas ilícitas como polo central de refino e distribuição de cocaína, com a Amazônia servindo de corredor para escoamento aos portos atlânticos e o país liderando o abastecimento apreendido rumo à Europa. 

Também revela a dimensão de uma grave ameaça à sustentabilidade da Amazônia, que sedia neste momento em Belém, no Pará, a Conferência do Clima da ONU, a COP30. A expansão do tráfico e das facções na região, com impacto social e na segurança pública, expõe a urgência de uma resposta global para protegê-la – que vai além do combate ao colapso climático. 

Nos últimos anos, a Amazônia passou a ocupar o centro das discussões globais sobre violência, crime organizado e destruição ambiental. O tema ganhou destaque em fóruns internacionais de peso, como a COP16 da Biodiversidade, realizada em 2024, na Colômbia, e nas cúpulas do G20 (2024) e da COP30 do Clima (2025), ambas sediadas pelo Brasil. 

Esses eventos refletem uma preocupação crescente da comunidade internacional com o avanço das atividades criminosas e da degradação ambiental na região — hoje reconhecidas como ameaças não apenas locais, mas também ao equilíbrio climático e à segurança global.

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O estudo Floresta em Pó também revelou que o cultivo de coca na Amazônia permanece essencialmente na Colômbia (66%), no Peru (23%) e na Bolívia (11%). São esses países que fornecem a matéria-prima para o refino em território brasileiro.

Dentro desta cadeia, os compradores de grandes volumes de drogas (chamados de atacadistas) retêm cerca de 60% do movimentado. Já o varejo – aquilo que vem à tona, por exemplo, quando se divulga alguma apreensão em favelas – representa em torno de 22%. O restante dilui-se entre produtores de cocaína e seus derivados, que juntos ficam com quase 18%, enquanto quem cultiva a folha de coca fica com a menor parte, 0,01%.

Vale ressaltar que o refino concentra valor e exige infraestrutura de processamento químico e descarte de resíduos, pressupondo corrupção e cobertura política. Um claro exemplo destas conexões é o papel estratégico dos portos e rotas nesta engrenagem. 

O porto de Santos se consolidou como o segundo maior exportador mundial de cocaína já há algum tempo, aponta o Floresta em Pó, e o Primeiro Comando da Capital, PCC, é a facção que mais explora as vulnerabilidades de segurança no local, corrompendo funcionários de empresas de logística para enviar seus carregamentos. 

Quem acompanha os noticiários notou o quanto a violência ligada ao controle de pontos estratégicos pelas facções vem aumentando no Norte e no Nordeste. A taxa de mortes violentas intencionais é 60% maior do que a média nacional no Nordeste e 48,8% acima no Norte, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

‘Portos do Nordeste viraram corredores logísticos para o envio de cocaína’.

Uma das razões dessa disparada na violência, segundo o Floresta em Pó, é que os portos do Nordeste viraram “importantes corredores logísticos para o envio de cocaína” à Europa e à África entre 2020 e 2024 – com a floresta amazônica funcionando como área de passagem que conecta os Andes aos portos do Oceano Atlântico. 

O Floresta em Pó cita ainda  as conexões entre a cadeia da cocaína e outras economias ilícitas vinculadas à grilagem, ao garimpo de ouro e ao contrabando de madeira e pescado. Neste contexto, de acordo com a publicação, o desmatamento na Amazônia Legal subiu 73% entre 2019 e 2022, e o ouro virou eixo de lavagem de recursos do tráfico.

Em resposta às perguntas sobre a identificação dos 550 laboratórios de refino de cocaína e seus impactos na política e relação com países vizinhos, o Ministério da Justiça e Segurança Pública reconhece que a região amazônica funciona como corredor para o escoamento de drogas. 

Segundo a pasta, em nota enviada ao Intercept Brasil (leia a íntegra), o narcotráfico se sobrepõe a ilícitos ambientais e exige integração entre forças federais e estaduais. O órgão diz que atuará por meio do Centro de Cooperação Policial Internacional, CCPI-Amazônia, e apostará no intercâmbio ágil de informações e operações conjuntas com países vizinhos. 

O ministério ainda acrescentou que buscará fortalecer o diálogo entre as nações amazônicas e organismos multilaterais com o Tratado de Cooperação Amazônica, a Interpol, a Europol e a Ameripol. Citou, ainda, que a Polícia Federal realizou 277 operações em 2024, sendo 181 na Amazônia Legal, com 89 prisões preventivas e descapitalização de mais de R$ 460 milhões. 

Em 2025, até 30 de outubro, foram registradas 176 operações, das quais 104 na Amazônia, com 34 prisões e prejuízo estimado de R$ 1,1 bilhão a organizações criminosas. Segundo a pasta, esses números demonstram a continuidade e o fortalecimento do enfrentamento aos crimes na região.

Floresta de irregularidades e fé

A ligação Andes-Atlântico e a nova função desempenhada pelo Brasil no tráfico internacional de drogas transformaram a Amazônia em um ativo econômico da ilegalidade. 

A partir desse cenário, o Intercept investigou a atuação de um movimento religioso permeado de mistério, que alguns classificam como seita: a Associação Evangélica da Missão Israelita do Novo Pacto Universal, a Aeminpu, cujos membros se autodenominam “israelitas” e pregam habitar a “terra prometida”, localizada em uma das regiões com maior incidência de cultivo de folha de coca no Peru. 

Há três semanas, equipes da polícia antidrogas peruana erradicaram cerca de 250 hectares de plantações de coca em um povoado israelita próximo ao rio Javari, na região de fronteira com o Brasil. A operação faz parte dos esforços do governo peruano para conter a expansão de cultivos ilegais na Amazônia e reforça a pressão sobre o fornecimento de coca para organizações criminosas que atuam entre os dois países.

Forças de segurança peruanas destruindo plantação de coca ilegal em povoado israelita na divisa com o Brasil (Foto: Proyecto CORAH/Divulgação)

Apesar do nome, eles não vêm de Israel. Adotaram o termo de forma simbólica por crerem que ser israelita não depende de origem étnica ou familiar. Eles creem que Deus pediu a seu fundador para inaugurar um novo Israel, transferido do Oriente Médio para o Peru como punição pela perda de fé dos israelitas originais.

O grupo evangélico é uma organização político-religiosa de origem peruana, fundada no fim da década de 1960 pelo já falecido Ezequiel Ataucusi Gamonal, considerado um profeta por seus seguidores. Estima-se que, hoje, os israelitas são pouco mais de 100 mil, e seu braço político é o partido Frente Popular Agrícola del Perú, a Frepap. 

Eles veem no agro um meio para transformar a sociedade enquanto adotam posturas vinculadas à extrema direita religiosa. A Frepap já foi a quarta em representação no Congresso peruano, ocupando 16 das 130 cadeiras do parlamento, marcado pela fragmentação. Hoje, o atual líder desse movimento milenarista e de messianismo andino é Ezequiel Jonás Ataucusi, filho do fundador da Aeminpu.

Os israelitas chegaram à região da tríplice fronteira, entre Peru, Brasil e Colômbia, ainda nos anos 1990, impulsionados pelo plano do seu líder de migrar para as regiões mais baixas dos Andes, local que ele havia visitado no fim da década. 

Depois, parte do grupo se fixou na Ilha Islândia — território peruano localizado na confluência dos rios Javari e Amazonas — e rapidamente se inseriram no comércio local, atuando tanto em atividades formais quanto em redes da economia ilegal.

Membros da Aeminpu no comércio de Atalaia do Norte, divisa do Brasil com o Peru (Foto: João Laet)

Fontes da Polícia Federal, ouvidas sob anonimato pelo Intercept, relataram que os israelitas ocupam posição de relevância no comércio agrícola local, com a venda de arroz e mandioca, e usam dessa vantagem para negociar terras e expandir sua influência na região. 

De acordo com os agentes, o grupo atua como uma espécie de força híbrida, que combina comércio, fé e práticas ilícitas. Eles estão envolvidos na extração ilegal de madeira e tanto no cultivo quanto na venda da folha de coca.

“Todas as referências que você encontrar relacionadas a eles, tanto dentro do Peru como no Brasil, os associam fortemente ao narcotráfico. Alguns membros já foram até presos. Eles têm esse envolvimento muito por conta de terem ‘domado’ aquela região. Cultivaram e conhecem aquelas terras, ou seja, sabem como plantar lá e vivem disso,” conta ao Intercept David Saenz, doutor em antropologia pela Universidade Federal do Amazonas.

O antropólogo relata que, quando os israelitas são perguntados sobre possíveis vínculos de parte de seus membros com atividades ilícitas, eles respondem que, assim como toda religião, vão ter as pessoas desviadas e de mau-caráter que estão infiltradas dentro da religião para se aproveitar. Então, essas pessoas são, segundo eles, cooptadas por traficantes que prometem dinheiro em troca da folha de coca.

“Eles [os israelitas] estão crescendo muito. O que contam em Atalaia do Norte é que eles são os maiores produtores de alimentos, hortaliças, frutas e macaxeira da região. Cada vez vejo um grupo maior, mais numeroso. Fala-se que, por trás deste crescimento, está o tráfico, a cocaína”, relata o fotógrafo João Laet, que fotografa a região há muitos anos para vários jornais nacionais e internacionais. 

“Outra curiosidade que contam deles é que eles dizem que o traficante brasileiro não dura muito porque ostenta e aparece, cheio de ouro”, explica Laet. “Eles não fazem isso. Investem em terra, nas casas, nas comunidades”, complementa. 

Tentamos obter um posicionamento dos membros da comunidade israelita em quatro ocasiões, por telefone e e-mail, mas não recebemos nenhuma resposta até a publicação desta reportagem.

Comando Vermelho e PCC se fortalecem na Amazônia

Na região, onde a pesca e a caça clandestinas são práticas comuns, integrantes do grupo passaram a atuar no trânsito de produtos ilícitos, como drogas, animais silvestres e ouro extraído de garimpos irregulares. 

Isso tornou parte do movimento aliados locais importantes na expansão do Comando Vermelho, CV, por rotas amazônicas de contrabando, como revelou Gabriel Funari, diretor do Observatório de Economias Ilícitas na Região Amazônica da Global Initiative Against Transnational Organized Crime, a GI-TOC, em sua recente pesquisa Fronteiras Ilícitas e Governança Criminal da Tríplice Fronteira Amazônica.

Atalaia do Norte vista de cima, divisa com o Peru, região considerada um ponto crítico da extração ilegal de madeira (Foto: João Laet)

A proximidade de áreas de cultivo de coca e de recursos naturais de alto valor comercial permite ao CV articular diferentes cadeias de produção e distribuição. Assim, o grupo de traficantes do Rio de Janeiro reduz a dependência de fornecedores peruanos e colombianos e passa a controlar todas as etapas do negócio — do refino à exportação da cocaína. 

Essa integração logística deu ao CV um poder inédito sobre o comércio ilícito na fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. O grupo foi o primeiro entre as facções brasileiras a enxergar, ainda nos anos 1990, o potencial estratégico de cidades como Leticia, na Colômbia, e Tabatinga, no Amazonas — e hoje colhe os resultados desta aposta.

Operações como a que aconteceu no Rio de Janeiro no fim de outubro, deixando mais de 120 mortos, têm relação direta com esse reposicionamento do Brasil no mercado internacional do tráfico, que acirra disputas pelo domínio de áreas e expansão territorial – vale ressaltar que o RJ tem importado traficantes do Brasil inteiro.

A situação na região se agrava ainda mais porque organizações criminosas, além de comandarem o tráfico e outras atividades ilícitas urbanas, também passaram a investir diretamente na extração de ouro.

Essa convergência entre o garimpo ilegal e o tráfico transforma o território em um polo estratégico para o crime organizado. Facções como o Comando Vermelho veem no ouro um novo motor econômico capaz de garantir presença duradoura na região, consolidando sua influência sobre rotas e mercados ilícitos na Amazônia.

Atualmente, o CV e o PCC têm ampla presença na Amazônia. Mapeamento do consórcio de jornalistas do projeto Amazon Underworld mostra que 473 municípios da Amazônia registram a presença de pelo menos uma das duas principais facções criminosas do Brasil – isso representa 71% dos municípios dos seis países analisados no estudo. 

Essas organizações transformaram os portos brasileiros em peças centrais da engrenagem do tráfico internacional de drogas. O PCC consolidou-se como um dos principais fornecedores do mercado europeu de cocaína — estimado em mais de 11 bilhões de euros, segundo o relatório A Amazônia sob ataque —, enquanto o Brasil se tornou o ponto de partida de 70% da cocaína apreendida na África e 46% da interceptada na Ásia entre 2015 e 2021. 

Vale pontuar que, nos últimos anos, o tabuleiro do crime organizado no Rio passou por uma reconfiguração. E, em âmbito nacional, o CV, que havia perdido espaço para o PCC, tenta retomar território — especialmente nos últimos cinco anos. 

Enquanto o PCC se expandiu e consolidou presença em vários estados ao longo da última década, o Comando Vermelho reagiu com uma estratégia de alianças e absorção de facções regionais. O grupo vem estabelecendo parcerias com organizações locais em estados como Amazonas, Rio Grande do Norte e Bahia, ampliando novamente sua influência e reconstruindo sua rede fora do eixo fluminense.

Na região amazônica, o fluxo de drogas ganhou força por meio de rotas fluviais e portuárias. O maior carregamento de cocaína já apreendido em um porto brasileiro foi interceptado em Vila do Conde, em Barcarena, no Pará, próximo a Belém. 

Já Manaus funciona como um ponto estratégico: a droga chega pela rota do Rio Solimões, segue pelo Amazonas e dali é distribuída tanto para o consumo interno quanto para o mercado internacional. As duas facções mantêm forte presença em Belém e Manaus, cidades que se tornaram nós logísticos essenciais para o narcotráfico na Amazônia e além dela. No total, há pelo menos 22 facções atuando na região amazônica no Brasil.

PF encontrou 3,7 toneladas de drogas enterradas por um traficante colombiano em comunidade indígena da Tríplice Fronteira. (Foto: Polícia Federal/Divulgação)

É diante desse cenário que o estudo Floresta em Pó propõe deslocar o eixo do debate. Para cumprir metas climáticas ligadas ao uso da terra, avançar numa sociobioeconomia de baixo carbono – que reconhece dimensões sociais, biológicas e econômicas na construção de modelos sustentáveis – e proteger povos e comunidades tradicionais, sugere que será necessário desarticular as redes criminosas que dominam territórios.

O estudo alerta que isso não acontecerá, entretanto, sem que se rompa o paradigma proibicionista, que encara a política de drogas sob a ótica anacrônica da segurança pública, apenas com enfrentamento policial, sem uma abordagem integrada e com ações baseadas em evidências – uma vez que as drogas estão cada vez mais puras e acessíveis, e as facções têm se fortalecido e operado em um maior número de países.

Da aldeia à ‘cracolândia indígena’

Um documento produzido recentemente pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a Funai, e obtido com exclusividade pelo Intercept destaca que a situação na região está “fora do controle”, se referindo às questões de violência, incluindo crimes ambientais, tráfico, pirataria e as consequências do consumo excessivo de álcool e drogas, como o aumento da violência e dos suicídios.

De acordo com o relatório, as famílias não conseguem conter seus filhos, que são absorvidos por uma área descrita como “cracolândia indígena”, em Tabatinga. Antes, envolvia no máximo adolescentes, mas agora também são vistas crianças de 10 a 12 anos.

Em seu trabalho, Gabriel Funari mostra que a presença crescente do crime organizado na tríplice fronteira tem afetado profundamente a vida dos povos indígenas que vivem na região – em especial porque facções e redes de tráfico invadem territórios tradicionais para recrutar mão de obra para o cultivo e o transporte de drogas. 

Belém do Solimões, Terra Indígena Evaré I, em Tabatinga (AM), área onde lideranças locais relatam o avanço do consumo de drogas. (Foto: Ibama/Divulgação)

Jovens indígenas são aliciados para atuar como carregadores — as chamadas “mulas” — ou trabalhadores nas plantações de coca. Já meninas e mulheres são levadas para esses mesmos locais para prestar serviços domésticos, cozinhar ou exercer trabalho sexual.

Os pagamentos, que podem chegar a cerca de 500 dólares por mês, superam em muito o que se ganha em empregos formais disponíveis nas aldeias. Mas o aparente ganho logo se dissolve: grande parte do dinheiro é gasta nas próprias plantações, com comida, álcool e drogas. 

O resultado, aponta o estudo de Funari, é um ciclo de dependência e exploração — jovens que retornam às comunidades sem recursos acabam sendo empurrados de volta às redes criminosas. 

Lideranças indígenas de Leticia e Tabatinga relatam na pesquisa o aumento de pessoas em situação de rua, o avanço do consumo de drogas e um número alarmante de suicídios entre jovens. Centros de reabilitação nas duas cidades já operam no limite da capacidade.

Como mostra o Floresta em Pó, o impacto social e penal é massivo. O Brasil se aproxima de 1 milhão de presos – cerca de 30% relacionado às drogas – e registrou mais de 6 mil mortes por policiais em serviço em 2024. Na Amazônia, a última década viu um crescimento de quase 70% no encarceramento e 80% no número de mortes violentas.

O ambiente de violência também se estende a quem tenta denunciar ou combater esses crimes. Servidores públicos, ativistas e jornalistas que atuam na defesa dos direitos indígenas e no combate ao tráfico têm sido alvos de ameaças e assassinatos. 

‘Apesar da repercussão mundial do caso Dom e Bruno, a atuação do estado brasileiro não demonstrou a mesma preocupação’.

Em setembro de 2019, Maxciel Pereira dos Santos, funcionário da Funai foi executado a tiros na principal avenida de Tabatinga — uma retaliação por seu trabalho contra a pesca ilegal no Vale do Javari. 

Três anos depois, em junho de 2022, o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips expôs ao mundo a força das redes criminosas que atuam na região. O mandante dos crimes, um cidadão peruano, controlava boa parte do comércio ilegal de pesca no Javari — símbolo de um território onde o estado é quase ausente e o crime se impõe pela força.

Beto Marubo, representante da organização indígena Univaja, contou ao Intercept que, “apesar da repercussão mundial do caso Dom e Bruno, a atuação do estado brasileiro não demonstrou a mesma preocupação e o mesmo afinco”. 

Segundo ele, a situação de insegurança permanece a mesma, com indígenas dependendo de programas de proteção, diante de políticas muito tímidas e desorganizadas, marcadas por falta de investimento e uma atenção do estado totalmente míope para a região.

Pirataria fluvial é outro desafio

O alto valor das mercadorias ilegais que circulam pela região da tríplice fronteira também impulsionou um fenômeno cada vez mais frequente na região: a pirataria fluvial. Esses grupos, fortemente armados e equipados com embarcações velozes — algumas delas até blindadas —, atacam comboios e pequenas embarcações que navegam pelos rios amazônicos, fugindo com facilidade das patrulhas policiais

“Os policiais não querem estar lotados nestas bases fluviais porque os traficantes têm barcos maiores, blindados e armas muito mais potentes. Às vezes, o policial está na base, vê a lancha se aproximando e se joga no chão, porque, mesmo que não abordem os traficantes, eles atiram para mostrar o que podem fazer”, relatou uma fonte ao Intercept, sob condição de anonimato, em meio ao congresso do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em Manaus, em agosto deste ano. 

Na ocasião, o estado do Amazonas apresentava um “caveirão aquático”, embarcação blindada para fuzis. Um representante da empresa fornecedora, Modirum Gespi, afirmou que, no Brasil, há cerca de 60 embarcações do tipo, especialmente no Amazonas, Pará e São Paulo.

Além de roubar carregamentos de ouro, drogas e animais silvestres, os piratas também assaltam indígenas e ribeirinhos que viajam para Leticia e Tabatinga em busca de mantimentos e produtos básicos, revelou o estudo da GI-TOC feito por Gabriel Funari.

Mesmo nas áreas onde o garimpo não é predominante, como nas proximidades de Leticia e Tabatinga, os impactos da mineração ilegal também se fazem sentir. A contaminação por mercúrio — substância tóxica utilizada na extração de ouro e despejada nos rios Solimões e em seus afluentes — compromete a saúde da população local por afetar a qualidade da água e dos alimentos.

Repressão ineficaz fortaleceu negócio ilegal

A publicação Floresta em Pó ainda alerta que a política de proibição das drogas continua sendo muito bem sucedida em moer recursos públicos na mesma medida que ergue uma economia criminal cada vez mais resiliente, extrativista e transnacional, cujos lucros bilionários são concentrados e os danos, como violência, desigualmente distribuídos.

Até os anos 1980, cerca de 90% da produção de folhas de coca se concentrava no Peru e na Bolívia. A matéria-prima prensada era então transportada para a Colômbia, onde passava pelo processo de refino e exportação. 

Funcionava assim: os cartéis colombianos compravam pasta-base de áreas controladas por grupos armados no Peru, processavam em laboratórios e embarcavam um produto padronizado e lucrativo para os países do Norte Global, especialmente os Estados Unidos. 

Mas a intensificação de políticas de erradicação e o endurecimento da vigilância sobre rotas de forma descoordenada e pouco inteligente não extinguiram o tráfico nem mudaram sua logística. 

Muito pelo contrário, fizeram, na verdade, com que ficasse mais pulverizado, a droga mais pura, e o lucro dos criminosos, ainda maior. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, o Unodc, revelou neste ano que a produção, as apreensões e o consumo de cocaína continuam batendo recordes.

Operações militares acabaram deslocando fluxos para áreas mais remotas, dispersaram facções e agravaram conflitos territoriais. O efeito direto disso foi que as apreensões de pasta-base e pó triplicaram na Amazônia Legal entre 2019 e 2023, apontou o estudo Floresta em Pó.

‘O vácuo de poder deixado pelo estado, especialmente durante o governo Bolsonaro, foi ocupado pelas organizações criminosas’.

A política de interdição aérea, conhecida como Lei do Abate, em vigor no Brasil desde 2004, mudou profundamente a geografia do tráfico de drogas no país. Até então, o uso de aeronaves de pequeno porte era o principal meio utilizado para o envio de cocaína, mas o reforço na fiscalização e o risco crescente de interceptação tornaram essa rota menos viável. 

Diante disso, os traficantes passaram a apostar nas hidrovias amazônicas, que oferecem caminhos extensos, de difícil monitoramento e conectam regiões produtoras da droga a portos estratégicos. 

O resultado disso foi mais violência, pontuou o estudo Landing on Water: Air Interdiction, Drug-Trafficking Displacement, and Violence in the Brazilian Amazon (Aterrizando na Água: Interdição Aérea, Tráfico de Drogas e Violência na Amazônia Brasileira), produzido por pesquisadores do Insper e da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, a FEA-USP.

Após a adoção da política de interdição, segundo a pesquisa, houve um aumento de quase 30% no número de homicídios nas cidades ao longo dos rios que conectam a Amazônia aos países produtores de cocaína que “podem ser atribuídos ao deslocamento do tráfico”.

Enquanto o estado tenta conter o avanço do crime organizado com operações pontuais, quem, como Beto Marubo, vive no Vale do Javari, vê com ironia o fato de que as facções são mais bem organizadas do que o poder público na região. “O vácuo de poder deixado pelo estado, especialmente durante o governo Bolsonaro, foi ocupado pelas organizações criminosas”, afirma.

*Esta reportagem foi publicada em parceria com o Epicentro.TV, do Peru.

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