O casamento do Centrão com a extrema direita está cada vez mais escancarado. O avanço da pauta da anistia não deixa dúvidas de que a base do Congresso já se conformou em atuar como sócia do projeto golpista.
Não se trata apenas de uma articulação de bastidor: é a normalização de que é aceitável perdoar a tentativa de destruição da democracia de 8 de Janeiro em nome de conveniências políticas.
Na semana passada, escrevi no Intercept sobre como o establishment — imprensa, Faria Lima e Centrão — já foi convencido pela extrema direita de que existe algo como uma “anistia light”.
Essa ficção jurídica se transformou em consenso entre os que comandam os rumos do país e está pronta para avançar tão logo o julgamento do núcleo crucial da tentativa de golpe, retomado hoje no STF, seja concluído.
O natural seria que a reportagem da edição desta semana de Cartas Marcadas, escrita mais uma vez pelo repórter Thalys Alcântara, fosse publicada em veículos que cobrem o dia a dia da Câmara dos Deputados – o que não é nosso caso. A verdade é que, para os donos desses veículos, não vale a pena desafiar figuras como Hugo Motta.
Como o nosso jornalismo não é do tipo que prefere bajular tomadores de decisão em vez de confrontá-los, é aqui que você vai ler que Motta está chefiando uma escalada autoritária contra a imprensa.
Não é uma denúncia que vai facilitar nosso trabalho em Brasília, tampouco aumentar nossas chances de entrevistar os donos do poder. Mesmo assim, vamos publicá-la – simplesmente porque acreditamos que a democracia se sustenta no direito de perguntar, no dever de incomodar e na recusa a aceitar a censura como rotina.
O cercadinho do silêncio
Hugo Motta, do Republicanos da Paraíba, está usando estratégias cada vez mais questionáveis para limitar o trabalho de jornalistas e blindar sua atuação como presidente da Câmara dos Deputados.
Na terça-feira, 2 de setembro, uma das estratégias foi posicionar uma barreira de seguranças para impedir que a imprensa se aproximasse – e perguntasse, por exemplo, sobre o avanço da pauta da anistia.
No final do mês passado, Motta decidiu criar um corredor exclusivo com cavaletes para que caminhasse isolado dos jornalistas e um cercadinho para distanciá-los da cobertura de reuniões.
As medidas rompem o direito de os jornalistas circularem livremente dentro do Congresso Nacional – o que permite, por exemplo, que a imprensa questione parlamentares, fazendo as perguntas que quiserem.
Verdade seja dita: as restrições ao trabalho da imprensa dentro da Câmara não são uma inovação de Hugo Motta.
Quando assumiu seu primeiro mandato na presidência da Casa, em fevereiro de 2021, o deputado federal Arthur Lira, do PP de Alagoas, usou a sala do comitê de imprensa, que ficava próxima ao plenário, para instalar seu gabinete.
Lira chegou a autorizar a remoção dos jornalistas para uma sala no subsolo, sem janelas. Depois, recuou parcialmente e transferiu os repórteres para uma sala menor, mas com janelas. Agora, com Motta no poder, a imprensa volta a ser alvo.
Estopim: pergunta sobre rachadinha
Coincidência ou não, a limitação do acesso dos jornalistas na atual gestão aconteceu depois que Motta foi questionado pelo repórter do site Metrópoles, Manuel Marçal, sobre um esquema de “rachadinhas” que funcionaria dentro de seu gabinete.
Na ocasião, no último dia 19 de agosto, Motta ignorou as perguntas do repórter, que chegou a ser empurrado com truculência por seguranças para longe do parlamentar. A cena foi gravada em vídeo e, quase um mês depois, quase ninguém viu. Agora, você pode assisti-la nas nossas redes sociais.
No dia seguinte, o gabinete de Motta comunicou a jornalistas que criaria o tal corredor exclusivo, delimitado por cavaletes, entre a chapelaria da Câmara e a sala de líderes. Parte dos cavaletes chegou a ser instalada. A medida foi apelidada entre repórteres como “BRT do Motta”.
Já no dia 26 de agosto, um segurança segurou o pulso de uma repórter que tentava falar com Hugo Motta quando ele entrou no elevador. Depois que a jornalista fez uma reclamação interna sobre a situação, a assessoria do presidente da Câmara pediu desculpas a ela.
Escalada de restrições segue
A última ação de Motta contra a imprensa aconteceu no final da sessão do plenário da Câmara, na noite de terça. Jornalistas correram na direção do presidente para fazer perguntas, como de costume, mas foram impedidos por dois homens de terno.
Indignados, os repórteres questionaram Motta, que se limitou a dizer que houve “problemas recentes” e deixou o plenário sem explicar que problemas eram esses.
Sem entrar em detalhes, a assessoria de Motta alega que alguns jornalistas interromperam a circulação do presidente e a Polícia Legislativa Federal foi instruída a “melhor delimitar os campos de circulação para melhorar a segurança de todos”.
Outra mudança que pode limitar o trabalho dos jornalistas na Câmara é a restrição do espaço de circulação durante as reuniões dos líderes, que acontecem uma vez por semana. Essas reuniões são importantes porque os representantes dos partidos definem as pautas legislativas dos dias seguintes.
A Polícia Legislativa e a assessoria da presidência da Câmara decidiram que, a partir de agora, os jornalistas terão que esperar os líderes dentro do hall do Colégio de Líderes, onde acontecem essas reuniões semanais. Na prática, isso facilita a fuga de parlamentares que não querem encarar jornalistas.
A assessoria da Câmara dos Deputados alega que o objetivo das mudanças é liberar o corredor lateral, local de passagem e rota de fugas, e que isso teria sido acordado com representantes do Comitê de Imprensa em uma reunião do dia 26 de agosto.
O agro é ogro
Sabemos que é cansativo falar a todo tempo sobre como é difícil fazer o que fazemos. Mas não dá para ignorar o episódio em que os deputados federais Marcelo Moraes, do PL do Rio Grande do Sul, e Rafael Pezenti, do MDB de Santa Catarina, hostilizaram o repórter Pedro Nakamura, do site O Joio e O Trigo, durante a feira agrícola Expointer.
É um retrato do nível de intimidação a que estamos expostos no Brasil. Em vez de responder com argumentos às críticas legítimas da imprensa, os parlamentares se dedicaram a constranger e expor um profissional que apenas cumpria seu trabalho.
Nossa solidariedade está com Pedro Nakamura e com toda a equipe d’O Joio e O Trigo, que há anos realiza um trabalho exemplar de jornalismo investigativo sobre alimentação, saúde e poder — muitas vezes enfrentando os interesses de algumas das indústrias mais poderosas do país. Neste caso, a do tabaco.
LEIA OUTRAS EDIÇÕES DE CARTAS MARCADAS:
- Senado arma julgamento paralelo para sabotar Supremo Tribunal Federal
- PM promovido por Ronaldo Caiado matou delator do PCC
- Vereador do Novo que fez “Dossiê Moraes” descumpriu contrato de R$ 33 milhões no governo Bolsonaro
- Empresa de Nikolas gasta R$ 750 mil na Meta para convocar cristãos para guerra
- Vídeo: Marcos Pereira, presidente do Republicanos, come ‘bife de ouro’ em NYC
- PL usa fundo partidário para pagar sócio de Eduardo Bolsonaro e organizador do CPAC no Brasil
- Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo posam de defensores da imprensa que sempre atacaram
- Dinheiro de produtora contratada pelo PL vai parar em reduto eleitoral de Valdemar da Costa Neto
- Advogados espalham falso relato de tortura contra presa do 8 de Janeiro
O Intercept é sustentado por quem mais se beneficia do nosso jornalismo: o público.
É por isso que temos liberdade para investigar o que interessa à sociedade — e não aos anunciantes, empresas ou políticos. Não exibimos publicidade, não temos vínculos com partidos, não respondemos a acionistas. A nossa única responsabilidade é com quem nos financia: você.
Essa independência nos permite ir além do que costuma aparecer na imprensa tradicional. Apuramos o que opera nas sombras — os acordos entre grupos empresariais e operadores do poder que moldam o futuro do país longe dos palanques e das câmeras.
Nosso foco hoje é o impacto. Investigamos não apenas para informar, mas para gerar consequência. É isso que tem feito nossas reportagens provocarem reações institucionais, travarem retrocessos, pressionarem autoridades e colocarem temas fundamentais no centro do debate público.
Fazer esse jornalismo custa tempo, equipe, proteção jurídica e segurança digital. E ele só acontece porque milhares de pessoas escolhem financiar esse trabalho — mês após mês — com doações livres.
Se você acredita que a informação pode mudar o jogo, financie o jornalismo que investiga para gerar impacto.