Vereador do Novo que fez “Dossiê Moraes” descumpriu contrato de R$ 33 milhões no governo Bolsonaro

O dossiê do dossiê

Vereador do Novo que fez “Dossiê Moraes” descumpriu contrato de R$ 33 milhões no governo Bolsonaro

Cartas Marcadas

Parte 6

Cartas Marcadas é uma newsletter semanal que investiga a ascensão da extrema direita, as ameaças à democracia e os bastidores do poder em Brasília.


O texto abaixo foi publicado originalmente na newsletter Cartas Marcadas, enviada na última terça-feira, 7.

Eu sei que, muito provavelmente, você está feliz com a prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, mas eu tenho aquele papel chato de não fazer ninguém esquecer que há uma nova tentativa de golpe em curso no Brasil.

E, mesmo que a segunda-feira tenha sido boa, vale lembrar que a semana passada foi muito favorável aos conspiradores: vieram as sanções contra Alexandre de Moraes e a oficialização das tarifas norte-americanas sobre produtos brasileiros – desidratadas, é verdade.

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Mas o fato é que o ataque não vai parar. Com Bolsonaro preso, tudo indica que as coisas vão se intensificar. E os Estados Unidos estão, de novo, do lado golpista da história. Você lembra que, em 2022, o golpe fracassou por falta de respaldo internacional. Agora, o cenário é outro.

Mas, concordemos ou não sobre o momento em que estamos, vamos ao que interessa: combater o golpismo.

Como você sabe, tenho me debruçado sobre toda essa movimentação. Isso envolve, por exemplo, assistir ao Timeline, programa do blogueiro foragido Allan dos Santos. Na edição da última sexta-feira, 1º, me chamou atenção ver Eduardo Bolsonaro divulgando o “Dossiê Moraes” — uma nova peça da engrenagem golpista.

A edição desta semana de Cartas Marcadas será, portanto, um “dossiê do dossiê”: vamos expor as mentiras, omissões e distorções de quem tenta transformar ações legais contra golpistas em abusos de autoridade. 

E revelar a contradição do autor: um vereador do Novo que se diz anti-estado, mas cuja empresa fechou um contrato com valor total de R$ 33 milhões com o Executivo Federal durante o governo Bolsonaro – e não entregou o que deveria.

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Destrinchando o dossiê

Para que você não tenha que ler, vou explicar: o tal “Dossiê Moraes” já começa com uma manipulação clara ao apresentar o chamado Placar de Ofensas, que lista mais de 300 supostas violações de princípios constitucionais associadas a 77 atos que são considerados como “abusos” cometidos pelo ministro Alexandre de Moraes.

Para cada ação de Xandão questionada pelo dossiê, é atribuído um rol extenso e inflacionado de princípios, como liberdade de expressão, devido processo legal, proporcionalidade, separação de poderes, imparcialidade judicial e dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, o documento cria a falsa impressão de que o STF estaria sistematicamente violando uma enormidade de direitos. Essa estratégia não só infla artificialmente os supostos “abusos”, como também banaliza o significado dos princípios constitucionais.

No mundo paralelo do dossiê, até operações da Polícia Federal contra suspeitos de financiar uma tentativa de golpe são tratadas como abusos de autoridade de Moraes. 

Três fases da Operação Lesa Pátria, por exemplo, são mencionadas como exemplos de arbitrariedades.

Uma delas, a 23ª fase, é incluída no dossiê com o parecer de uma suposta “especialista” jurídica, a advogada Gabriela Ritter. O material omite um conflito de interesse: ela é filha de Miguel Ritter, bolsonarista condenado a 14 anos de cadeia e um dos alvos daquela fase da operação.

Já a 25ª fase, que mirou empresários que bancaram acampamentos golpistas e encontrou armas, dinheiro e documentos, é descrita como “prisão sem denúncia”, ignorando que prisões cautelares são medidas legais previstas para evitar obstrução da justiça ou fuga.

Sobre os abusos da 26ª fase da Lesa Pátria, contra suspeitos de lavagem de dinheiro para atos antidemocráticos, o dossiê se supera: cita Elon Musk como especialista para comprovar a injustiça, dizendo que, dias depois dessa operação, o bilionário falou sobre a censura no Brasil. O tweet mencionado, porém, passa longe de falar sobre a ação da PF.

O dossiê, claro, também repete a velha distorção da extrema direita sobre o conceito de liberdade de expressão. Quase todos os supostos “abusos” têm essa alegação, mesmo em casos de incitação à violência, convocação de atos golpistas ou ataques sistemáticos à democracia.

Bloqueios e suspensões de perfis em redes sociais, como os de Allan dos Santos e outros, além de medidas contra plataformas como Telegram e X (antigo Twitter), são todos tratados como censura. Zero novidade.

Mas o site não se limita a divulgar o documento enviesado; ele convida o público a se tornar co-autor de um pedido de impeachment contra Alexandre de Moraes, que segundo o próprio site será apresentado em 8 de setembro de 2025.

A ação antecipa a estratégia da extrema direita para o próximo mês, aproveitando que o 7 de setembro deve ocorrer muito próximo ao julgamento da condenação de Jair Bolsonaro, tentando usar esse momento para pressionar e dar andamento ao impeachment.

Para assinar, o site pede dados pessoais como nome completo, CPF, telefone, e-mail, CEP, cidade e estado — informações que não são necessárias para um processo formal de impeachment. 

Na prática, é uma captação de leads para o Partido Novo e aliados, usando a mobilização política como pretexto para construir um banco de dados com fins eleitorais e partidários, sem transparência sobre esse uso.


O autor e a obra

A parte boa da nova peça da campanha bolsonarista contra Moraes é que ela dá um novo rosto à tramoia anti-STF: o do vereador curitibano Rodrigo Marcial, do partido Novo. Ele se apresenta como criador e principal articulador do chamado “Dossiê Moraes”. Por isso, no ato pró-Bolsonaro da capital paranaense, no domingo, 3, foi um dos destaques do trio elétrico.

No site do dossiê, Marcial destaca o apoio de outras figuras da extrema direita, a maior parte de colegas do Partido Novo, como o senador cearense Eduardo Girão, e o ex-procurador e ex-deputado federal paranaense Deltan Dallagnol – inelegível como Bolsonaro.

Marcial, no entanto, carrega uma contradição incômoda para quem afirma combater o “aparelhamento do estado”: apesar do discurso anti estatal típico do Novo, sua empresa de planos de saúde, a MedHealth, foi contratada em 2021 pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná, sob o governo Bolsonaro, pelo valor de R$ 33,3 milhões.

O contrato, feito por pregão eletrônico, previa a prestação de serviços médicos a servidores ativos e inativos da universidade. Mas, três meses depois da assinatura do acordo, a MedHealth não executou o serviço e viu o contrato ser rescindido de forma unilateral pelo Executivo.

A MedHealth, na ocasião, já era comandada por Marcial, que aparece como sócio-administrador no CNPJ da empresa.

Depois da publicação da newsletter, a UTFPR enviou uma nota ao Intercept Brasil confirmando que rescindiu, em maio de 2021, o contrato firmado com a MedHealth. Segundo a instituição, o acordo foi encerrado de forma unilateral antes da execução, e nenhum valor chegou a ser pago à empresa.

Segundo a universidade, a decisão foi tomada após diligências internas que identificaram o descumprimento de exigências previstas no edital, como a proibição de subcontratação e a ausência de rede própria de atendimento nas 13 cidades onde a universidade possui campus. A UFTPR disse que o serviço seria custeado integralmente pelos próprios beneficiários, sem uso direto de recursos públicos. O espaço segue aberto para manifestações.

Em vídeo publicado nesta quarta-feira, 6, em resposta à reportagem, o vereador Rodrigo Marcial afirmou que sua empresa, a MedHealth, jamais recebeu recursos públicos e que o contrato com a URTPR foi encerrado antes do início da prestação de serviços. Segundo ele, a rescisão foi unilateral e ilegal, impedindo a execução do acordo firmado por meio de licitação.

Marcial também disse ser o fundador da MedHealth e alegou ter vencido a licitação por oferecer a proposta mais barata, o que representaria economia para os cofres públicos. Ele afirma ter sido alvo de um processo administrativo “viciado”, com o objetivo de beneficiar a antiga prestadora do serviço.

Por fim, negou que tenha construído sua trajetória profissional com base em contratos com o governo. Segundo Marcial, a atuação da MedHealth sempre foi no setor privado e o acordo com a UTFPR foi a primeira tentativa de atuar no serviço público — frustrada, segundo ele, por interferência indevida. Ele classificou a reportagem como uma tentativa política de deslegitimar o “Dossiê Moraes”.

Hoje vereador em primeiro mandato, Marcial diz ter feito carreira como advogado e professor de economia. Integrou o Instituto de Formação de Líderes e criou, ainda na universidade, grupos voltados à difusão do ideário liberal.

Ao assumir como suplente na Câmara Municipal de Curitiba, em 2022, e depois ser eleito de fato em 2024, manteve a retórica de combate à “gastança pública” e de valorização do empreendedorismo. Agora, na dianteira do “Dossiê Moraes”, tenta posar como fiscal da Constituição. Mas seu histórico mostra que a disposição para fazer negócios com o estado não é um problema — desde que seja seu CNPJ que esteja na ponta do contrato.


Quero encerrar esta edição de Cartas Marcadas com um convite: qual personagem da conspiração bolsonarista você gostaria de ver investigado por aqui? A lista é longa, eu sei — vai de congressistas e pastores a militares e governadores. Mas quero fazer isso com você, leitor: escolher juntos alguns nomes para “puxarmos a capivara”, antes que seja tarde demais.

Se alguma dessas figuras nefastas que se tornaram parte do nosso noticiário te desperta desconfiança, escreva para [email protected]. Pode ser o começo da próxima reportagem. Valendo!


CORREÇÃO (6 de agosto de 2025, às 17h45): a versão original desta reportagem mencionava, de forma equivocada, o nome do pai do vereador Rodrigo Marcial, bem como sua suposta ligação com a empresa MedHealth. O erro foi corrigido e a informação removida assim que foi identificada pelo Intercept Brasil.

ATUALIZAÇÃO (6 de agosto de 2025, às 18h): o texto foi atualizado para incluir as alegações de Rodrigo Marcial publicadas em vídeo publicado nas suas contas nas redes sociais.

O seu futuro está sendo decidido longe dos palanques.

Enquanto Nikolas, Gayers, Michelles e Damares ensaiam seus discursos, quem realmente move o jogo político atua nas sombras: bilionários, ruralistas e líderes religiosos que usam a fé como moeda de troca para retomar ao poder em 2026.

Essas articulações não ganham manchete na grande mídia. Mas o Intercept está lá, expondo as alianças entre religião, dinheiro e autoritarismo — com coragem, independência e provas.

É por isso que sofremos processos da Universal e ataques da extrema direita.
E é por isso que não podemos parar.

Nosso jornalismo é sustentado por quem acredita que informação é poder.
Se o Intercept não abrir as cortinas, quem irá? É hora de #ApoiarEAgir para frear o avanço da extrema direita.

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