Dias após o Ministério da Justiça anunciar o “Programa” Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas e dar autorização para ações específicas de segurança pública no Rio e Bahia, teve início mais uma operação cinematográfica no Rio. Helicópteros, drones, milhares de policiais em favelas. Já são dois dias da megaoperação e o grande saldo até agora foi a prisão de um policial militar da ativa, detido fazendo escolta de um carregamento de 100 quilos de cocaína.
Isso me lembrou três coisas: uma entrevista do Hélio Luz, ex-deputado estadual e ex-chefe de Polícia no Rio que disse que “sem pagar a polícia, não se pratica crime no Rio de Janeiro […] O crime organizado não está na favela, está no estado brasileiro”; as pesquisas de José Cláudio Alves que dizem que poder paralelo não existe, pois “é o estado“; e também que as políticas de segurança no campo da esquerda diferem pouco ou nada das de direita – e, se você falar isso, ainda leva pedrada.
Segurança pública no Brasil é feita com negacionismo. Dados, pesquisas e análises são desconsiderados, e o que temos é mais uma operação – como as centenas de milhares feitas nas últimas décadas e que não deram em nada.
Operações policiais no Brasil ‘enxugam gelo’
“Precisamos entender que operações como essa representam enxugar gelo”, disse o Major Blaz, então porta-voz da Polícia Militar do Rio, sobre uma operação na Rocinha em que a munição da polícia acabou após horas de tiroteio, em 2022.
Ele não está errado.
Apenas 1,7% das operações policiais realizadas no Grande Rio entre 2007 e 2020 podem ser consideradas eficiente em relação a seus objetivos e consequências, como aponta pesquisa do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos, o GENI, da Universidade Federal Fluminense, a UFF, que analisou 11.323 operações feitas pelas forças de segurança no período.
Mas então, por que persistimos no erro?
O Major Blaz disse que, apesar de enxugarmos gelo, “é fundamental que tenhamos alguém para enxugar esse gelo, porque se não a sociedade vai morrer afogada”.
Isso é desesperador, porque esse “gelo” custou a vida de 12 crianças e, também, de 109 agentes públicos de segurança nos últimos cinco anos, como mostram dados do Instituto Fogo Cruzado. E isso só na região metropolitana Rio. Quem toma essas decisões não vai para o front. Faz conta com o sangue dos outros.
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O programa do governo federal não é um programa
Se você prestou atenção, no início do texto eu usei “programa” – entre aspas – para me referir ao Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas. Isso porque foi feito o anúncio de um programa agora, mas o documento completo, com as diretrizes, metas e planos só estará pronto em 90 dias. Um escárnio do ponto de vista da gestão pública e da transparência.
Planos já foram anunciados desta forma, no “campo das ideias”, pelo outrora ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, uma década atrás.
E isso persiste. Muito se fala, pouco se faz.
Em meio à crise desencadeada com a chacina que vitimou três médicos na Barra, no início de outubro, o secretário executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, esteve no Rio.
Cappelli veio não pela chacina, mas porque o Ministério Público Federal questionou as ações anunciadas pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública para o Rio, que incluíam “autorização de atuação da Força Nacional no Rio de Janeiro, com o objetivo de viabilizar o enfrentamento da criminalidade e melhorar indicadores de mortes violentas no estado”.
Isso não vai sair “do papel” agora – o que é bom.
O MPF enviou um documento a Cappelli pedindo informações sobre a medida e afirmando que soube do “plano” pela imprensa. Foi então estabelecido o prazo de 10 dias para que o ministério informe se as ações obedecerão preceitos da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal, estabelecidos na ADPF 635 – ação que, inclusive, estabeleceu que o governo do Rio apresente um plano de redução da letalidade policial, nunca cumprido.
Por último, a medida questiona se os órgãos federais “consentirão com o eventual descumprimento de pontos estabelecidos na referida ADPF”.
Estamos fodidos com a segurança pública no Brasil
Não há coordenação entre os poderes e os órgãos. É a velha segurança pública freestyle de sempre.
No Rio, Cappelli foi debater segurança com a Firjan, citando Winston Churchill, numa alusão à Segunda Guerra Mundial. Além do fato de que os problemas da segurança pública no Brasil clara, legal e juridicamente não têm relação com uma guerra, isso me lembrou outra medida velha e falaciosa: a intervenção militar na segurança do Rio, em 2018.
Naquela época, os peões do tabuleiro geopolítico do Rio estavam se movimentando. A milícia estava avançando sobre áreas do tráfico – mas os dados do Instituto de Segurança Pública não endossavam a “onda de violência” estranhamente anunciada por grandes jornais e que deram gás para que fosse autorizada a intervenção.
Também houve reuniões com a Firjan à época, e foi na casa Firjan que Braga Netto foi homenageado como “Personalidade do Ano de 2018 na Área da Segurança Pública” por “seu desempenho como Interventor Federal na Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro”.
Braga Netto, hoje investigado por suspeita de fraude nas licitações da intervenção, foi elogiado por Eduardo Eugenio Gouvêa Vieira, o presidente da Firjan que hoje posa para fotos com Cappelli, aos brados de “nós vamos ganhar, nós vamos ganhar”.
Nós quem? Ganhar o quê?
Na gestão da segurança pública, entre direita e essa esquerda, estamos todos fodidos.
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