Durante quase cinco décadas, John Edgar Hoover comandou o FBI com mãos de ferro. Ele conquistou a fama de poderoso chefão da entidade após passar anos atuando de forma clandestina para sabotar, intimidar e perseguir adversários políticos. Na fachada, o FBI era uma unidade policial que combatia a corrupção e protegia o país de terrorismo e da espionagem internacional. Na prática, esse aparato estatal era usado também para espionar ilegalmente esquerdistas e movimentos pelos direitos civis nos EUA.
Hoover era um homem extremamente conservador, mas que não via problemas em atropelar sistematicamente a Constituição americana para espionar quem ele considerava inimigo da nação, como Martin Luther King, por exemplo. Fazia escutas telefônicas clandestinas na casa de seus inimigos para descobrir seus segredos e depois chantageá-los. Era uma prática comum, que o tornou um dos homens mais poderosos do país. Após 48 anos, o modo de atuação de Hoover acabou moldando o FBI.
No Brasil, a Vaza Jato demonstrou de maneira clara que a operação Lava Jato, guardadas as devidas proporções, atuou de maneira parecida ao FBI de Hoover: fez grampos ilegais, vazou conversas de jornalistas críticos da operação, e perseguiu quem era visto como adversário político — tudo isso de maneira clandestina. Assim como a entidade americana, os procuradores da Lava Jato usaram os meios que dispunham do aparato estatal para implantar um estado paralelo a serviço de um projeto político. Uma simples força-tarefa acabou se tornando uma entidade poderosa e popular, com pretensões políticas e eleitorais.
Nesta semana, as semelhanças ficaram mais evidentes. O procurador-geral da República Augusto Aras, que começou a abrir a caixa-preta da Lava Jato, acusou a operação de investigar 38 mil brasileiros de maneira clandestina, sem formalização, sem critérios, sem registro e sem nenhum tipo de controle social. É mais uma prova — precisava de mais? — de que a Lava Jato se vê como uma entidade autônoma e independente do Ministério Público. Essa “caixa de segredos” da operação, como chamou o procurador, só é acessada por Dallagnol e sua trupe. Nem os seus superiores dentro do Ministério Público estavam cientes.
Dados de 38 mil brasileiros passaram pelas mãos de um grupo de procuradores responsáveis por uma operação em que vazamentos de documentos e dados sigilosos sempre foram uma regra. Essa é a sua essência moral. É um grupo que também se recusa a cumprir uma obrigação básica: prestar contas do seu trabalho para os seus superiores. Não é difícil imaginar o poder que essas informações dão para esse grupo de funcionários públicos e o perigo que isso representa para o país.
E quem foi um dos primeiros a sair em defesa da Lava Jato depois das falas de Aras? O senhor Sergio Moro, o ex-juiz que nunca fez parte da Lava Jato, mas virou a sua personificação depois que participou com ela de um conluio contra políticos. O mesmo conluio que abriu caminho para a vitória do candidato anti-política que transformaria o juiz lavajatista em ministro da Justiça. É natural que Sergio Moro saia em defesa da operação na qual reside todo o seu capital político, ainda mais no momento em que vem se movimentando para disputas eleitorais.
Como o bom politiqueiro que é desde os tribunais, o ex-ministro bolsonarista defendeu seus comparsas lavajatistas lançando mão de bravatas, sem demonstrar nenhum pudor em contrariar a realidade dos fatos.
Desconheço segredos ilícitos no âmbito da Lava Jato. Ao contrário, a Operação sempre foi transparente e teve suas decisões confirmadas pelos tribunais de segunda instância e também pelas Cortes superiores, como STJ e STF. https://t.co/HwSgRpxU4J
— Sergio Moro (@SF_Moro) July 29, 2020
O ex-juiz mente de maneira descarada quando diz que a Lava Jato sempre foi transparente. A transparência nunca foi prezada pela operação, muito pelo contrário. As publicações da Vaza Jato deixaram claro que a transparência é a kryptonita da Lava Jato.
Eu vou além: a operação só se consolidou como esse ente público superior, que peita a classe política, a PGR e o STF, porque atua nas sombras da lei. Foi justamente a falta de transparência que permitiu à operação consolidar seus métodos e se tornar, perante a opinião pública, um movimento anticorrupção acima de qualquer suspeita. Foi a clandestinidade que levou a força-tarefa a conquistar a aura de paladina da moral pública. As ilegalidades que permeavam todas aquelas ações, que eram sucesso de crítica e público, ficavam escondidas no escurinho do Telegram.
A série da Vaza Jato revelou como eram feitas as salsichas da operação, mas a disputa de narrativas políticas criadas em torno das reportagens ofuscou a verdade. Conseguiram transformar criminosos em heróis que tiveram sua privacidade violada por hackers. Não é simples mudar o imaginário popular de anos de mídia positiva que a grande imprensa ofereceu para a Lava Jato.
Depois da declaração de Augusto Aras, o presidente da Câmara Rodrigo Maia afirmou que a impressão que dá “é que (lavajatistas) não gostam de ser fiscalizados”. Bom, como vimos acima, a questão não é gostar ou não de ser fiscalizado. É que a Lava Jato simplesmente não existiria se tivesse sido devidamente fiscalizada. As ilegalidades cometidas graças à falta de transparência é que fizeram a Lava Jato ser o que é.
Diante desse histórico de abusos, ilegalidades e perseguição política, como ficar tranquilo sabendo que os dados de milhares de brasileiros estão nas mãos dessa gente inescrupulosa?
Em nota, a força-tarefa de Curitiba se defendeu: “É falsa a suposição de que 38 mil pessoas foram escolhidas pela força-tarefa para serem investigadas. Esse é o número de pessoas físicas e jurídicas mencionadas em Relatórios de Inteligência Financeira encaminhados pelo COAF“. Mas essa é a versão oficial.
A verdade está no escurinho do Telegram como revelou a Folha em reportagem em parceria com o Intercept. A nota não conta a maneira clandestina como a Lava Jato conseguiu esses dados do COAF. De maneira ilegal, a Lava Jato conseguiu acesso a vários dados de brasileiros na Receita Federal. A operação contava com um funcionário lá dentro que repassava informações de maneira informal, sorrateira, na surdina. É isso o que senhor chama de transparência, seu Sergio?
Em outro trecho, a nota afirma: “A independência funcional dos membros do Ministério Público é uma garantia de que o serviço prestado se guiará pelo interesse público, livre da interferência de interesses diversos por mais influentes que sejam”. Bom, dizer que a Lava Jato se guiou pelo interesse público é mais uma mentira.
A Vaza Jato comprovou de maneira inequívoca que o então juiz e os procuradores atuaram em diversos momentos por motivações políticas. Como esquecer de quando os lavajatistas se mobilizaram para barrar a entrevista que Lula daria para a Folha? Ou quando Moro pediu para a Lava Jato poupar FHC porque não queria melindrar um aliado político? Ou quando a Lava Jato usou o Vem Pra Rua e Instituto Mude como lobistas para pressionar STF e governo? Ou quando Moro, em meio ao julgamento de Lula, sugeriu à Lava Jato emitir uma nota contra a defesa, no que foi prontamente foi atendido.
Resumindo: em público, a Lava Jato posava de operação em defesa do interesse público. No escurinho do Telegram, atuava com uma agenda eleitoral debaixo do braço, protegia aliados e buscava impedir a volta do PT ao poder. Eles chegaram até combinar orações para que isso não acontecesse:
Carol PGR – 11:22:08 Deltannn, meu amigo
Carol PGR – 11:22:33 toda solidariedade do mundo à você nesse episódio da Coger, estamos num trem desgovernado e não sei o que nos espera
Carol PGR – 11:22:44 a única certeza é que estaremos juntos
Carol PGR – 11:24:06 ando muito preocupada com uma possivel volta do PT, mas tenho rezado muito para Deus iluminar nossa população para que um milagre nos salve
Deltan Dallagnol – 13:34:22 Valeu Carol!
13:34:27 Reza sim
13:34:32 Precisamos como país
Diante desse histórico de abusos, ilegalidades e perseguição política, como ficar tranquilo sabendo que os dados de milhares de brasileiros estão nas mãos dessa gente inescrupulosa?
A grande imprensa, que ainda em boa parte veste a camisa lavajatista, cumpre seu papel de assessoria e faz cara feia para Augusto Aras. Nós conhecemos os motivos pouco nobres pelos quais Aras foi escolhido por Bolsonaro. Mas isso não significa que ele necessariamente esteja errado, mesmo que esteja agindo por motivação política. Até aqui, está agindo corretamente, dentro da lei, tomando ações que lhe cabem como um superior dos procuradores da Lava Jato.
Praticamente todo o time de comentaristas da Globo tenta emplacar a ideia de que a Lava Jato cometeu pequenos erros e que suas conquistas no campo do combate à corrupção são muito maiores. Balela. Quem combate a corrupção de um grupo político e protege a de outro não está combatendo a corrupção. Está fazendo política e corrompendo as leis. Como bem disse a procuradora lavajatista Monique Cheker, as ilegalidades de Moro — e eu acrescento as da força-tarefa também — só eram toleradas pelos resultados alcançados.
As relações da Lava Jato com o FBI, feitas também em boa parte de maneira clandestina, vão além da esfera operacional. É uma relação afetiva com os métodos clandestinos sacramentados por Hoover. A inspiração é clara. E a coisa aqui tem potencial para virar coisa muito pior. A Lava Jato hoje tem pretensões eleitorais e uma sede de poder insaciável.
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