João Filho

Polarização do absurdo após chacina interdita debate sobre segurança no Brasil

Repudiar a operação sangrenta no RJ deveria ser unânime em uma sociedade civilizada. Mas, no Brasil negacionista de 2025, quem não aplaude a matança é porque defende bandido.

Operação que o governador Cláudio Castro considerou um "sucesso" matou mais de 120 pessoas no Rio de Janeiro (Foto: Fabricio Sousa/Agencia Enquadrar/Folhapress)

O repúdio à chacina protagonizada pela polícia no Rio de Janeiro deveria ser unânime em uma sociedade civilizada, mas é considerada sinônimo de defesa da bandidagem para a maioria da população. O debate sobre segurança pública está interditado por essa maldição: ou aplaude-se a matança ou se está passando a mão na cabeça de criminosos. 

Trata-se de uma dicotomia que não deveria existir. A operação liderada pelo governador Cláudio Castro, do PL, foi um fracasso sob qualquer ponto de vista. Eis os fatos: o chefão do Comando Vermelho, CV, fugiu; as câmeras corporais não filmaram a ação; os cadáveres — alguns com marcas de facada nas costas e tiro na nuca — foram largados na mata e resgatados pela população, prejudicando a perícia. 

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Além de não atingir o principal objetivo, que era prender o líder da facção, os indícios apontam para uma série de ilegalidades cometidas pelos policiais. Não é preciso sentir compaixão por bandido para achar que o policial só deve atirar em legítima defesa ou para defender alguém. Basta ser um defensor do cumprimento das leis. 

O lema “bandido bom é bandido morto” virou senso comum no Brasil, mas trata-se de uma exaltação do crime. É a defesa de que o estado deve agir como uma facção criminosa para acabar com a criminalidade. Foi essa cultura que criou as condições necessárias para o surgimento das milícias — as facções criminosas formadas por policiais e ex-policiais acostumados a agir ao arrepio da lei. 

As milícias, que foram supostamente criadas para combater o crime, hoje ocupam bairros no Rio de Janeiro, vendem drogas e extorquem moradores. Criaram um modelo de negócios que hoje é referência para outras facções criminosas. Tudo isso aconteceu sob os aplausos de extremistas de direita como os Bolsonaro, que, além de prestarem homenagens oficiais a esses criminosos, mantiveram amizade e negócios com eles. 

Operação que o governador Cláudio Castro considerou um "sucesso" matou mais de 120 pessoas no Rio de Janeiro (Foto: Fabricio Sousa/Agencia Enquadrar/Folhapress)
Operação que o governador Cláudio Castro considerou um “sucesso” matou mais de 120 pessoas no Rio de Janeiro (Foto: Fabricio Sousa/Agencia Enquadrar/Folhapress)

Admitamos que todos os assassinatos da operação foram executados dentro da lei. O que temos agora? O Complexo da Penha e do Alemão livres do Comando Vermelho? O Comando Vermelho sofreu um duro revés? Os moradores podem voltar a respirar aliviados em um território livre da bandidagem? É claro que não. 

Passados nove dias da operação, os criminosos já voltaram a atuar na mesma região em que aconteceu o massacre. A carnificina serviu apenas para aplacar o fetiche do “bandido bom é bandido morto” e tirar o bolsonarismo das cordas do debate público

A população continuará sob o domínio do Comando Vermelho, que substituirá facilmente os soldados e as armas perdidas na operação. O Doca continua liderando a facção. A PM também reporá os seus soldados e seguirá o baile. Eis o sucesso do massacre de Cláudio Castro. Mais de 120 cadáveres para fazer com que tudo continue como está. 

Seguimos enxugando gelo na segurança pública. As regiões controladas pelo CV no RJ representam um grão de areia na estrutura da facção. O lucro do grupo não depende dos soldadinhos que andam no morro portando fuzis. Esses são facilmente descartáveis e não representam dano considerável em uma estrutura complexa e nacionalizada. O CV segue forte, e o seu fluxo de negócios está preservado. 

As incursões violentas da Polícia Militar ocorrem nas áreas comandadas pelo crime há quase cinco décadas. Esse período se confunde com o crescimento brutal do CV, das milícias e de outras facções. As ações criminosas do poder público seguem alimentando o crime organizado e tornando o ciclo de violência interminável. 

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Já está mais do que provado que não existe relação entre o aumento da letalidade policial e a diminuição da criminalidade. Insistir na fórmula da matança é continuar dando murro em ponta de faca. 

Absolutamente todas as pesquisas em segurança pública apontam que ela não é apenas inócua para combater a criminalidade. Muito pelo contrário, essa fórmula é a principal responsável por fortalecer o crime organizado. Mata-se 100, coloca-se outros 100 no lugar e a roda do crime continua girando. 

Enquanto isso, as grandes cabeças do crime organizado continuam administrando o fluxo financeiro dos delitos, comprando novos armamentos e estabelecendo suas conexões políticas. 

As operações de inteligência são as mais eficazes, pois fazem os tubarões do crime organizado perderem muito dinheiro. A Operação Carbono Oculto é um exemplo de como é possível atacar o coração do crime organizado sem causar uma cena de guerra. Um esquema bilionário de lavagem de dinheiro do PCC foi descoberto, causando enorme prejuízo à facção. 

Esse é o único caminho para impedir o avanço do crime organizado. Isso deveria ser ponto pacífico no debate público, mas vivemos a era do triunfo do negacionismo. 

Não me estranha o fato de que oito entre dez moradores de favelas sejam a favor das operações policiais como a que resultou no massacre da Penha. É uma resposta emocional, traumatizada, de quem vive há décadas sob o domínio do crime organizado e vê na violência o único caminho para se combater a violência. 

O que a população quer, de fato, é o fim do crime organizado de uma vez por todas. Quando o morador de favela liga a TV ou usa o celular, ele se depara com um debate público em que o negacionismo foi completamente legitimado. 

‘a grande polarização que domina o país É democracia x barbárie’.

Nos programas policiais, por exemplo, esse debate nem existe. Qualquer um que se oponha ao discurso fácil do “bandido bom é bandido morto” é implacavelmente ridicularizado pelos Datenas da vida. Até em programas jornalísticos que fogem do sensacionalismo, há articulistas que apoiam abertamente o massacre de Castro. 

Joel Pinheiro disse na GloboNews que, a depender de quem morreu, a operação pode ter sido um sucesso. “Quantos de fato são bandidos em confronto com a polícia e quantos são inocentes, pegos como vítimas colaterais? Isso vai nos ajudar a dizer o quão bem-sucedido, ou não, foi essa operação”, declarou Pinheiro, como se a produção de cadáveres pudesse ser positiva para a segurança pública. 

E assim, de massacre em massacre, vamos mantendo o círculo vicioso que retroalimenta o crime e descarta as únicas vias para combatê-lo. A cena de corpos mortos enfileirados deveria chocar a todos, não importam as circunstâncias, mas é tratada como troféu por políticos e analistas de direita. 

Só há dois vencedores quando o negacionismo na segurança pública triunfa: o crime organizado e os políticos de extrema direita — muitos deles ligados ao crime organizado. Mais uma vez, revela-se qual é a grande polarização que domina o país: democracia x barbárie.

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