Para a surpresa de ninguém, a Comissão de Ética da Câmara, de maioria bolsonarista, arquivou o pedido de cassação do mandato de Eduardo Bolsonaro, do PL de São Paulo, pela sua atuação nos Estados Unidos contra as instituições brasileiras.
Para o relator do caso e amigo de Eduardo, o delegado Marcelo Freitas, do União Brasil de Minas Gerais, não houve quebra de decoro pois as ações de Eduardo estão dentro do exercício da liberdade de expressão parlamentar. Essa imensa cara de pau também foi compartilhada pelo líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante, que deixou claro que irá “proteger o mandato de Eduardo Bolsonaro até o fim”.
O filho do ex-presidente chegou a confessar que abandonou o mandato e foi para os EUA com um único objetivo: conseguir apoio de Donald Trump para pressionar as instituições brasileiras e livrar o papai Jair da cadeia. “Eu abri mão do meu mandato. Estou aqui nos Estados Unidos exclusivamente para essa pauta”, admitiu Eduardo, em agosto.
Mesmo diante de tantas provas e até de uma confissão, a Comissão de Ética se fez de sonsa mais uma vez. Em menos de 24 horas, a Câmara livrou a cara de Eduardo, e o senador Flávio Bolsonaro, do PL do Rio de Janeiro, cometeu mais um crime de lesa-pátria, honrando a tradição da família.
O secretário de Guerra dos EUA, Peter Hegseth, anunciou mais um ataque ilegal do exército estadunidense a um barco que supostamente transportava drogas no oceano pacífico. Flávio se emocionou com tamanha demonstração de poder e correu balançando o rabinho para o Tio Sam.

Em resposta ao secretário americano no X, o senador escreveu, em inglês: “Que inveja! Ouvi dizer que há barcos como este aqui no Rio de Janeiro, na Baía de Guanabara, inundando o Brasil com drogas. Você não gostaria de passar alguns meses aqui nos ajudando a combater essas organizações terroristas?”.
Lembremos que Flávio é considerado o melhorzinho entre os Bolsonaros. Ele seria o mais pragmático, o mais moderado, o mais equilibrado entre eles. A fala é repugnante e mostra um grau de vassalagem que talvez não haja em nenhuma outra extrema direita do mundo. O patriotismo dos ultranacionalistas brasileiros é bastante peculiar, como se sabe.
É preciso tratar a fala com a gravidade que ela merece. Desde que o bolsonarismo ascendeu na política brasileira, o debate político nacional foi soterrado com uma quantidade tão grande de absurdos que acabamos por ficar anestesiados. Não é possível que mais um ataque contra a soberania nacional fique impune mais uma vez.
Sob pretexto de combater o tráfico de drogas no estado pelo qual foi eleito, um senador da República pede publicamente a uma autoridade dos EUA que faça uma intervenção militar para matar traficantes. Esse homem preocupado com a segurança pública no Rio de Janeiro é o mesmo que, até sete anos atrás, empregava em seu gabinete a mãe e a esposa do chefão do Escritório do Crime — uma milícia carioca.
Flávio pede ajuda estrangeira como se não fosse do grupo político que, há anos, é responsável pela segurança pública do Rio de Janeiro. Tanto o atual governador, Cláudio Castro, quanto o anterior, Wilson Witzel, são crias legítimas do bolsonarismo.
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O senador está com inveja do quê, exatamente? Das execuções sumárias feitas de forma extrajudicial, sem apresentar provas de que os assassinados eram traficantes? Ora, isso a polícia do Rio de Janeiro já faz com excelência há muito tempo. A milícia também, como muito bem sabe o senador.
Nenhum país pode usar força letal em águas internacionais sem base legal adequada. Mesmo que todos os mortos sejam comprovadamente traficantes, os EUA cometem um crime ao violar o direito internacional do mar. Já foram mais de 30 mortos em ações do exército estadunidense e, em nenhuma delas, ficou comprovado que eram traficantes.
Para se ter ideia, em um dos ataques na costa da Venezuela, um equatoriano sobreviveu, foi repatriado, mas liberado em seguida no Equador por falta de provas. Os que morreram foram tratados como “narcoterroristas” sem direito à defesa.
É fácil explicar a inveja do senador com a desenvoltura que a “polícia do mundo” mata – um mundo em que suspeitos podem ser fuzilados sem leis e instituições democráticas para encher o saco é o mundo dos sonhos dos bolsonaristas.
A autocracia que Trump está construindo para si é a mesma que Bolsonaro tentou construir no Brasil. Perguntado se pediria aprovação do congresso dos EUA para declarar guerra contra os cartéis do narcotráfico, Trump nem tentou disfarçar o seu profundo desprezo pelos ritos democráticos: “Não acho que vamos pedir uma declaração de guerra. Acho que vamos simplesmente matar as pessoas que trazem drogas para o nosso país. Certo? Vamos matá-las. Elas vão ficar, tipo, mortas”.
‘Bolsonaro está preso e continuará por muitos anos, mas seus filhos seguem soltos e munidos de imunidade parlamentar para atormentar a democracia’.
No Brasil, prendemos o ex-presidente que conspirou contra a democracia. Nos EUA, o golpista foi absolvido e eleito em seguida. Mas ainda há muito o que ser feito por aqui. Os golpistas e traidores da nação ainda conspiram e contam com algum apoio popular — ainda que cada vez menos.
Por isso, as ameaças de guerra dos filhos de Bolsonaro não podem passar impunes. Não é razoável que falas criminosas como as de Flávio e Eduardo continuem sendo encaradas como meros arroubos de políticos falastrões. Não se tratam de bravatas, mas de gravíssimas ameaças contra a ordem democrática e a soberania do país.
E não esqueçamos dos currículos dos portadores dessas ameaças. Os Bolsonaros são uma família de golpistas que cresceu na política coligada com o crime organizado. Bolsonaro está preso e continuará por muitos anos, mas seus filhos seguem soltos e munidos de imunidade parlamentar para atormentar a democracia.
Por sorte, os interesses econômicos dos EUA fizeram Trump pisar fofo com o Brasil. Não fosse isso, o sonho da família Bolsonaro poderia estar muito perto de acontecer. Se os ataques na Baía de Guanabara acontecessem, Flávio viajaria para o Texas para, junto de Eduardo, assistir de longe cidadãos brasileiros sendo fuzilados sem direito à defesa.
Ou o país pune esses apátridas com rigor, ou continuaremos a vê-los ameaçando a nossa soberania e enfiando a faca no pescoço da democracia.
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