Fui até Diadema ouvir os moradores atacados pela extrema direita

Novo Habitat, Velhos Fantasmas

Fui até Diadema ouvir os moradores atacados pela extrema direita

Cartas Marcadas

Parte 16

Cartas Marcadas é uma newsletter semanal que investiga a ascensão da extrema direita, as ameaças à democracia e os bastidores do poder em Brasília.


Na última sexta-feira, 2, publicamos um teaser da reportagem que você vai ler hoje em Cartas Marcadas. Em menos de 48 horas, o vídeo ultrapassou 5 milhões de visualizações — uma audiência que cresceu de forma explosiva, turbinada por perfis da extrema direita sedentos por conseguir atenção às custas  do ódio.

Isso aconteceu porque fui o primeiro repórter a ir presencialmente a uma rua periférica que foi transformada em metáfora moral e usada como arma política por políticos e influenciadores nas semanas anteriores.

Esta reportagem nasceu para contar o outro lado da história. Fui ouvir as pessoas que a internet decidiu odiar. Descobri histórias de trabalho, medo e esperança. Mas, sobretudo, encontrei um espelho do país: um lugar abandonado pelo estado, rejeitado pelo mercado e desprezado pela sociedade.

O resultado é este retrato do Novo Habitat — um nome que prometia recomeço, mas acabou reproduzindo velhos problemas. Vamos aos fatos.


Eram oito horas da manhã quando cheguei à Rua Novo Habitat, em Diadema, município na Grande São Paulo. Nas duas semanas anteriores, fotos comparando as casas em 2019 e 2025 tinham viralizado como exemplo de “favelização”.

O deputado federal Nikolas Ferreira, do PL de Minas Gerais, disse que aquilo expunha “o caráter, a cultura e o espírito” dos moradores, e houve até quem escrevesse que “favelados assim tinham que morrer” em um comentário no post dele. Nikolas não foi o único: outros deputados, jornalistas e movimentos de extrema direita, como o MBL, também se mostraram obcecados com o caso.

Por causa disso, estava apreensivo para ver como seria recebido por ali. Andei alguns metros pela rua para conhecer o local. Até que vi um homem olhando para mim da janela de um dos sobrados. Perguntei se ele poderia descer para falar comigo. Era George Araújo, 49 anos, morador do lugar desde 1997.

Começamos a conversar. Logo percebi o impacto daquela enxurrada de comentários na vida daquelas pessoas. Araújo não hesitou quando questionei se ele toparia ser entrevistado. “Estamos engasgados com isso”, disse, concordando que eu gravasse.

George Araújo é um dos moradores do conjunto habitacional que ficou famoso nas redes sociais | Foto: Caio Castor/Intercept Brasil

‘Eu matava rato aqui’

Araújo chegou à Rua Novo Habitat há quase trinta anos – informação que já derruba uma das mentiras que circularam nas redes sociais: a de que os beneficiados pelos imóveis entregues pelo programa habitacional da Prefeitura de Diadema venderam a posse das residências.

Na maior parte dessas três décadas, Araújo viveu em um barraco de madeira. “Os barracos eram no meio da rua. Nessa época, ninguém comentava, estava preocupado com a calçada ou veio aqui ajudar”, disse. “Eu matava rato aqui. A água invadia. Depois é que vieram essas casas”.

As casas coloridas que viralizaram nas redes foram inauguradas em 2018. O projeto das moradias foi concebido pela arquiteta Fabrícia Zulin, prevendo sobrados de 48,5 metros quadrados, em lotes de cinco por cinco metros, cercados por uma área industrial e um pedaço de mata fechada.

Na época, as casas foram apresentadas como um modelo de habitação popular inovador e chegaram a ser citadas como exemplo pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo. Elas foram entregues pelo Fundo Municipal de Habitação na gestão do então prefeito Lauro Michels, do PV.

A proposta surgiu após famílias como as de Araújo se recusarem a trocar o local por unidades de conjuntos habitacionais em outras regiões da cidade. Para evitar o despejo forçado, a prefeitura optou por construir as chamadas “casas cubo”, com dois cômodos em cima e dois embaixo.

“Já são sete anos desde que estamos fazendo essas mudanças, e agora é que vieram esses comentários. Não dá pra entender nada”, disse Araújo. Ele afirmou que conversou com representantes da prefeitura, e que checou a documentação antes de fazer as mudanças nos imóveis.

“Os papéis falavam de não mexer na estrutura. Crescemos pra frente”, explicou, enquanto me convidava para entrar na garagem de sua casa. Foi ali que comecei a questionar as motivações das mudanças. “O carro dormia na rua e amanhecia riscado”, explicou, sobre ter construído sobre o recuo de 5,5 metros que separava a porta de sua casa da rua. Araújo, que é pintor, também usa o espaço agora coberto para trabalhar em dias de chuva.

Ele repetiu que as ampliações nasceram da necessidade, não por capricho: “Tem casa aqui que a família era maior. Era um sofrimento pra conviver. Eram dois cômodos para famílias com dois, três filhos”.

Durante a conversa, percebi a insistência do morador em responder às críticas sobre a aparência de sua casa. Por isso, fez questão de me levar ao interior da residência.

“Vem ver o acabamento que fizemos aqui dentro. É de porcelanato. Nós estamos fazendo o melhor que podemos. Eu pretendo terminar, deixar tudo bonitinho. Aos poucos, nós vamos chegar lá. Vou realizar esse sonho”, repetiu.

A mágoa com o linchamento digital era evidente. “Pior são os políticos, que deveriam fazer alguma coisa”, disse, quando comentei sobre o tweet feito por Nikolas Ferreira. “Na eleição, querem vir aqui atrás de voto, fazer reuniãozinha. Pra mim, é tudo zé povinho”, desabafou.

‘Posso falar também?’

Enquanto conversávamos, Thaís Lima, 27 anos, apareceu com o filho no colo. Ela passou a observar a entrevista até que perguntou: “Posso falar também?”. Concordei, dizendo que estava ali justamente para ouvir os moradores. 

“Desde que eu me conheço por gente, eu moro aqui”, contou, também relembrando o tempo em que habitava em um barraco de madeira. “Entregaram uma casa para duas famílias: a minha e a do meu tio. Eu já tinha dois filhos. A casa era de dois quartos. Como que vive eu, meus filhos, meu marido, meu tio e os filhos dele? Não tem como. Eu ampliei por isso”, disse.

Thaís também lembrou do estado do imóvel entregue pela prefeitura: “Quando entregaram, foi no grosso: só tinha piso no banheiro e na lavanderia. Quando chovia, a calha enchia. As paredes já estavam corroídas. A água do banheiro não ia pro ralo, ela passava. Por fora são mil maravilhas. Quando entrava, descobria o que era”.

Thaís vive com quatro filhos e o marido na parte superior de um dos sobrados | Foto: Caio Castor/Intercept Brasil

Enquanto conversava com Thaís, seu tio, Heraldo, que é mestre de obras, apareceu. Ele reforçou as críticas ao projeto original do imóvel: “A casa está toda rachando. E uma calçada é pra ter dois metros, não seis metros como tinha aqui”, reclamou.

Menos de dois anos após a entrega das casas, veio a pandemia. Thaís, o marido e as crianças ficaram confinados no espaço apertado. “Era enlouquecedor”, ela me disse, enquanto apontava para o quarto que virou cozinha. “A gente pensava: ou aumenta, ou morre sufocado.”

Hoje com quatro filhos, ela também se mostrou afetada pelas críticas nas redes sociais. “O povo da internet me chamou de favelada, sem educação, que eu não estudo, que eu tenho que passar educação pros meus filhos. A minha moradia não significa que não tenho educação.”

‘Vão tirar a gente daqui?’

Conversei com outros moradores, que pediram para que eu não gravasse entrevista com medo da exposição e de eventuais represálias. Segurança e falta de privacidade foram outros motivos apontados para a ampliação.

Eles responderam a críticas sobre a “tomada das calçadas” dizendo que o trecho nunca teve passagem livre: nem no tempo dos barracos, nem nos imóveis entregues pela prefeitura, que previam os carros estacionados onde passariam os pedestres. “E tem calçada do outro lado. É que na foto está circulando por aí, não aparece”, disse um dos moradores.

Nessa conversa, ouvi outras motivações para as ampliações das casas. Entre elas, a ausência de privacidade, já que as portas e janelas davam direto na rua, bem como o barulho constante. “Minha filha é autista, precisa de espaços mais protegidos”, disse uma gestante.

O temor, agora, é de que a repercussão do caso faça com que eles não possam mais morar ali. “Eu estou desesperado com isso. Todo mundo aqui é honesto, trabalhador e não tem para onde ir. Vão tirar a gente daqui?”, me perguntou um homem.

‘Ninguém tem menos caráter por morar ali’

A verdade é que o caso da Rua Novo Habitat, em Diadema, não expôs apenas a violência nas redes sociais. Revelou também os limites de uma política habitacional que, décadas depois de sucessivos programas públicos, ainda não consegue garantir moradia digna e acompanhamento adequado às famílias de baixa renda.

Para entender o problema mais profundamente, resolvi ir atrás do responsável pela entrega dos imóveis em 2018, o ex-prefeito Lauro Michels. Ele me atendeu e relembrou que o projeto nasceu de uma tentativa de evitar o despejo de famílias que viviam em barracos “insalubres e desumanos”.

Perguntei a ele como reagiu às ofensas feitas por figuras da extrema direita. “Ninguém tem mais ou menos caráter por morar aqui ou ali”, afirmou Michels. Para ele, a discussão nas redes se tornou “cansativa” e marcada por generalizações políticas, enquanto as verdadeiras questões — moradia, segurança e acompanhamento — foram deixadas de lado.

O ex-prefeito afirma que as moradias atendiam às necessidades das famílias naquele momento. “No verão, os barracos eram um forno microondas; no inverno, um freezer. O projeto buscou garantir o mínimo de dignidade”, disse.

Sobre as ampliações feitas depois da entrega, o ex-prefeito reconhece que “cada um tem sua necessidade”, mas defende que cabe ao poder público fiscalizar e orientar. “Durante a minha gestão, as casas estavam em ordem. As ampliações respeitavam os recuos e as calçadas”, afirmou.

‘Quem desenha as nossas cidades?’

Conversei também com a doutoranda em arquitetura e urbanismo Ester Carro, que preside o Instituto Fazendinhando e pesquisa moradia digna nas periferias. Segundo ela, o espanto gerado pelas imagens do Novo Habitat revela mais sobre o olhar de quem critica do que sobre os moradores. “É como se a periferia tivesse aparecido agora”, diz.

Ela lembra que a estética das favelas — marcada por puxadinhos, cores e improvisos — é frequentemente lida como sinal de desordem, quando, na verdade, expressa autonomia e criatividade. “O que muitos chamam de feio é, na verdade, uma arquitetura viva, diversa, feita por quem mora e conhece o território.”

Carro aponta que o distanciamento entre arquitetos e moradores é uma das causas da descaracterização dos conjuntos habitacionais. “Quem desenha as nossas cidades? Há consulta aos moradores para entender o que eles querem ou precisam?”, questiona. “A arquitetura no Brasil ainda é elitista. Atende ao gosto da classe média alta e ignora as necessidades reais das famílias populares.”

A pesquisadora, que atualmente cursa o doutorado no Mackenzie e na universidade holandesa TU Delft, destaca ainda que o problema vai além das casas. “No Brasil, não existe uma política pública de acompanhamento pós-ocupação”, explica.

Para Carro, o caso de Diadema é um retrato dessa ausência de políticas integradas. “Isso não é exceção. Acontece em praticamente todos os conjuntos que não têm zeladoria ou administração interna”, afirma. Ela defende que o poder público crie conselhos de moradores e processos coletivos de decisão. “Quando há diálogo e gestão, o espaço é cuidado. Quando não há, cada um tenta resolver do seu jeito.”

‘A política habitacional no Brasil fracassou’

Uma das maiores referências em urbanismo no país, a professora Raquel Rolnik, da USP, também vê o episódio como sintoma de um problema estrutural. “A história da política habitacional no Brasil é uma história de fracasso”, diz. “A maior parte das moradias foi construída por autoconstrução — pessoas explorando a si mesmas, sem recursos e sem apoio técnico.”

Rolnik critica o fato de a política de moradia ser desenhada a partir dos interesses do mercado e não das pessoas. “Ela é pensada entre a indústria da construção, a imobiliária e a financeira — e muito pouco com base nas necessidades reais da população.”

Para Rolnik, há ainda uma contradição no discurso moralista de políticos que atacaram os moradores de Diadema. “É curioso que alguém como Nikolas Ferreira, defensor da liberdade de construir e do empreendedorismo popular, condene essas famílias. O que elas fizeram é justamente o que ele exalta: criaram soluções por conta própria, sem apoio do estado.”

‘Senso comum virou arma de guerra’

Foi justamente essa contradição — entre o discurso moralista e a realidade concreta — que me levou a procurar a professora Letícia Cesarino, da Universidade Federal de Santa Catarina, uma das principais pesquisadoras do país sobre extrema direita e linguagem digital. Quis entender por que a história de uma rua periférica virou metáfora moral nas redes e combustível para o discurso de ódio.

Segundo ela, o caso de Diadema mobiliza códigos profundos do imaginário político brasileiro. “A extrema direita transformou o senso comum em arma de guerra”, afirma. “Eles operam com uma gramática de oposições — feio e bonito, ordem e desordem, perigo e segurança — que ativa reações viscerais nas pessoas.”

Para Cesarino, esse tipo de discurso funciona porque apela à emoção e demarca fronteiras entre grupos. “Quando reiterado, ele leva à desumanização. O outro deixa de ser visto como humano.”

Ela explica que o ataque aos moradores de Diadema ecoa a velha narrativa segundo a qual o “cidadão de bem” seria parasitado pelos pobres. “A ideia é que quem trabalha e produz está sendo explorado por quem não quer trabalhar — os favelados, os assistidos, os que bagunçam o que recebem. É um subtexto de parasitismo social que pega muito porque está no senso comum.”

Para ela, essa moralização das causas sociais é o que torna o discurso perigoso. “Eles não enxergam fatores estruturais ou econômicos. Atribuem tudo ao caráter, ao espírito, à moral das pessoas”, diz. “E quando se naturaliza que alguém é ‘irrecuperável’, abre-se a porta para justificar sua exclusão — ou até sua eliminação simbólica.”

Entre as falhas da política habitacional e a ignorância de quem condena, as casas do Novo Habitat se tornaram símbolo de uma velha história: a distância entre o Brasil idealizado e o Brasil que existe — aquele que, sem escolha, precisa continuar construindo sozinho.

LEIA OUTRAS EDIÇÕES DE CARTAS MARCADAS:

2026 já começou, e as elites querem o caos.

A responsabilização dos golpistas aqui no Brasil foi elogiada no mundo todo como exemplo de defesa à Democracia.

Enquanto isso, a grande mídia bancada pelos mesmos financiadores do golpe tenta espalhar o caos e vender a pauta da anistia, juntamente com Tarcísio, Nikolas Ferreira, Hugo Motta e os engravatados da Faria Lima.

Aqui no Intercept, seguimos expondo os acordos ocultos do Congresso, as articulações dos aliados da família Bolsonaro com os EUA e o envolvimento das big techs nos ataques de Trump ao Brasil.

Os bastidores mostram: as próximas eleições prometem se tornar um novo ensaio golpista — investigar é a única opção!

Só conseguimos bater de frente com essa turma graças aos nossos membros, pessoas que doam em média R$ 35 todos os meses e fazem nosso jornalismo acontecer. Você será uma delas?

Torne-se um doador do Intercept Brasil hoje mesmo e faça parte de uma comunidade que não só informa, mas transforma.

DOE AGORA

Inscreva-se na newsletter para continuar lendo. É grátis!

Este não é um acesso pago e a adesão é gratuita

Já se inscreveu? Confirme seu endereço de e-mail para continuar lendo

Você possui 1 artigo para ler sem se cadastrar