Enquanto a anistia ao ex-presidente Jair Bolsonaro parece cada vez mais distante, um perdão aos “peixes pequenos” do 8 de Janeiro ganhou força nas últimas semanas. Não apenas entre bolsonaristas ou políticos que sempre relativizaram os ataques à democracia, mas também em vozes com histórico de combater a Ditadura Militar.
Na semana passada, o premiado jornalista Elio Gaspari escreveu que “votar a anistia é o melhor remédio”. Já Fernando Gabeira, em entrevista ao canal MyNews, disse que as penas estavam “um pouco acima” do razoável e defendeu mais “generosidade dos vencedores”.
O argumento poderia até fazer sentido. Mas tem um problema: não existem “peixes pequenos” no 8 de Janeiro. Quem foi a Brasília quase dois meses depois da eleição e mais de uma semana após a posse do presidente Lula não estava desavisado. Todos que restavam ali sabiam do teor golpista do movimento.
É bom lembrar que, àquela altura, os acampamentos nos quartéis já haviam se revelado incubadoras de atos terroristas, como o protesto que culminou na invasão da sede da Polícia Federal e a tentativa de explodir uma bomba no aeroporto de Brasília. Não havia inocência possível.
E mais: os números mostram que o STF agiu com contenção, e não com exagero. Ao todo, 1.190 pessoas foram responsabilizadas. Destas, apenas 279 foram condenadas por crimes graves, como golpe de estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito — ou seja, crimes em que há previsão de cumprimento inicial da pena em regime fechado. E mesmo entre os mais graves, mais de 100 seguem foragidos, muitos no exterior. Hoje, portanto, menos de 150 pessoas estão presas.
Na edição desta semana de Cartas Marcadas, mostramos como campanhas de desinformação tentam inverter essa realidade. O caso mais recente é o de Jucilene Costa do Nascimento, que bolsonaristas tentam transformar em uma “presa política” torturada.
Mas os documentos contam outra história: ela foi uma militante golpista ativa, envolvida diretamente no ataque, e não sofreu tortura alguma. O fato é que, ao contrário do que sugerem Gaspari, Gabeira e o bolsonarismo, não há nem exagero, nem arbitrariedade — mas sim uma resposta institucional ainda aquém da gravidade do crime cometido.
Falsa tortura ganhou redes sociais
O debate sobre suposto exagero nas condenações do 8 de Janeiro se alimenta de narrativas falsas. Uma das mais recentes foi construída em torno de Jucilene Costa do Nascimento, 62 anos, condenada a 14 anos de prisão por participação direta nos ataques golpistas em Brasília.
Em 7 de agosto, durante sessão da Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, o advogado de Jucilene, Hélio Ortiz Júnior, ergueu um cartaz com o rosto de sua cliente e a palavra “TORTURA” em letras garrafais. Outros advogados de réus do 8 de Janeiro amplificaram a acusação, e em pouco tempo ela se espalhou em redes bolsonaristas.
A versão de que Jucilene estaria sendo submetida a tortura foi reproduzida nas redes sociais por diversos políticos do PL, como o deputado federal capixaba Messias Donato, a vereadora de Florianópolis Manu Vieira e o deputado estadual catarinense Alex Brasil. A falsa narrativa dizia que ela havia sido agredida por ser bolsonarista.
Questionei Donato por e-mail e ele atribuiu a informação a uma nota oficial dos advogados de Jucilene. O deputado argumentou que seu mandato “sempre se pautou pelo zelo com as informações divulgadas”, e enviou a íntegra do comunicado. O texto é assinado por Cunha, Júnior e outras três advogadas e diz, sem apresentar prova, que a cliente “sofre tortura e corre grave risco de morte em presídio de Florianópolis”.
A advogada Taniéli Telles, que também defende réus do 8 de Janeiro e é signatária do comunicado, chegou a maquiar o próprio rosto simulando um hematoma para denunciar a suposta tortura a qual Jucilene estaria sendo submetida. Outros militantes bolsonaristas adotaram o mesmo expediente: pintaram o rosto para que pudessem vocalizar o sofrimento da bolsonarista encarcerada.
Mas os documentos do caso mostram uma história completamente diferente. Em ofício obtido por Cartas Marcadas, a direção do Presídio Feminino Regional de Florianópolis relatou, em detalhes, que Jucilene foi agredida em 4 de agosto por outra interna após um desentendimento sem nenhum caráter político. O fato não foi sequer contestado pela defesa ou pela própria agredida, que dispensou, inclusive, até o registro de um boletim de ocorrência.
De acordo com os autos, outra detenta desferiu um soco no rosto de Jucilene ao acusá-la de ter “entregado” conversas que ela teve com presas de outras celas às agentes penitenciárias. A intervenção foi imediata: a agressora foi transferida de cela, enquanto Jucilene recebeu atendimento médico, psicológico, exame de corpo de delito e acompanhamento de saúde.
O laudo confirmou um hematoma, sem risco de vida ou sequelas. E mais: em declaração de próprio punho, a própria Jucilene descreveu o episódio como “agressivo, mas pontual” e, minimizando a tese de tortura, disse que se sentia segura após o episódio devido à ação firme da chefe de segurança do presídio.
Ainda assim, a desinformação atravessou o bolsonarismo digital e chegou à mídia convencional. O portal Metrópoles publicou, em 14 de agosto, uma reportagem intitulada “Condenada nos atos de 8/1 leva surra na cadeia ‘por ser bolsonarista’”, reproduzindo no título a versão fabricada nas redes. Nem os relatórios do presídio, nem as manifestações da defesa, nem os registros do MPF sustentam essa hipótese.
A farsa esconde quem foi Jucilene no 8 de Janeiro. Um laudo da Polícia Federal mostrou vídeos feitos por ela no celular no próprio dia do ataque. Nas gravações, afirma: “a luta não foi em vão”, “STF ocupado”, “nós tomamos os Três Poderes”, “quem achou que estávamos brincando mais de 70 dias, se enganou”.
Pior: as declarações gravadas não eram simples bravatas. O DNA de Jucilene foi encontrado pela Polícia Federal em materiais depredados dentro do Palácio do Planalto – onde ela diz ter ido apenas se proteger –, e ela admitiu ter passado mais de 45 dias acampada em frente ao QG do Exército de Brasília. Longe de ser uma manifestante ingênua, a Justiça comprovou que Jucilene foi uma militante ativa na tentativa de golpe.
Entrei em contato com a equipe de defesa de Jucilene para pedir esclarecimentos. Não houve resposta.
Mas, antes de me despedir, quero deixar claro: qualquer agressão dentro do sistema prisional é condenável e merece apuração rigorosa, independentemente de quem seja a vítima. Isso, porém, não pode ser álibi com narrativas falsas que tentam transformar uma militante golpista em vítima de perseguição política.
Atualização (20 de agosto às 11h59): A defesa de Jucilene , por meio do advogado Luiz Felipe Cunha, publicou comentário no Instagram sustentando que, em 8 de Janeiro, ela apenas se manifestava conforme o artigo 220 da Constituição. O advogado disse possuir documentação que comprova motivação política agressão sofrida por Jucilene dentro da prisão, e alega que ela é vítima de perseguição de outras detentas. A reportagem fez contato imediato com o advogados para ter acesso aos supostos documentos citados, mas não houve respota. Tão logo o comentário foi feito, a reportagem acessou novamente os autos do processo, mas os documentos mencionados não foram localizados. O espaço segue aberto.
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Dica do Motoryn: canal do Panchorra
Antes de fechar, vale mencionar que quem me colocou em contato com a história de Jucilene foi o brilhante comunicador Victor Panchorra. Clique aqui para conhecer seu trabalho. Panchorra é, sem exagero, meu youtuber favorito: alguém que, com muito mais capacidade investigativa e olhar crítico do que boa parte da imprensa tradicional, mergulha em documentos públicos, recupera vídeos de audiências e dos próprios ataques para desmontar mentiras espalhadas sobre as condenações do 8 de Janeiro.
Panchorra também revelou redes de apoio a foragidos e oferece um acompanhamento detalhado dos desdobramentos jurídicos e políticos daquele dia. Não conheço Panchorra pessoalmente, mas tenho orgulho de dividir com ele a trincheira de investigações que não interessam a quem prefere transformar golpistas em vítimas.
Não tenho dúvidas de que se existisse um Prêmio Vladimir Herzog no YouTube, ele seria de Victor Panchorra. Mas esse trabalho independente, rigoroso e incômodo para os que tentam reescrever a história, tem um custo: Panchorra já foi ameaçado e processado por seguir fazendo aquilo que deveria ser obrigação de veículos bem mais estruturados — fiscalizar, investigar, confrontar versões falsas.
É esse tipo de jornalismo digital, nascido fora das redações tradicionais, que mantém viva a possibilidade de entender com clareza os crimes de 8 de Janeiro e as tentativas de apagá-los da memória coletiva.
Queria agradecer muito pelas dicas de investigação e pelos feedbacks que recebi depois das últimas edições. Esse retorno ajuda demais a calibrar a apuração e perceber quais pontos ainda podem ser aprofundados nas próximas newsletters.
E aproveito para fazer um pedido: se você está gostando das investigações e acha importante que essas histórias circulem além da bolha, indique Cartas Marcadas nas suas redes, para seus amigos e grupos que você faz parte. A melhor forma de amplificar esse trabalho é justamente espalhá-lo, e cada divulgação nos ajuda.
É isso. Nos vemos na próxima terça-feira?
2026 já começou, e as elites querem o caos.
A responsabilização dos golpistas aqui no Brasil foi elogiada no mundo todo como exemplo de defesa à Democracia.
Enquanto isso, a grande mídia bancada pelos mesmos financiadores do golpe tenta espalhar o caos e vender a pauta da anistia, juntamente com Tarcísio, Nikolas Ferreira, Hugo Motta e os engravatados da Faria Lima.
Aqui no Intercept, seguimos expondo os acordos ocultos do Congresso, as articulações dos aliados da família Bolsonaro com os EUA e o envolvimento das big techs nos ataques de Trump ao Brasil.
Os bastidores mostram: as próximas eleições prometem se tornar um novo ensaio golpista — investigar é a única opção!
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