“Elaboração secundária”. É assim que psicanalistas chamam o mecanismo pelo qual a mente reorganiza memórias e traumas para torná-los aceitáveis à consciência – suavizando contradições e criando narrativas coerentes sobre nossa existência.
Por exemplo, quando nos recordamos de um relacionamento antigo e a nossa memória foca apenas nos aspectos que justificam os nossos sentimentos atuais. Se sentimos saudade, nos focamos nos aspectos positivos. Se sentimos rancor, nos negativos.
A antropologia, por sua vez, adota uma visão um pouco distinta do conceito, utilizando-o para explicar a manutenção de certas crenças a despeito da existência de evidências contrárias: para explicar como tendemos a ignorar aquilo que as contradiz e a enfatizar aquilo que as confirma. De uma forma ou de outra, trata-se de um dispositivo que mascara a realidade, lançando-nos em uma espécie de negacionismo.
E esse, justamente, será um ponto central da história que vou contar aqui, os efeitos de um certo negacionismo.
O ano é 2015. Dilma é reconduzida ao cargo de presidenta após uma eleição acirrada contra Aécio Neves. Havia certo alívio na cúpula governista, é verdade, mas também havia uma melancolia palpável, típica de quem contempla um ente moribundo.
Dilma reassumia a presidência, mas a ameaça do impeachment era real, o Centrão, controlado por Eduardo Cunha, avançara ainda mais sobre as cadeiras no Congresso. Uma ameaça consolidada pela derrota acachapante – e previsível – do petista Arlindo Chinaglia para a presidência da Casa em fevereiro daquele mesmo ano.
Mas isso não é tudo. Essa é apenas a parte da história que todos gostam de lembrar. A parte conveniente. Pois existe uma outra, existe a parte em que uma parcela desse pessimismo era derivada do isolamento de Dilma no seio da própria esquerda, inclusive enfrentando resistências dentro de seu próprio partido.
Colhia as consequências de certos movimentos de seu primeiro mandato, especialmente por ter priorizado a conciliação com o empresariado (via Joaquim Levy) e o agronegócio (via Katia Abreu) em nome da manutenção de um projeto desenvolvimentista que, já naquela época, “fazia água”.
Não apenas o projeto desenvolvimentista, como o próprio modelo de governabilidade, uma herança dos governos Lula.
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Talvez alguns se lembrem, inclusive, de como se aventava uma “guinada à esquerda” do governo em resposta ao cerco do Centrão, de como muitos defendiam um retorno à base para constranger os deputados que, votação após votação, cortavam os recursos do governo. Talvez essas pessoas também se lembrem que essa guinada nunca veio, que a cada nova votação, o governo ensaiava novos e maiores movimentos conciliatórios.
Movimentos que, no fim, não apenas se mostraram insuficientes para impedir que o congresso e senado impichassem Dilma – com direito a ministros pedindo licença para votar contra a própria -, como foram abertamente financiados pelos grupos para os quais ela, como presidenta, continuamente acenava.
Como disse, essa é a parte da história que poucos gostam de lembrar. Talvez porque ela contrarie o imaginário atual da militância – que parece ter saído diretamente dos grupos da direita, onde Dilma caiu por ter ousado demais, por supostamente estar muito à esquerda ou por não ter o traquejo político de Lula, o grande líder das negociações palacianas, o maior de todos os conciliadores. No imaginário atual, negacionista, Dilma caiu por não ter conciliado o suficiente ou por ter conciliado mal.
Narrativa conveniente, elaboração secundária capaz de, não apenas pintar o governo Dilma com tintas que jamais foram suas, mas também de justificar certos movimentos do atual governo petista (e do próprio PT) enquanto reforça a imagem messiânica do presidente Lula.
Uma narrativa que se sustenta a despeito das evidências contrárias, a despeito do noticiário que nos informa diariamente que Lula tem se mostrado incapaz de consolidar uma base governista fiel e, por isso mesmo, tem sofrido sucessivas derrotas nos palácios de Brasília. Para que o leitor ou leitora tenha uma ideia, no último capítulo dessa sequência perdedora, 63% dos votos que derrubaram o IOF na Câmara, um dos projetos centrais para a manutenção das contas do governo, vieram da própria base governista, em especial, de integrantes de partidos de centro que comandam ministérios.
Uma narrativa que se sustenta a despeito do óbvio, que sobrevive na negação da morte do presidencialismo de coalizão ainda na década passada. Movimento cujo maior sintoma foi, justamente, o golpe sofrido pela presidenta Dilma. Uma realidade que nem mesmo Lula, com toda a sua capacidade de articulação política, será capaz de transformar.
Isso, é claro, se for a sua intenção, pois não parece ser o caso.
Que leitor, leitora, tenha em mente que se trata de uma negação ativa, pois o governo segue agindo como se o presidencialismo de coalizão do século passado ainda fosse possível. Com efeito, pois escrevo estas linhas enquanto recebo a notícia de que Lula pretende ligar para Hugo Motta para “retomar o diálogo” e de que não há qualquer perspectiva de retaliação aos partidos infiéis, mesmo para aqueles que nesse momento acenam abertamente para a oposição nas eleições do próximo ano.
E esse é um aspecto assustador, pois costuma-se dizer – com boa razão – que o governo, em especial Lula, se comunica com a população como se estivesse na década passada,mas pouco se fala, ainda, sobre como também se articula como se estivéssemos em 2010, ainda se articula negando ativamente a realidade atual da política nacional. O presidencialismo de coalizão morreu.
É assustador que nem todos estejam enxergando, pois, de negação em negação, o governo Lula corre o risco de chegar tão politicamente desgastado no próximo ano, desidratado mesmo, que corre sérios riscos de sofrer uma derrota histórica, mesmo com a máquina pública em suas mãos. Uma derrota da qual a esquerda levará anos para se reerguer. Uma derrota cujo preço será pago por todos nós.
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