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Netanyahu na Corte de Haia. E agora?

Procurador do Tribunal Penal Internacional solicitou mandados de prisão contra líderes do Hamas e o premier de Israel. Entenda o que é isso.


O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. (Foto: Walterson Rosa/Folhapress)
O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Foto: Walterson Rosa/Folhapress

Quem acessou o noticiário logo cedo na segunda-feira, 20, ficou com a impressão de déjà vu. “Conflito entre Israel e Palestina chega à Corte de Haia“. Ué, mas isso não ocorreu há dois, três meses?, poderia pensar o leitor desavisado, ainda na preparação para o início da semana.

Trata-se de um novo caso e, como essa confusão não deve ter sido isolada, escolhi falar sobre o tema nesta minha primeira coluna no Intercept Brasil. Mãos à obra.

A “Corte de Haia” da semana é o Tribunal Penal Internacional, o TPI, uma das várias instituições judiciárias internacionais sediadas na Haia, capital administrativa dos Países Baixos.

O TPI é responsável por julgar crimes internacionais estabelecidos no Estatuto de Roma, um tratado internacional que conta com 124 Estados Partes, incluindo o Brasil desde 2002 – a ONU, como medida de comparação, possui 193 países membros.

LEIA TAMBÉM:

Situação dos Estados diante do Estatuto de Roma

  Membro plenos do Estatuto de Roma – verde
  Estados que eram partes no Estatuto, mas se retiraram – roxo
  Estados que assinaram, mas não ratificaram o Estatuto – amarelo
  Estados que assinaram, mas posteriormente retiraram sua assinatura do Estatuto – laranja
  Estados membros da ONU e observadores que não assinaram nem aderiram ao Estatuto – vermelho

Nesta segunda-feira, o britânico Karim Ahmad Khan, procurador do TPI, anunciou a solicitação de mandados de prisão contra líderes do Hamas, incluindo Yahya Sinwar, Mohammed Deif e Ismail Haniyeh, e contra Benjamin Netanyahu e Yoav Gallant, primeiro-ministro e ministro da Defesa de Israel.

Os pedidos de Khan se baseiam na acusação de crimes contra a humanidade e crimes de guerra, incluindo assassinato, tortura, sequestro e violência sexual, no caso dos líderes do Hamas, e uso da fome como método de guerra em Gaza, no caso das autoridades israelenses.

“Olha aí, igual o caso do Putin“, pensará o leitor assíduo do caderno Mundo dos jornais. Sim e não. No caso envolvendo o presidente russo, a ordem de prisão foi determinada de pronto pelo Juízo de Instrução, que é quem dá a palavra final sobre o tema.

Na situação atual envolvendo a situação em Gaza, a Procuradoria do TPI solicitou o mandado de prisão, restando pendente a definição dos juízes.

EUA e Israel se defenderam na imprensa. Mas o que dizem faz sentido?

Ultrajante. Esse foi o adjetivo que, curiosamente, foi escolhido tanto por Netanyahu quanto por Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, para descrever o comunicado da Procuradoria do TPI.

Para eles, a solicitação de mandado de prisão seria legalmente inepta, já que Israel não é parte do Estatuto de Roma, e politicamente abjeta, por estabelecer uma equivalência entre o Hamas e integrantes do governo de Israel. Mas essas críticas fazem sentido?

O argumento sobre a falta de jurisdição do TPI sobre a situação é facilmente rechaçado, considerando que o tribunal pode analisar fatos que tenham sido causados por nacionais de Estados partes do Estatuto de Roma independentemente do local ou no território de Estados partes do tratado independentemente da nacionalidade do perpetrador.

Na primeira hipótese se enquadram as lideranças do Hamas (nacionais do Estado da Palestina, parte do Estatuto desde 2015) em suas ações em Israel (não parte do Estatuto). Na segunda, se encaixam Netanyahu e Gallant, nacionais de Estado que não é parte do Estatuto, porém cujas ações sob análise do TPI ocorreram em território palestino.

É situação similar à ordem de prisão contra Putin, dado que, hoje, a Rússia não é signatária do Estatuto de Roma (veja mapa acima). A Ucrânia assinou e não ratificou e, ainda assim, crimes contra seus cidadãos são julgados pelo TPI.

A contestação sobre a inadequação de igualar líderes do Hamas e autoridades de Israel parte de uma premissa incorreta, na qual o Tribunal Penal Internacional julgasse com base na equivalência entre ações, como se fosse um árbitro internacional do Código de Hamurabi, a definir a medida do “olho por olho, dente por dente”.

Não é assim que a banda toca. O trabalho de tribunais internacionais como o TPI é baseado em parâmetros conhecidos, sobre os quais há acordo específico quanto ao conteúdo e, principalmente, sobre a autoridade para definir sua aplicação. 

A esse conjunto de regras que balizam de forma supranacional a conduta de Estados ou indivíduos em determinadas situações que extrapolam fronteiras se dá o nome de Direito Internacional.

Na situação de Gaza, o procurador do TPI justificou sua solicitação de mandados de prisão com impressões colhidas em visitas realizadas em 2023 em território palestino (Ramallah, na Cisjordânia, e Rafah, em Gaza), israelense (incluindo kibutzim atacados por militantes do Hamas) e egípcio (Cairo).

Essas evidências foram complementadas com o aconselhamento de um painel de especialistas em Direito Internacional, composto por ex-juízes internacionais, professores e advogados com experiência profissional no Direito Internacional Humanitário e Direito Penal Internacional, cujas observações e conclusões estão disponíveis publicamente

Espera-se que o Juízo de Instrução decida nas próximas semanas sobre a concessão das ordens de prisão solicitadas pelo procurador do TPI. Se o caso envolvendo Putin serve como parâmetro, demorou cerca de um mês entre a abertura das investigações pela Procuradoria sobre a situação na Ucrânia e a concessão da ordem de prisão pelo Juízo de Instrução.

Até lá, as chancelarias ao redor do mundo têm se manifestado, conforme levantamento do professor Alonso Gurmendi, demonstrando apoio à ação da Procuradoria (Bélgica, Maldivas, Eslovênia, África do Sul, Chile, Colômbia e Omã, por exemplo), declarado confiança na independência do TPI (Áustria, Alemanha, França, Espanha, Suíça, Dinamarca, Áustria, Liechtenstein, Japão, Austrália, Suécia, Estônia e outros), demonstrado ultraje e preocupação  (Israel, Estados Unidos, Chéquia, Hungria, Paraguai, Reino Unido e Argentina) ou mesmo surpresa (Lituânia).

Alguns países, como Noruega e Alemanha, chegaram a reiterar o Estatuto de Roma, dizendo que, caso a ordem de prisão seja determinada pelo Juízo de Instrução, irão executá-las em seus territórios.

Mas quais os resultados práticos desses mandados?

“Tudo muito bacana, porém parece algo para inglês ver. Essas decisões não são meramente simbólicas?”, poderia questionar o desconfiado leitor de notícias internacionais.

A resposta a essa pergunta é objeto de incontáveis teses na área do Direito Internacional, que por vezes não é visto como “Direito de verdade” por profissionais de outras áreas jurídicas. Falarei mais em colunas futuras, porém adianto ao menos dois efeitos para além do simbólico.

O primeiro é o papel de registro documental que denúncias como a apresentada pelo procurador Karim Khan desempenham, sistematizando informações e classificando fatos para responsabilização e justiça.

O segundo é o peso político que uma denúncia internacional representa, criando um ônus argumentativo a pender sobre o acusado, que, por mais poderoso que seja, terá de lidar com a dúvida sobre o que poderá ocorrer caso pise em território de um dos 124 Estados partes do Estatuto de Roma.

Os próximos dias reservam muitas novidades no mundo das “Cortes de Haia”, incluindo nova decisão de outro tribunal, a Corte Internacional de Justiça, que analisará novo pedido de medidas cautelares pela África do Sul contra Israel diante de operações militares em Rafah, no sul de Gaza.

Mas esse é tema para uma próxima coluna. Até lá.

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