Palestinos se deslocam de Khan Yunis, Gaza, em meio aos escombros deixados pelo exército de Israel.

Israel quer guerra infinita e sem propósito, e os EUA seguem apoiando

A guerra de Israel em Gaza não é "política por outros meios", mas apenas um conflito sem fim.

Palestinos se deslocam de Khan Yunis, Gaza, em meio aos escombros deixados pelo exército de Israel.

O lendário teórico militar prussiano Carl von Clausewitz, cuja obra ainda influencia os oficiais militares dos EUA até hoje, escreveu em seu famoso tratado “Da guerra”, do século XIX, que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Clausewitz, mesmo na qualidade de general militar dando conselhos sobre a melhor forma de conduzir um conflito armado, lembrava aos leitores que o propósito da guerra é atingir objetivos políticos, não perseguir a violência como um fim em si mesma, ou como substituta para a diplomacia.

As palavras do general teriam sido bem recebidas pelos EUA e por Israel antes do início da atual guerra na Faixa de Gaza, que atingiu agora um previsível e doloroso impasse. Até esse ponto, dezenas de milhares de palestinos já foram mortos ou feridos, Israel enfrenta acusações de genocídio na Corte Internacional de Justiça, e o Hamas já está voltando a controlar partes de Gaza que Israel havia declarado conquistadas.

Os oficiais militares israelenses agora estão vindo a público com críticas de que a guerra em Gaza teria sido equivocada por uma simples razão que o próprio Clausewitz teria reconhecido: para além da vingança, essa guerra nunca teve estratégia ou objetivo político claros.

A falta de abordagem política reflete atitudes enraizadas na sociedade israelense, que agora aprisionaram o país em uma guerra eterna contra os palestinos e seus demais vizinhos, levando a reboque os EUA como patrono. As origens deste fracasso estão em produção há anos.

Muito antes de 7 de outubro, o governo israelense decidiu que os palestinos, seja na Cisjordânia ou na Faixa de Gaza, não tinham mais relevância política. As lideranças israelenses decidiram não lidar com os palestinos como agentes políticos, e adotaram o posicionamento de que se trata simplesmente de uma população subjugada, que deve ser suprimida e controlada com uma mistura de ferramentas militares, tecnológicas e econômicas.

Ao mesmo tempo em que seguiu com a política de bloquear Gaza e bombardear periodicamente a região, Israel ignorou ou rejeitou os apelos da Autoridade Palestina, com apoio do Direito Internacional, por uma solução de dois estados. Em vez disso, Israel prosseguiu unilateralmente com sua política de colonizar e anexar a Cisjordânia, cristalizando um consenso entre as principais organizações de direitos humanos de que Israel é um estado do apartheid.

Os EUA, sob a liderança do presidente Joe Biden, na mesma linha de governos anteriores, incentivaram esse processo de ignorar as reivindicações políticas dos palestinos. O mais impressionante é que Biden acompanhou o governo Trump em sua busca por uma falsa diplomacia na forma de negociações armamentistas regionais e acordos de normalização entre países árabes do Golfo Pérsico e Israel: os chamados Acordos de Abraão. Essa miopia acabou produzindo a atual conflagração em Gaza, em que o ataque do Hamas em 7 de outubro expôs o fato de que o controle militar e tecnológico de Israel sobre Gaza é muito menos robusto do que era divulgado.

Do ponto de vista dos EUA, o apoio automático de Biden a uma guerra que se mostrou ao mesmo tempo violenta e sem propósito acabou encurralando o país na situação de principal facilitador de um suposto genocídio.

A guerra não apenas manchou a reputação dos Estados Unidos no exterior, mas também está esgarçando seu próprio tecido social. Mesmo os obstinados apoiadores do consenso de política externa dos EUA foram obrigados a lidar com as falhas no tratamento dado aos palestinos como politicamente irrelevantes. Em uma recente entrevista ao site Politico, uma importante ex-diplomata dos EUA, Victoria Nuland, reconheceu que essa abordagem lançou as bases para a atual calamidade.

“Desde o governo Trump, todos se encantaram com a normalização regional como a panaceia universal para a instabilidade, as insatisfações e a insegurança no Oriente Médio”, diz Nuland. “Mas se a questão palestina é deixada de fora, alguém irá aproveitar a oportunidade e tomá-la para si, e foi isso que o Hamas fez.”

O absurdo caminho escolhido

A guerra em Gaza começou no calor da emoção, após os ataques praticados pelo Hamas contra comunidades civis israelenses. Ela foi logo divulgada para a população israelense como uma guerra para erradicar completamente o grupo. No entanto, sete meses depois, com milhares de palestinos mortos e feridos, Israel continua atolado no território, sem perspectiva de jogada final.

Uma das muitas tristes ironias é que o próprio Hamas fez repetidas súplicas políticas a Israel, que foram rejeitadas pelos líderes israelenses da mesma forma que rejeitaram qualquer envolvimento com as lideranças palestinas na Cisjordânia. As lideranças israelenses preferiram visitar Dubai e continuar a desenvolver tecnologia militar e de vigilância, considerando que isso lhes permitiria controlar e ignorar os palestinos indefinidamente.

Apesar da crescente pressão, os governantes Israelenses não mostram sinais de ceder ou retornar à negociação política.

As consequências desta abordagem agora estão claras, mas o colapso pode ainda estar só nas suas fases iniciais. Como resultado da guerra, Israel enfrenta a perspectiva de outro conflito com o Hezbollah em sua fronteira norte, de onde dezenas de milhares de israelenses foram removidos desde outubro de 2023. O país também enfrenta outros riscos, como o possível término de sua relação crucial de segurança com o vizinho Egito, que ameaçou suspender os históricos acordos de paz de Camp David e recentemente ingressou no processo da CIJ que acusa Israel de cometer genocídio.

Apesar da crescente pressão, os governantes Israelenses não mostram sinais de ceder ou retornar à negociação política. Yoav Gallant, ministro da Defesa de Israel, declarou recentemente que Israel deveria construir uma nova grande cidade na Cisjordânia ocupada, em parte para deslocar “a população de Israel para o leste”. Caso uma solução de dois estados ainda permaneça sequer uma possibilidade, movimentações como essa sobre o território atribuído pelo direito internacional para um futuro estado palestino eliminariam qualquer esperança. Enquanto isso, os palestinos estariam ainda mais confinados a uma série de acampamentos cercados em sua própria terra natal.

O cenário político em Israel não oferece muito alívio. O governo de Israel inclui ministros de extrema direita e até alguns abertamente fascistas. Gallant, por sua vez, é considerado uma figura política “tradicional” no país, uma demonstração gritante do quanto a política em Israel se afastou da lógica de diplomacia e negociação.

Assim como sua guerra em Gaza está lentamente se desenrolando em um fracasso militar, as políticas de Israel na Cisjordânia devem produzir ainda mais catástrofes no futuro. Israel continua a rejeitar as negociações com a Autoridade Palestina e com a Liga Árabe, que já oferece há mais de duas décadas a possibilidade de relações diplomáticas e econômicas plenas em troca de uma solução de dois estados.

Os EUA permitem que Israel continue cavando essa trincheira, a despeito do esmagador consenso internacional de que o país está infringindo as normas do direito internacional. O apoio indiscutível e a cobertura diplomática que Israel vem recebendo de sucessivos governos americanos, inclusive do atual governo Biden, permitem que um pequeno país desafie as normas internacionais e a opinião pública, à medida que mergulha em uma postura de paranoia e provocação semelhante à da Coreia do Norte.

Biden agora está naufragando nas pesquisas, embora pareça não acreditar nisso. Caso perca a próxima eleição após encorajar todas as piores tendências de Israel, ele será visto não só como o governante que entregou a presidência de volta a Donald Trump, mas também como um fracasso diplomático. Ele terá confinado uma superpotência em um relacionamento com um estado cliente que há muito tempo abandonou a diplomacia e o direito internacional em prol do apartheid, da guerra infinita, e do uso de força brutal, e até eliminacionista, para lidar com seus problemas.

O próprio Clausewitz alertou para as falhas desse tipo de proposta. “O objetivo político é a meta, a guerra é a forma de atingi-la, e os meios nunca podem ser avaliados separadamente dos seus propósitos”, escreveu. Para Israel, e os EUA ao seu lado, o futuro é uma guerra que continuará a ser travada sem nenhum objetivo claro.

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