No dia 30 de abril, alerta já era de evento com magnitudes superiores a qualquer coisa já registrada no Rio Grande do Sul.

'É desesperador o despreparo’

O passo-a-passo da inoperância no RS, segundo um dos responsáveis por alertar as autoridades


A Defesa Civil do Rio Grande do Sul começou a receber alertas sobre a potencial gravidade das tempestades em 25 de abril, mas só começou a pedir que moradores de áreas de risco deixassem suas casas cinco dias depois – quando 77 cidades já haviam sido atingidas. 

Foram quatro alertas emitidos às coordenadorias regionais da Defesa Civil, órgãos chefiados por militares, em uma escala crescente de gravidade – e, em todos os casos, as autoridades demoraram dias para agir. Um servidor da Sala de Situação do Rio Grande do Sul, órgão responsável por monitorar eventos críticos, afirmou ao Intercept Brasil que as autoridades estaduais foram avisadas desde 28 de abril que o estado poderia viver uma catástrofe sem precedentes. 

“É desesperador o despreparo do estado para lidar com essa questão de eventos meteorológicos e hidrológicos extremos”, disse Fábio, um dos membros da Sala de Situação, órgão da Secretaria do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul ligado à Agência Nacional de Águas responsável por modelagens climáticas. Ele narrou a cronologia da negligência vista por dentro.

Até a manhã de sexta-feira, 10 de maio, mais de 100 pessoas morreram e outras 146 seguem desaparecidas em decorrência das enchentes. Já são 69.617 pessoas em abrigos e 337.116 desalojadas.

O Intercept teve acesso a detalhes de como foram os dias antes da tragédia que fez com que milhares de pessoas ficassem vulneráveis. Segundo Fábio, os vários alertas da Sala de Situação não receberam a devida diligência do governo do estado.

Segundo o servidor, todos os avisos de eventos meteorológicos são acompanhados de uma reunião online com os coordenadores da Defesa Civil, divididos em nove regiões. Cabe aos técnicos, meteorologistas e hidrólogos, apresentar as projeções – e os coordenadores da Defesa Civil decidem o que fazer.

Esses coordenadores são todos militares, sendo cinco coronéis e tenente-coronéis, além de tenentes e majores. Eles são os responsáveis por tomar a decisão de enviar alertas por SMS e avisar prefeituras e defesas civis municipais para fazer evacuação, por exemplo. 

“Nessas reuniões a gente [servidores da sala de situação não ligados à Defesa Civil do estado] acaba indicando o que fazer, porque vemos a inoperância”, disse Fábio. “Alguns coordenadores são bons, mas muitos são fracos e preguiçosos. Não fazem nada”, critica. Fábio ainda completou: “repito, não deveria ser assim, mas somos nós, como sala de situação, que fazemos as indicações. Acaba sendo ruim. Como técnicos, acabamos tomando a decisão por outras pessoas”.

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Segundo ele, as chuvas que devastaram o estado ocorreram de uma forma um pouco diferente do que as previsões indicavam: inicialmente deveriam começar no Sul e depois se deslocar pro Centro e Norte do estado. Porém, começaram no Centro e Norte antes do previsto e com maior intensidade. 

Segundo Fábio, a Sala de Situação estava desde o final de semana anterior ao desastre, nos dias 27 e 28 de abril, alertando “para que todos os órgãos se preparassem para um evento no nível do eventos de novembro do ano passado”. 

No último dia 30, terça-feira, o alerta foi atualizado para um evento com magnitudes superiores a qualquer coisa já registrada no estado – e foi o que ocorreu. “O pior é que se tivesse sido parecido com o evento de novembro (ou seja, uma catástrofe bem menor) eles [o governo estadual] também não estariam preparados”, diz Fábio.

Cinco dias entre alerta e o primeiro pedido de evacuação

No dia 25 de abril, a equipe da Sala de Situação avisou pela primeira vez sobre riscos de enchentes. O “Aviso Hidrometeorológico – 254” já detalhava quais eram os locais de inundação e reforçava o risco. Naquele dia, a previsão era de maior gravidade no sul do estado, com alerta em outras localidades.

O cenário piorou rapidamente. No sábado, 27, o Instituto Nacional de Meteorologia alertava para tempestades. No dia 28, domingo, a Sala de Situação enviou um novo aviso. O documento mostra uma progressão rápida da situação, colocando quase metade do estado sob risco de inundação. 

“Ao final deste aviso, os acumulados poderão variar entre 80 e 100 mm sobre grande parte do Rio Grande do Sul, podendo passar pontualmente dos 120 mm no Sul, Campanha e Costa Doce. Além disso, há risco de eventual queda de granizo e rajadas fortes de vento sobre parte do estado”.

Em uma reunião no dia 28 de abril, afirma Fábio, os especialistas da Sala de Situação teriam alertado os coordenadores da Defesa Civil para que ficassem preparados para uma situação no mesmo nível da que ocorreu em novembro do ano passado.

O mesmo relatório ainda trazia o seguinte alerta ao final:

O aviso ainda considerava as chuvas vindo pelo Sul, mas já deixava as outras regiões do estado em alerta. No dia 29, a Defesa Civil do estado emitiu alertas de inundações no Rio Quaraí e Rio Santa Maria, além de um alerta sobre áreas de risco hidrológico. Foi registrada a primeira inundação grave no Rio Taquari. 

Naquela noite, o governador Eduardo Leite, do PSDB, postou um vídeo alertando para as chuvas, mas em tom tranquilo. 

Até então, o aviso era de “alerta”, replicado pelas prefeituras. No dia 30, a prefeitura de Eldorado Sul divulgou um aviso que previa “potencial chance de alagamentos”, e São Leopoldo anunciou um plano de emergência. Os moradores de Lajeado também receberam um aviso por SMS naquele dia. Na cidade, o rio Taquari já subia a 50 centímetros por hora. 

Foi só na tarde daquele dia 30 que o governo do estado, por meio da Defesa Civil, emitiu um comunicado alertando que as pessoas deveriam ser retiradas de locais com risco de inundação. 

Naquele dia, a Sala de Situação já havia enviado a terceira atualização do aviso 254. A situação havia ficado mais grave rapidamente: o centro do estado já estava com “alerta severo”. Àquela altura, oito pessoas já haviam morrido. 

“É indicada a condição de inundação em praticamente todo o estado, ressaltando as elevações rápidas e extravasamento de pequenos rios e arroios”, diz o aviso, que também previa “inundação severa”.

Muçum, no Vale do Taquari, foi uma das poucas cidades que fez um alerta de evacuação naquele mesmo dia. O prefeito Mateus Giovanoni Trojan, do MDB, foi às redes sociais avisar que havia começado os trabalhos de remoção das pessoas localizadas em áreas de risco da cidade.

“Fomos repassando as informações conforme recebíamos as atualizações, e executamos o plano de evacuação e a estruturação do plano de contingência gradativamente na cidade”, disse Trojan ao Intercept. Muçum foi uma das mais afetadas pelas chuvas de setembro de 2023, quando 20 pessoas morreram. Neste ano, não houve nenhuma morte, embora a cidade tenha ficado destruída.

Na quarta-feira, 1 de maio, às 15h, a cidade de Eldorado do Sul comunicou à população seu primeiro alerta de “inundação gradual” – embora o aviso tivesse sido dado pela Sala de Situação no dia anterior. Às 20h daquele dia o município declarou situação de emergência. Mais tarde, a cidade precisou ser praticamente toda evacuada

Foi só na noite de 1 de maio que o governador Eduardo Leite foi às redes sociais alertar para que a região fosse evacuada.

Foi na madrugada do dia 2 que a Defesa Civil passou a usar a palavra “extrema” para definir as enchentes e tempestades. Naquele dia, veio a terceira atualização da Sala de Situação. A partir daqui, já era claro que seria um evento maior do que a enchente de 2024, como haviam avisado os técnicos.

“Permanece o alto risco de transtornos por conta das chuvas intensas e persistentes, com INUNDAÇÃO EXTREMA em grande parte do estado, com os rios atingindo níveis históricos e com tendência de continuar em elevação, com risco muito alto a toda população”.

Naquele momento, o estado já registrava 32 mortes. Neste intervalo de tempo, já havia chovido três vezes a média para aquele período. O Rio Taquari ultrapassava 30 metros de altura, atingindo o maior nível da história. O Rio Grande do Sul  já se encontrava em estado de calamidade pública. 

A água ainda não havia chegado à região metropolitana, mas o alerta já avisava que isso aconteceria. No dia 3, a Defesa Civil pediu evacuação de parte do centro histórico. No mesmo dia, hidrólogos pediram que a prefeitura de Porto Alegre preparasse evacuação mais ampla, mas isso não aconteceu. Nos dias seguintes, bairro precisaram ser evacuados às pressas.

Um novo aviso, de número 255, foi elaborado nesta última quinta, 9. Como de praxe, foi acompanhado por uma reunião com os membros da Defesa Civil. A previsão é de uma nova leva de chuvas intensas no estado. Resta saber se dessa vez os alertas e avisos à população serão dados com a devida brevidade e clareza.

Em nota, a Defesa Civil e a Sala de Situação reforçaram “a seriedade com que as informações repassadas pelo corpo técnico são tratadas e a absoluta sinergia entre as duas estruturas de prevenção”. Segundo o órgão, desde 2020 os dois grupos trabalham no mesmo local, no centro de Porto Alegre, para “ampliar a integração”. 

Segundo o órgão, imediatamente após a emissão do Aviso 254, o alerta foi enviado às defesas civis regionais e municipais, “que têm a atribuição de adotar ações para a retirada de pessoas de áreas de risco”. A Defesa Civil ainda disse que no dia 25 os alertas já orientavam a população a procurar informações sobre áreas de risco e, no dia 27, “foi orientado à população de áreas de risco deixar esses locais”.

A assessoria de imprensa do governador Eduardo Leite não houve retornou até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto.

Atualização: 11 de maio de 2024, 14h17

O texto foi atualizado para inclusão do posicionamento da Defesa Civil do Rio Grande do Sul, enviado após a publicação.

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