Orlando Calheiros

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Violência policial: No Brasil, todo ano é 1964. Todo dia é primeiro de abril

Morte de inocentes patrocinadas pelo estado não se encerraram com a redemocratização do país. A violência policial é um elo entre crimes ocorridos há quase 60 anos.

Estudantes sendo levados por policiais após protesto durante os anos de repressão da Ditadura Militar. Violência policial. Foto: Fundo Correio da Manhã/Arquivo Nacional

Estudantes sendo levados por policiais após protesto durante os anos de repressão da Ditadura Militar. Foto: Fundo Correio da Manhã/Arquivo Nacional

Começo esse texto com duas histórias.

Na primeira delas, estudantes secundaristas protestam por melhorias nas instalações insalubres de um restaurante estudantil, quando o local é subitamente invadido por policiais militares armados com cassetetes, pistolas e submetralhadoras. 

Um aparato totalmente desnecessário, pois os jovens estavam indefesos, tinham a sua disposição apenas alguns talheres, pratos e um punhado de comida estragada. Os policiais sabem disso e, mesmo assim, avançam para cima dos estudantes, agredindo-os.

Tiros são ouvidos e agora seis estudantes estão no chão. Ensanguentados. 

Um deles não apresenta qualquer reação. Está morto! Seus companheiros, desesperados, formam um cordão de isolamento ao seu redor para impedir que os policiais desapareçam com o seu corpo. O jovem assassinado é carregado nos braços dos estudantes pelas ruas da cidade até a Santa Casa de Misericórdia.

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Mais tarde, os policiais alegam que o secundarista morreu em confronto com agentes da lei, Relatos de testemunhas contradizem essa versão e o laudo pericial aponta que o jovem foi executado com um tiro à queima-roupa. Execução!

Estudantes protestam contra o assassinato de Edson Lima, em 1968, durante a Ditadura Militar. Foto: Fundo Correio da Manhã/Arquivo Nacional

Na segunda história, os moradores de uma favela, em sua maioria jovens e crianças, protestam contra os sucessivos episódios de violência policial na região. Policiais militares estão no local. A turbamulta revoltosa está diretamente sob a mira de seus fuzis. Os moradores estão desarmados, os policiais sabem e isso não importa. 

A população encara os fuzis e ofendem os policiais que os ameaçam. A tensão aumenta e, então, tiros são ouvidos! 

Um soldado da polícia militar dispara repetidas vezes contra os moradores. Alguns correm, outros se escondem. Os brados coletivos dão lugar a um grito solitário. Um jovem corre implorando por ajuda. Corre por alguns poucos metros e cai. 

Uma poça de sangue se forma entre o seu corpo e o asfalto. Há um ferimento enorme em suas costas. É um tiro de fuzil. Alguns moradores correm para ajudá-lo, enquanto outros, indignados, avançam contra os policiais, agora com pedras e garrafas.

O jovem é carregado nos braços dos próprios moradores até o hospital mais próximo, mas não resiste aos ferimentos. É um tiro de fuzil. 

O jovem assassinado retornava da casa de sua avó, nem do protesto ele participava.Naquele mesmo dia, a polícia militar divulga que todos os disparos foram realizados em uma troca de tiros com criminosos e que o jovem morto tinha envolvimento com o crime organizado. A versão dos policiais foi imediatamente desmontada por testemunhas e posteriormente pela perícia.

Essas são as duas histórias. Ambas são reais. Ambas aconteceram no Rio de Janeiro. Os dois jovens assassinados existiram, tinham nome, família, sonhos, um futuro. 

O primeiro deles se chamava Edson Luiz de Lima e tinha apenas 18 anos, o segundo era Johnatha de Oliveira Lima, de 19 anos. 

Edson era paraense, filho de uma família muito pobre, veio para o Rio sozinho em busca de melhores condições de vida. Chegou a morar nas ruas da cidade e conciliava os seus estudos com o emprego de faxineiro. Johnatha vivia com sua mãe, Ana Paula Oliveira, e uma irmã na favela de Manguinhos, Zona Norte da cidade, era torcedor do Flamengo e sonhava em seguir carreira como sargento do exército Brasileiro.

Edson foi assassinado em março de 1968, durante a Ditadura Militar. Johnatha foi morto em maio de 2014, sob a égide de um governo democraticamente eleito.

Duas vidas distintas que foram encerradas de forma parecida. Duas histórias semelhantes separadas apenas pelo tempo. E isso nos diz muito sobre o país em que vivemos. Edson foi assassinado em março de 1968, durante a Ditadura Militar. Johnatha foi morto em maio de 2014, sob a égide de um governo democraticamente eleito. 

Há, entre as histórias, uma distância de mais de 40 anos! E ainda assim a morte de Johnatha, sua estrutura, repete o assassinato de Edison. A polícia ainda mata como nos tempos da ditadura. 

Sabemos que Edson não foi o primeiro e que Johnatha não foi o último, sabemos que há, entre eles dois, um sem-número de casos semelhantes, de histórias, de vidas que foram encerradas de forma violenta pela ação direta do braço armado do estado.

Histórias que seguem a mesma estrutura: o assassinato é apenas a primeira de uma longa cadeia de agressões, de violências que se propagam até para além dos limites dos corpos físicos de suas vítimas. Até a memória dos mortos é violada! 

Protesto contra a morte de Johnatha, ocorrida em 2014. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

É comum que sejam são difamados, criminalizados para que o seu assassinato seja considerada justo, para que seja aplaudido e não condenado.

Lembram do que aconteceu com Marielle, DG, Maria Eduarda, Thiago Flausino, Claudia Ferreira…?

E aqui há um detalhe crucial, quanto mais pretos, quanto mais pobres, mais fácil será encontrar uma desculpa para o extermínio. Dependendo, nem isso será necessário. De fato, na maioria dos casos basta dizer que “houve confronto”.


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Essa estrutura se repete com a anuência de boa parte da imprensa, da sociedade, da classe política e do judiciário. Todos eles, cada qual a sua própria maneira, contribui para o azeitamento dessa verdadeira máquina de extermínio. Desse modelo  cujos contornos foram desenhados ainda durante a Ditadura Militar e seguiram incólumes ao longo de todos esses anos.

Repito, morte de Johnatha, sua estrutura, repete o assassinato de Edison.

O ano é 2024, mês de março. Ana Paula Oliveira, mãe de Johnatha, chora desesperada ao saber do resultado do julgamento do soldado Alessandro Marcelino de Souza, o policial militar que atirou nas costas do seu filho, dez anos antes. O veredito? Homicídio culposo, isto é, quando não há intenção de matar. A sentença garante a impunidade do policial que ainda responde por um triplo homicídio.

Nessa mesma semana, como parte de sua agenda de conciliação com a caserna, o presidente Lula determinou que o governo federal não patrocinará ou encabeçará qualquer ato político relacionado ao golpe militar de 1964. 

Isso significa que não ocorrerão os tradicionais atos em memória das vítimas da Ditadura Militar e nem o lançamento de programas que joguem  luz sobre os crimes do regime. 

Na prática, a atitude do presidente reforça o pacto de anistia que garantiu a impunidade dos militares após a derrocada da ditadura.

A polícia ainda mata como nos tempos da ditadura.

10 anos se passaram e ainda não tivemos justiça por Johnatha de Oliveira Lima, quase 60 anos se passaram e ainda não tivemos justiça por Edson Luiz de Lima.

Até nesse aspecto as histórias se aproximam! A injustiça é a lei e isso não é coincidência. A anistia normaliza a máquina de extermínio que ceifa a vida de jovens pobres e negros como Johnatha de Oliveira Lima. A sentença de 2024 e o silêncio sobre 1964 garantem a impunidade da máquina e de seus agentes. Ela seguirá fazendo o que sempre fez, fazendo aquilo que foi designada para fazer. Estamos vendo isso na Bahia, estamos vendo isso em São Paulo.

A máquina desenhada pelos militares, suas polícias, segue incólume.

Provavelmente a história de Edson, de Johnatha e tantos outros se repetiu no dia de  hoje.

No Brasil todo ano é 1964 e todo dia é primeiro de abril.

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