O que é uma testemunha?
O filósofo Giorgio Agamben nos lembra da existência de duas palavras em latim para esse sujeito. A primeira delas é testis: significa, etimologicamente falando, o terceiro elemento de uma disputa. Testis é, ao mesmo tempo, o observador e o juiz de uma contenda. A segunda palavra é superstes e designa aqueles que vivenciaram, que experienciaram um determinado evento, e por isso mesmo podem falar sobre ele. O seu testemunho é a própria matéria da memória.
E se evoco estas definições, o faço na medida em que a testemunha moderna, sua definição, passeia por entre elas, por compreendermos o testemunho tanto nos termos de um juízo, quanto nos termos de um enunciado baseado na experiência.
E peço que mantenham essa dupla definição em mente, pois a utilizaremos em breve.
Por ora, nos limitaremos a uma nova e importante pergunta: por que os militares brasileiros desapareciam com os corpos de suas vítimas durante a Ditadura Militar?
Pergunta complexa, mais do que normalmente se imagina.
O “desaparecimento forçado” – para utilizarmos a categoria jurídica adequada – das vítimas do regime militar seria, com as devidas aspas, “apenas” o aspecto final de uma máquina muito maior de silenciamentos e apagamentos.
Estamos falando de uma máquina que começa na censura imposta pela caserna, a censura formal, promovida por meio de atos como o AI-5 e o famigerado “Decreto Leila Diniz”, mas também a censura informal, aquela promovida pelo medo continuamente propagado pelos próprios militares e seus múltiplos tentáculos na sociedade, como as polícias e os grupos de extermínio.
Existiam verdades que não podiam ser enunciadas. Os que ousaram dizê-las desapareceram nos porões da Ditadura Militar.
Uma desaparição que se iniciava ainda momento da prisão, com táticas criadas pelos próprios militares para impedir que os presos políticos fossem encontrados por seus familiares e amigos. Táticas que iam de trâmites burocráticos kafkianos à utilização de “aparelhos clandestinos”, como a Casa da Morte, em Petrópolis, no Rio de Janeiro.
Alguns reapareciam, mas apenas seus corpos emergiam dos porões enquanto a causa de sua morte era falseada por meio de atestados de óbito emitidos por médicos alinhados com o regime. Nos documentos, morria-se em tentativas de fuga inverossímeis, em confrontos absurdos e suicídios impossíveis. Foi o que aconteceu com Vladmir Herzog e outros tantos.
Mas alguns desapareciam por completo, seus corpos, inclusive, negando eternamente aos seus familiares e amigos o direito de enterrá-los. Uma violência perpétua: Rubens Paiva, Stuart Angel, Dinalva Oliveira Teixeira… Estes são apenas três nomes entre centenas de desaparecidos.
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O ciclo se fecha numa máquina terrorista que se retroalimenta. A desaparição se fortalece na censura e esta, por sua vez, se alimenta dos rumores de violência do regime. A máquina terrorista perfeita, capaz de cometer as maiores atrocidades, os maiores crimes, e ainda assim permanecer incólume.
Entre estes crimes, inclusive, o genocídio.
Você sabia que em 1968 o Exército Brasileiro ordenou e coordenou a invasão do território dos indígenas Waimiri-Atroari, apenas para garantir a construção de uma estrada? Você sabia que na ocasião as forças armadas utilizaram metralhadoras, dinamites, granadas e até bombardeios aéreos para atacar essa população? Você sabia que mais de dois mil Waimiri-Atroari morreram nessa operação?
O tempo e o silêncio de nossas autoridades, do presidente Lula, termina por concluir o projeto dos generais.
Até hoje se sabe pouco, muito pouco sobre esse evento, sobre esse genocídio e também sobre outros casos semelhantes. E acreditem, houveram outros. Perpetrados pelo governo ou por seus aliados.
Você já ouviu falar dos ataques perpetrados contra grupos Nambikwára no vale do Guaporé, no estado de Rondônia, em 1968? Sabia que indígenas dessa etnia chegaram a ser bombardeados com o desfolhante Tordon 155-BR, popularmente conhecido como Agente Laranja? Os ataques foram realizados por civis que invadiram aquelas terras autorizados e financiados pelo próprio governo brasileiro.
E só podemos falar disso pois os Waimiri-Atroari e os Nambikwára resistiram e, a despeito de tudo, sobreviveram. Mas quantos outros povos podem ter sido completamente exterminados pelos planos e avanços da Ditadura Militar?
Afinal, o desaparecimento dessas populações começava antes mesmo dos ataques. Começava já na propaganda oficial e na burocracia do governo que afirmava reiteradamente a inexistência de populações indígenas nos “sertões” que almejavam invadir. O genocídio era, mais uma vez com as aspas devidas, “apenas” a conclusão desse processo de desaparição.
Percebam a existência de um padrão, uma estrutura de desaparecimentos que se estende da cidade ao “sertão”, que vai da propaganda e burocracia à tortura e o assassinato. Nada disso é coincidência ou acidente, é método. Método de um regime político que não suportaria o testemunho de seus crimes.
Por isso desapareciam com suas vítimas, pois corpos são, sabemos, testemunhas. Testemunhas de sua própria existência, mas também, testemunhas das violências que sofreram, das violências que os generais cometeram. Superstes. Seus desaparecimentos ou o apagamento dessas violências por meio de laudos e certidões falsificadas impediam que outros, que terceiros, testemunhassem contra o regime. Testis.
A máquina terrorista perfeita, eu disse. Uma máquina produz apagamentos e se alimenta do silêncio.
Pior, uma máquina que segue funcionando e se fortalecendo à medida em que a sociedade brasileira se recusa, ano após ano, a passar em revista os crimes cometidos pelo regime da caserna. O tempo leva consigo os últimos sobreviventes do regime, aqueles que poderiam testemunhar suas violências, seus crimes. Testemunhar porque as vivenciaram na pele. O tempo e o silêncio de nossas autoridades, do presidente Lula, termina por concluir o projeto dos generais, dificultando que as gerações futuras, sobretudo elas, testemunhem contra a Ditadura Militar.
Nesse processo, sobram aqueles que testemunham a favor dos generais, avançando sobre a memória do país, falseando o passado. Prevalecendo o famigerado “no tempo da ditadura que era bom”.
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