Enquanto Ivete Sangalo comandava o trio elétrico em Aracaju, no dia 4 de novembro de 2023, Thais Santos, de 31 anos, era abordada por policiais pela segunda vez em poucas horas. Sistemas de reconhecimento facial a apontaram com uma pessoa com mandados de prisão em aberto. O que era para ser um festejo de pré-carnaval se tornou um trauma que a marcou profundamente.
Ela não foi a primeira nem a última pessoa a ter seus festejos interrompidos por erros de tecnologias de inteligência artificial. Segundo dados inéditos produzidos pelo O Panóptico, 49 festividades ao redor do Brasil foram monitoradas com tecnologias de reconhecimento facial nos últimos quatro anos.
A prisão de um folião durante um bloco de carnaval em Salvador, em 2019, foi o pontapé inicial desse novo ciclo de uso disseminado de algoritmos de reconhecimento facial por polícias ao redor do Brasil. O caso virou uma peça de propaganda da Secretaria de Segurança Pública da Bahia, que alardeou o fato de que a tecnologia poderia reconhecer até mesmo pessoas fantasiadas no meio de uma multidão. Desde então, o governo baiano ultrapassou a marca de mais de mil pessoas presas com o uso da tecnologia, e os casos em que os sistemas foram usados em festividades só aumentaram.
Em 2023, o Panóptico, um projeto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania que monitora a adoção de novas tecnologias pelas forças policiais, registrou um grande aumento de festividades monitoradas com uso de tecnologias. Foram 28 só em 2023 – número maior do que o três anos anteriores somados.
Entre eles está o pré-Caju, a festa em que Thais teve encontros violentos com a polícia por falhas no sistema. Ela conta que o primeiro erro foi cometido por policiais militares que a abordaram no meio da multidão e logo a dispensaram. Horas mais tarde, foi a vez de policiais civis abordarem a jovem, dessa vez de forma truculenta. Colocada em uma viatura da polícia e revistada de maneira vexatória, Thais relata que chegou a se urinar por causa do medo.
São os estados do nordeste do Brasil que puxam os experimentos com novas tecnologias na segurança pública. A Bahia, por exemplo, investiu mais de R$ 600 milhões em um dos maiores projetos de reconhecimento facial da América Latina. Enquanto isso, outros problemas mais urgentes no estado continuam sem solução.
Só para ficarmos no tema da segurança pública: o estado registrou um aumento assustador da violência policial. Entre 2015 a 2022, aumentou mais de 300% o número mortes decorrentes de intervenção de agentes do estado, uma marca da gestão do petista Rui Costa, atual chefe da Casa Civil, à frente do governo da Bahia.
Apesar disso, o governo da Bahia ainda reluta em adotar uma política para redução do indicador de letalidade policial e em instalar câmeras corporais nos uniformes dos agentes, uma política que pode contribuir para diminuir a violência. Após meses de processo licitatório, o governo baiano adiou o uso das microcâmeras só para depois do Carnaval. Enquanto isso, os sistemas de reconhecimento facial seguem a pleno vapor.
Além de Bahia e Sergipe, onde Thais Santos foi vítima de duas abordagens policiais, Pernambuco também tem tentado avançar no tema da vigilância com uso de biometria facial. João Campos, prefeito de Recife pelo PSB, propôs instalar novos relógios digitais na cidade. A promessa é que esses dispositivos modernizem o mobiliário urbano, exibindo informações como hora, temperatura, qualidade do ar, índice de radiação ultravioleta e oferecendo Wi-fi gratuito – além de câmeras de vigilância.
A proposta é que empresas privadas teriam o direito de explorar esses relógios, levantando questões de privacidade. Não fica claro, por exemplo, se essas empresas poderão acessar as imagens das câmeras de videomonitoramento, como ocorreu na Linha Amarela do metrô em São Paulo.
A movimentação do prefeito recebeu forte crítica da sociedade civil, o que fez com que o projeto ficasse parado por algum tempo, mas as críticas não foram suficientes: e os relógios começaram a ser instalados no final de 2022. Agora, em 2024, a promessa é encher as cidades de Recife e Olinda de câmeras de vigilância durante os cortejos de carnaval.
Outros festejos pelo país também têm sido alvo de monitoramento por parte das forças policiais. É o caso de São João e festas juninas, que reúnem milhares de pessoas pelo país, principalmente no Nordeste. Pernambuco usou a tecnologia em pelo menos três eventos nos últimos anos, assim como o Rio Grande do Norte e Roraima.
Outro festejo que tem sido alvo das câmeras de reconhecimento facial é o Réveillon. A Polícia Militar do Rio de Janeiro já tinha usado a tecnologia em 2019, nas áreas de Copacabana, ao redor do estádio do Maracanã e nos aeroportos. A experiência foi marcada por um caso grave de erro de reconhecimento, que levou à detenção de uma mulher nos primeiros dias de uso das câmeras. Também praticamente não teve efeito nos indicadores criminais da região monitorada.
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Quatro anos depois, na virada de 2024, as câmeras foram responsáveis por aprisionar duas pessoas que nada deviam à justiça. Uma mulher e um homem foram detidos e passaram a virada do ano longe de seus familiares por um erro cometido pelos policiais. Em ambos os casos e, de maneira similar com o que ocorreu em 2019, os erros ocorreram pelo uso equivocado do banco de dados com os mandados de prisão em aberto.
A reincidência da Polícia Militar do Rio de Janeiro em relação ao banco de dados utilizado mostra que, além das preocupações relativas aos vieses embutidos nesses algoritmos, há riscos também no componente humano que opera essas máquinas. E, por mais que os casos sejam gravíssimos, o governo do estado segue anunciando novas expansões das câmeras de reconhecimento facial pelo estado, e com a promessa de um uso intenso durante o carnaval do Rio de Janeiro.
Até o momento, nenhuma responsabilização pelos erros ocorreu. Além disso, não houve mudanças significativas para garantir os direitos dos cidadãos. Um dos motivos é que a chamada LGPD Penal, lei que se propõe a regulamentar a captura, o tratamento e o uso de dados pessoais para fins de segurança pública, segue adormecida nos escaninhos do Congresso Nacional.
Essa situação reflete uma constante no Brasil: frequentemente, estamos atrasados na garantia dos direitos dos cidadãos. Ao mesmo tempo, avançamos rapidamente em medidas que limitam garantias fundamentais em uma democracia. Enquanto você pula carnaval pelos blocos e nos desfiles de escolas de samba pelo Brasil afora, saiba que é muito provável que esteja sendo vigiado por sistemas falhos e sem transparência. O bloco da vigilância está nas ruas e infelizmente outros foliões como a Thais podem ter sua festa estragada pelo olhar enviesado de uma câmera.
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