"Todas as políticas públicas têm efeitos de gênero", avalia Sol Prieto.

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‘Políticas feministas beneficiam a macroeconomia’, diz ex-diretora de Economia, Igualdade e Gênero da Argentina

Sol Prieto narra as conquistas da pasta que liderou no Ministério da Economia da Argentina e os desafios para as políticas de gênero sob Javier Milei.

"Todas as políticas públicas têm efeitos de gênero", avalia Sol Prieto.

No final de 2019, foi criada na Argentina a Direção Nacional de Economia, Igualdade e Gênero do Ministério da Economia. Era um espaço institucional com um desafio fundamental: pensar a economia com uma perspectiva de gênero. Além da vontade política, esse espaço, assim como outros, foi conquistado graças a uma longa tradição de lutas do movimento feminista argentino. 

Para entender o saldo gerado pela pasta nos quatro anos de gestão do ex-presidente Alberto Fernández e como a economia feminista sofrerá com o extremista de direita Javier Milei, o Intercept Brasil conversou com a socióloga e cientista política Sol Prieto. Ela fez parte da direção do órgão desde o início e, em 2022, tomou a frente da equipe, com liderança vaga desde o início do governo Milei.

Os resultados das últimas eleições representam uma mudança de paradigma e grandes desafios para a sociedade argentina, e, em consequência, para os feminismos. No marco de 40 anos ininterruptos de democracia, o Poder Executivo passa a ser encabeçado por aqueles que levaram adiante uma campanha negacionista da última ditadura civil-militar, que assolou o país entre 1976 e 1983.

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São também aqueles que negam a crise climática, os hiatos de gênero e consideram que o mercado deve ser livre e atuar sem a intervenção do estado. A nova gestão anunciou sua doutrina de choque econômico a uma população que já sofre com uma inflação interanual de 161%. Quarenta e oito horas antes de assumir, o governo anunciou uma desvalorização da moeda de 118%

A transferência para os preços será traduzida em mais inflação e salários arrasados. E, como a economia feminista nos ensinou há muitos anos, a pobreza e o endividamento afetam, na maior parte das vezes, as mulheres e a população LGBTQIA+. 

Ainda não se sabe o que será da Direção Nacional de Economia, Igualdade e Gênero do Ministério da Economia, por exemplo. Javier Milei pretende reduzir a estrutura do estado pela metade, e a exemplo da direção, muitas pastas seguem sem designação de autoridades.

Doutora em Ciências Sociais, pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas e diretora da Usina de Estudos Políticos, Trabalhistas e Sociais, Sol Prieto falou em detalhes ao Intercept sobre o trabalho realizado pela direção com a convicção de ter contribuído, junto com sua equipe, para reduzir as desigualdades de gênero em matéria econômica e social.

Leia a entrevista abaixo.

“O feminismo deve dar respostas aos desafios que a economia argentina enfrenta”, afirma Sol Prieto, ex-diretora nacional de Economia, Igualdade e Gênero do país. Foto: Governo da Argentina

Intercept Brasil – Que papel a Direção Nacional de Economia, Igualdade e Gênero desempenhou nesses quatro anos?

A direção planejou políticas em termos de distribuição de renda, emprego e economia do cuidado, temas centrais para se pensar em um modelo de desenvolvimento sustentável e com inclusão. 

Iniciativas como o Orçamento com Perspectiva de Gênero, a Renda Familiar de Emergência na pandemia, o programa “Registradas”, de incentivo à contratação de empregadas domésticas, e o Índice Criança, que mede o custo da criação de meninos e meninas, ilustram o esforço de trabalhar a política econômica sob um enfoque de gênero.

Esse enfoque não é uma invenção dos caprichos das feministas. As desigualdades de gênero estruturam a economia de todas as sociedades, e isso se deve ao modo como o trabalho doméstico é distribuído e ao trabalho de cuidado não remunerado. Em geral, as mulheres são responsáveis pela maior parte desse trabalho – na Argentina, são responsáveis por 70,2% dele. Por isso, dispõem de menos horas para se inserir no mercado de trabalho. 

Quando conseguem, isso é feito em condições piores, registrando maiores níveis de informalidade, trabalhando menos horas, em setores com salários mais baixos e ocupando postos de menor hierarquia. A crise provocada pela pandemia da covid-19 aprofundou essas desigualdades e deixou exposta a necessidade de intervir com ferramentas específicas. 

Por isso, a política econômica exige a abordagem dessas questões de maneira integral. Todas as políticas públicas têm efeitos de gênero. Quando essa perspectiva não está presente na concepção, na elaboração, na diagramação e na implementação das políticas públicas, as iniciativas que são desenvolvidas são, na realidade, alheias aos efeitos que produzem. 

Nesses quatro anos, a direção aprofundou o trabalho de transversalização da perspectiva de gênero no Ministério da Economia e nas 24 províncias argentinas. 

Em 8 de março, junto com o ex-ministro da Economia, Sergio Massa, a direção apresentou o Índice Criança. No que ele consiste e qual é sua importância?

A criança é uma parte substancial da economia. Se não existissem pessoas que chegam vivas e competentes à vida adulta, não existiriam mercados, estados, bancos, fábricas, serviços, consumidores, trabalhadores – e assim até o infinito. Toda a economia tem como base os cuidados. Mas criar filhos tem um custo, que é pago com dinheiro e tempo. No capitalismo, o tempo é monetizado. Então, o tempo dedicado a cuidar é, em última instância, dinheiro também.

Apesar de ambos os progenitores deverem contribuir com os custos diretos e de cuidado, a cultura que associa a criança principalmente às responsabilidades maternas levou ao fato de o descumprimento disso ser a norma. 

‘As desigualdades de gênero estruturam a economia de todas as sociedades’.

Em lares liderados por mães solo, muitas mulheres que reclamam a pensão alimentícia encontram diversos obstáculos relacionados ao acesso à justiça, prazos prolongados e dificuldades para captar tanto um valor de referência para estimar o custo de criação, como critérios de atualização desse custo.

Na Argentina, há 1 milhão de famílias desse tipo, onde vivem quase 2 milhões de meninos e meninas, que não recebem pensão alimentícia. Nessas casas, as crianças têm duas vezes mais probabilidade de caírem na pobreza.

Diante desse diagnóstico, a direção, em colaboração com a UNICEF, elaborou uma metodologia de estimativa, que logo foi adotada pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos, o Indec, para a criação do Índice Criança. É um valor de referência para saber quanto as famílias destinam para alimentar, vestir, garantir a habitação, transportar e cuidar de meninos, meninas e adolescentes. 

Esse indicador permite contribuir para a organização e planejamento familiar e para a gestão de cuidados. Por isso, fica útil distribuir os gastos com a criança de forma mais igualitária, especialmente nos processos de separação dos casais ou logo depois da separação. Trata-se de uma ferramenta pioneira no âmbito dos dados e estatísticas, sendo o primeiro dado oficial desse tipo a nível mundial.

A metodologia do Índice Criança sugere captar tanto o custo direto de criação como o custo indireto ou de cuidados, já que inclui dois componentes: os bens e serviços essenciais para a primeira infância, a infância e a adolescência e a valoração do tempo de cuidado de meninos e meninas.

O aumento dos valores definidos para a Cesta Criança não só assegura o acesso ao direito alimentício para muitos meninos e meninas, mas também contribui para a diminuição das desigualdades de gênero, ao reconhecer e remunerar o custo associado ao tempo de cuidado.

Mesa Federal de Políticas Econômicas com Perspectiva de Gênero na Argentina. Foto: Reprodução/Twitter

De mãos dadas com essa transversalização da perspectiva de gênero, quais foram as contribuições da direção ao Ministério da Economia no momento de elaborar e implementar políticas públicas?

Desde a sua criação, a direção se comprometeu com a igualdade, sendo regida pela seguinte máxima: o feminismo deve dar respostas aos desafios que a economia argentina enfrenta. Com esse propósito, assumimos a responsabilidade de promover um conjunto de políticas comprometidas com a igualdade de gênero, elaboradas para fortalecer a renda e o trabalho das mulheres, potencializar os setores da economia que as empregam, promover a inserção de mulheres nos setores estratégicos e fortalecer a infraestrutura e as políticas de cuidado. 

Isso implicou em mudar o processo de formulação do orçamento, para poder medir o esforço do estado em acabar com hiatos de gênero e capacitar agentes governamentais nesse sentido. Além disso, implicou em repensar o sistema fiscal, para ter uma política tributária que promovesse a presença de mulheres no mercado de trabalho. 

Também foi importante mudar os indicadores que são monitorados no ministério, tendo em conta o impacto diferenciado das políticas sobre mulheres, mas também medindo coisas novas, como a participação dos cuidados no PIB ou o custo da criação de filhos. 

‘A criança é parte substancial da economia. Se não existissem pessoas que chegam vivas e competentes à vida adulta, não existiria nada’.

Implicou em medir, por exemplo, os diferentes níveis de endividamento das famílias e contribuir para melhorar o acesso das mulheres a financiamentos, bem como para diagramar políticas de inclusão financeira e reforço de renda. 

Como resultado da implementação de muitas dessas políticas, as mulheres na Argentina alcançaram níveis recordes de atividade e de emprego – 51,5% e 48%, respectivamente, no segundo trimestre de 2023, os mais altos da história. 

A participação das mulheres no mercado de trabalho é uma condição central para o desenvolvimento sustentável de um país. Não é apenas algo que beneficia as mulheres, mas sim toda a sociedade, já que contribui para reduzir a pobreza, colabora com o crescimento sustentável e com a demanda agregada. 

Por isso, as políticas econômicas e produtivas com perspectiva de gênero são boas para a macroeconomia, não são apenas uma questão das mulheres. 

Você mencionou desafios importantes, como a recuperação econômica pós-pandemia e a elaboração de um orçamento nacional com perspectiva de gênero. Que balanço faz dessa gestão?

Trabalhamos para diminuir o impacto da crise sobre as mulheres. E também para melhorar sua renda e suas trajetórias no mercado de trabalho. Esses esforços funcionaram, porque os níveis de emprego das mulheres, mesmo as que têm filhos pequenos, superam amplamente os níveis anteriores à pandemia. 

Esta experiência foi um marco no país e um precedente a nível internacional. Segundo o relatório “Respostas dos Governos à covid-19: lições sobre a igualdade de gênero para um mundo em crise” do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e da ONU Mulheres, a resposta argentina à covid-19 foi uma das mais feministas do mundo.

Mas o resultado foi além da recuperação pós-covid e da administração [que se encerrou]. O Orçamento com Perspectiva de Gênero e nosso sistema de indicadores, por exemplo, são transformações que vieram para ficar, porque são boas políticas. O orçamento de 2023 orientou que 14,7% dos gastos sejam usados para acabar com hiatos de gênero por meio de 49 programas em 16 ministérios. Isso representou 2,9% do PIB. 

Com a primeira publicação do Índice Criança em junho, já houve decisões judiciais em 13 províncias que incorporam essa ferramenta para determinar a pensão alimentícia, com aumentos em média de 250%. Estamos falando de políticas que mudam a vida das pessoas.

Além disso, acredito que são políticas que vão durar, porque são trabalhadas em redes feministas. Uma rede muito importante nesse sentido é a Mesa Federal de Políticas Econômicas com Perspectiva de Gênero. Ela é um espaço crucial para o intercâmbio de ideias e a elaboração de políticas inclusivas em todo o país, envolvendo representantes de distintos setores e províncias. 

Nesse espaço, conseguimos incorporar o Orçamento com Perspectiva de Gênero não só a nível nacional, mas também em versões locais em 18 províncias. Foram desenvolvidos indicadores com perspectiva de gênero em 19 províncias e foram criadas ou reformuladas políticas de inclusão de mulheres em setores estratégicos em 17 províncias. 

Em seu balanço, há medidas com resultados satisfatórios para esses quatro anos de gestão. Entretanto, nesse contexto, há desafios adiante. Quais são?

Do compromisso com a igualdade na economia, surgiram quatro grandes desafios de políticas públicas: a Renda Familiar de Emergência foi um bônus de 10 mil pesos, que em um contexto de pandemia alcançou mais de 250 mil trabalhadoras domésticas – e 55,7% de quem recebeu esse benefício foram mulheres. O primeiro Orçamento com Perspectiva de Gênero e Diversidade, que destinou 15,2% do orçamento nacional para reduzir as desigualdades de gênero. “Registradas”, o primeiro subsídio para o emprego de trabalhadoras domésticas, que alcançou mais de 20 mil trabalhadoras. E, como dizia antes, o Índice Criança. 

Os desafios são complexados em um contexto no qual a opção eleitoral vencedora propõe aprofundar a precarização trabalhista, retirar o estado de contextos chave como saúde, educação e previdência social, que requerem uma atenção e ação contínuas para garantir uma verdadeira igualdade de oportunidades. 

‘A participação das mulheres no mercado de trabalho é uma condição central para o desenvolvimento sustentável de um país’.

Já mencionei antes, mas reitero porque é importante: as mulheres realizam 70,2% das tarefas de cuidados, e o custo de oportunidade que elas pagam para cuidar é muito alto. Para combater esses desafios, a resposta só pode ser com mais economia feminista, mais desenvolvimento inclusivo para as mulheres e maior presença do estado. 

Agora, bem, o partido que ganhou as eleições nega o hiato salarial e considera que a justiça social é uma aberração, então o desafio para as mulheres nessa etapa é muito profundo. 

Ou seja, não só resta uma ampla agenda pendente para avanços relacionada à inclusão de mulheres em setores estratégicos, como economia de conhecimento, mineração, hidrocarbonetos e uma ampla agenda de demandas em relação à democratização e distribuição das tarefas de cuidado, mas além disso, estamos diante de um sério risco de retrocesso. 

Em relação a isso, quero ser muito taxativa: as mulheres na Argentina não podemos nos dar ao luxo de retroceder, porque os avanços vão custar os esforços de várias gerações.

Tradução: Marina Borges

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