Em 2014, 30 pessoas espancaram, torturaram e acorrentaram num poste um garoto preto de 15 anos, suspeito de praticar furtos na zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Houve jornalista que aplaudiu a selvageria dos justiceiros em rede nacional: “a atitude dos ‘vingadores’ é até compreensível (…) O que resta ao cidadão de bem que ainda por cima foi desarmado? Se defender, é claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva”.
A jornalista concluiu a fala debochando dos “defensores dos Direitos Humanos” e sugeriu que eles “adotassem um bandido” — um tipo de deboche próprio que viria ser parte fundamental da estética bolsonarista. Foi dessa maneira asquerosa que a jornalista Rachel Sheherazade verbalizou os desejos velados do reacionarismo brasileiro. Até então havia um certo pudor em defender publicamente esse tipo de barbárie, mas os rumos do país estavam mudando.
À época, o bolsonarismo ainda não existia como corrente de política, mas já se preparava para ser a plataforma que daria legitimidade a esse desejo criminoso de fazer justiça com as próprias mãos.
Dias depois, a Polícia Civil prendeu dois dos playboys vingadores exaltados por Sheherazade e, pasmem, descobriu que os playboys tinham passagens criminais por lesão corporal, furto em condomínio e ameaça — um tipo de hipocrisia que viria ser uma das pedras fundamentais da corrente política que clama contra a criminalidade, mas que tem seus criminosos de estimação (leia-se milicianos).
Muitas coisas aconteceram de lá para cá. Bolsonaro venceu a eleição e trouxe para o jogo político uma legião de zumbis reacionários. Depois de quatro anos enfiando a faca no pescoço da democracia, Bolsonaro não consegue se reeleger, mas a legião de zumbis segue atormentando a política nacional com apoio de parte significativa da população. A “justiça com as próprias mãos” continua sendo tratada como uma resposta legítima diante dos graves problemas de segurança pública.
Nesta semana, cenas de roubos e agressões nas ruas da zona sul do Rio de Janeiro tomaram conta do noticiário e das redes sociais. Em uma das imagens, um idoso é covardemente agredido no chão por dois jovens. Como resposta, moradores de Copacabana começaram a se organizar para agredir os suspeitos de assaltarem o bairro. Essas novas milícias estão se formando a partir de grupos de Whatsapp, onde recomenda-se usar roupa preta, esconder tatuagens e levar máscaras para esconder o rosto durante as ações.
Mas não é apenas no escurinho do Whatsapp que as novas milícia estão sendo planejadas. Um famoso professor de jiu-jitsu anunciou publicamente a “intenção de organizar uma possível força-tarefa para neutralizar esses meliantes em defesa da tranquilidade do bairro”. O plano foi batizado por ele de “projeto de limpeza em Copacabana”, deixando claro o caráter higienista da ação.
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No dia seguinte, os planos da nova milícia já começaram a se concretizar nas ruas do bairro. Os primeiros suspeitos — todos pretos e pobres — começaram a ser agredidos. Sem provas, mas com muita convicção, os playboys milicianos abordaram um suspeito e, sem lhe oferecer direito de defesa, passaram a espancá-lo violentamente. Matheus Almeida, o jovem que foi condenado como assaltante pelo tribunal dos playboys no Whatsapp, é um vendedor de balas. “Sou pai de família, trabalho honestamente. Sou trabalhador, todo mundo sabe. (…) Eu saí lá de Santa Cruz, tenho uma filha, uma esposa e preciso levar alimentação para casa. Não preciso roubar nada de ninguém. Meu negócio é trabalhar”, declarou a vítima após ser espancado pelos criminosos.
Esse justiçamento organizado por milícias é um projeto bolsonarista. E, aqui, não falo no sentido figurado, mas literalmente de um projeto de lei assinado por um político bolsonarista. O deputado Anderson Moraes, do PL, quer instituir o “Programa Guardião de Segurança Pública”, que prevê a criação de grupos formados por “cidadãos praticantes de artes marciais ou ex-agentes de segurança pública ou privada” para apoiar o policiamento. O projeto não pretende apenas legalizar as milícias, mas também fazer com que o estado pague uma recompensa aos justiceiros por cada prisão feita. Seria a institucionalização definitiva da barbárie.
Para o espanto de ninguém, Anderson Moraes, esse arauto da moralidade e da segurança pública, empregou como chefe do seu gabinete um policial civil que foi preso em uma operação que investigou policiais suspeitos de tráfico de drogas, roubo e extorsão. Segundo o MPRJ, ele fazia parte de um grupo que traficava drogas no Rio de Janeiro e em São Paulo e mantinha ligações com o Comando Vermelho e o PCC. Este cidadão de bem já havia sido preso em 2000 por suspeitas de extorquir dinheiro do traficante Fernandinho Beira-Mar.
Sim, o deputado bolsonarista que quer legalizar as milícias já teve como chefe de gabinete um miliciano com ficha corrida. Sabe quem também foi agraciada com um emprego do deputado? Rogéria Bolsonaro, a ex-mulher de Jair Bolsonaro e mãe de Eduardo, Carlos e Flávio Bolsonaro. Está tudo em casa. Por falar em Flávio, lembremos que ele foi o pioneiro em tentar legalizar o trabalho das milícias. Em 2007, ele tentou emplacar o mesmo projeto quando foi deputado estadual. As semelhanças não param por aí. Como esquecer que Flávio empregou em seu gabinete a mãe e a esposa do ex-policial Adriano da Nóbrega, que foi o chefão da milícia Escritório do Crime?
Os bolsonaristas cometeram uma série de crimes para “salvar” o Brasil. É a mesma lógica que faz os playboys de Copacabana cometerem crimes em nome da segurança pública.
É compreensível o sentimento de revolta gerado pelas cenas de um senhor de idade sendo assaltado e agredido violentamente. Todos nós compartilhamos dele. Mas trata-se de um problema social complexo que demanda soluções complexas. O bolsonarismo fornece soluções rápidas, fáceis e fora da lei.
Nós vimos esse espírito justiceiro não só no bolsonarismo, mas também no seu subproduto mais famoso: o lavajatismo, que contou com o apoio maciço de muitas sheherazades da grande imprensa brasileira. Foi esse mesmo espírito que mobilizou o golpismo que culminou com a invasão dos prédios dos Três Poderes no dia 8 de janeiro. Movidos por suas nobres razões, os bolsonaristas não viram problema em cometer uma série de crimes graves para “salvar” o Brasil da posse de Lula. É a mesmíssima lógica torta que faz os playboys de Copacabana cometerem crimes em nome da segurança pública. É a normalização da barbárie, em que os problemas são resolvidos exclusivamente pelo exercício arbitrário das razões dos indivíduos, sem a mediação do Estado.
O bolsonarismo é a plataforma cultural que soube canalizar o justo sentimento de revolta da população e ofereceu soluções que passam pela destruição do pacto social em nome de um bem maior. É fundamental para a preservação do Estado democrático de direito que os playboys de Copacabana sejam punidos e tratados pela sociedade como criminosos. Ou estancamos a barbárie ou em breve voltaremos às cavernas.
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