João Filho

Foram 120 horas de apagão em São Paulo para você entender que o discurso liberal não funciona

O apagão em São Paulo afetou escolas, hospitais e casas. A Enel demorou dias para agir, mostrando a verdadeira face do discurso privatista de Tarcísio de Freitas.

Ilustração: Intercept Brasil

Ilustração: Intercept Brasil

Um apagão deixou mais de duas milhões de pessoas sem energia na Grande São Paulo na última semana. Escolas, hospitais e estabelecimentos comerciais tiveram que fechar as portas. Moradores precisaram jogar comida, que ficou estragada, no lixo. Pessoas com diabetes perderam insulina por falta de refrigeração. O caos se instalou na maior metrópole do país. Quase uma semana depois, ainda havia 11 mil  imóveis sem energia. O restabelecimento da energia foi feito a passos de tartaruga, gerando revolta na população que paga caro por ela.

O governador, o prefeito e os diretores da empresa responsável por gerir a energia em São Paulo, a Enel, começaram um jogo de empurra-empurra da responsabilidade pelo blecaute de mais de 120 horas. Nas entrevistas, todos enrolaram e ninguém deu uma resposta satisfatória para a população. O governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos,  disse que “o grande vilão desse episódio foi a questão arbórea”, passando pano para a Enel e indiretamente culpando a prefeitura pelo mau serviço de zeladoria que permitiu que centenas de árvores caíssem sobre os fios da rede elétrica. O prefeito Ricardo Nunes, do MDB, por sua vez, culpou a Enel pela demora no restabelecimento de energia. Já a própria Enel seguiu a linha de Tarcísio e culpou os eventos climáticos inesperados

Todos têm sua parcela de responsabilidade pelo caos, mas a maior responsável, sem dúvidas, foi a venda da estatal Eletropaulo para a multinacional italiana. O prefeito e o governador, diga-se, são entusiastas da agenda privatista.

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Quando uma estatal é colocada à venda, o argumento central dos defensores da privatização é de que haverá maior eficiência no serviço prestado e menor custo para o consumidor. Trata-se de uma falácia que o tempo trata de refutar. Invariavelmente ocorre justamente o contrário, exemplos não faltam. 

Desde que a multinacional italiana adquiriu a Eletropaulo, em 2018, seguiu-se o roteiro conhecido das privatizações: precarização do trabalho, terceirização dos serviços e demissões. É o que acontece com toda empresa que passa a andar a reboque dos lucros de acionistas e não mais dos interesses da população. 

Quem mora em São Paulo sabe que ficar sem luz em casa não é um evento tão raro. Nos últimos anos tem acontecido com uma frequência acima do aceitável. E não é preciso cair um temporal como o da última semana para que isso aconteça. Para se ter uma ideia, só neste ano eu fiquei sem energia na minha casa por quatro  vezes, sendo que em uma delas fiquei quase 48 horas com a geladeira desligada. Não houve temporal e nenhuma árvore caiu no meu bairro. 

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Depois da compra da Eletropaulo, a Enel reduziu em 36% o número de funcionários e vem aumentando o preço da tarifa para o consumidor. Essa redução no quadro de funcionários ocorreu concomitantemente com o aumento de 7% no número de clientes só na região metropolitana.  Ou seja, para diminuir os custos com salários — houve um corte de 40% na folha de pagamento — a empresa italiana demitiu funcionários justamente quando o volume de serviço aumentava. Enquanto precarizava o trabalho e o serviço, a Enel viu seus lucros dobrarem em quatro anos: passou de R$ 777 milhões para R$ 1,4 bilhão. O caos dessa semana estava anunciado, mas o lucro da Enel garantido. 

A empresa italiana se defende dizendo que, após a privatização, houve um aumento de investimento. A Enel afirma que um “volume recorde de investimento está sendo destinado, principalmente, à digitalização e automação da rede elétrica”. Está claro que esses investimentos não têm refletido em melhora da prestação do serviço, mas têm ajudado a maximizar os seus lucros. Um exemplo de investimento que refletiria diretamente diretamente numa melhora do serviço seria o aterramento dos cabos elétricos. Como isso é caro, trabalhoso e não aumenta o lucro dos acionistas, jamais irá acontecer por iniciativa da empresa. 

Enquanto os paulistanos contabilizavam os prejuízos decorrentes do apagão, Ricardo Nunes desfilava na Fórmula 1 e assistia às lutas de MMA. Mas, no dia seguinte, o prefeito apareceu com uma proposta aos paulistanos: a criação de uma taxa opcional para quem quiser o aterramento dos fios da rede elétrica da sua rua. Seria uma espécie de vaquinha em conjunto com a prefeitura para bancar um serviço que a Enel se recusa a fazer. Trata-se do mais perfeito exemplo do clichê neoliberal apontado por Celso Furtado: “privatize-se os lucros, socialize-se os prejuízos”. 

Enquanto a população sofre, os executivos da empresa italiana estão de boa. O presidente da Enel Brasil, Nicola Cotugno, afirmou que a empresa não tem motivo para se desculpar e que fez “um trabalho incrível” para restabelecer o fornecimento de energia em São Paulo. Esse é o nível da cara de pau dos empresários. 

Não há porque a multinacional se preocupar com o apagão no Brasil. Com sede em Roma, ela tem garantido os lucros dos seus investidores, que é composto por fundos e seguradoras americanas, europeias e pelo governo italiano, que detém 23,6% de participação. Ou seja, um governo estrangeiro tem lucrado com a privatização de uma empresa pública brasileira. E não há nenhuma novidade nisso. Em 2021, a Companhia Estadual de Transmissão de Energia Elétrica, a CEEE-T,  do Rio Grande do Sul foi comprada pela CPFL Energia –  empresa que é controlada por uma estatal chinesa. É o capitalismo brasileiro gerando lucros para o comunismo chinês.

Não tenho urticária com privatizações em si. Há setores que podem ser privatizados sem problemas, mas a história recente do país prova que serviços essenciais como transporte, saúde, educação, saneamento, abastecimento de água e energia devem ficar sob as rédeas do estado. São empresas que podem eventualmente absorver algum prejuízo para atender o interesse público, enquanto empresas privadas preferem precarizar o serviço a perder dinheiro. Não se trata de uma questão puramente ideológica, mas de lógica básica. Entre deixar milhões de pessoas vários dias sem luz e preservar os lucros da empresa, não há dúvidas de qual será a escolha. A sanha privatista pretende colocar setores estratégicos para o país sob a lógica do capital, e não do interesse público. Segundo essa lógica, é financeiramente vantajoso deixar a população vários dias sem luz. 

O governador Tarcíso de Freitas, que demonstrou toda sua masculinidade bolsonarista ao bater violentamente o martelo no leilão de um trecho do Rodoanel,  quer agora privatizar de vez a Sabesp e todas as linhas do Metrô e da CPTM. Já sabemos quais serão as cenas dos próximos capítulos deste roteiro manjado. 

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