O número de operações com apreensão de munição no Rio de Janeiro despencou 77% em 2021 na comparação com o ano anterior – o menor desde 2014, segundo dados obtidos com exclusividade pelo Intercept. Em áreas de milícias a redução chega a 97%.
Essa queda em 2021 só ocorreu no número de operações que apreenderam munições. No primeiro ano da pandemia, em 2020, o total de operações com apreensão de munição tiveram queda média de 21%, o que poderia ser justificável pela crise de saúde pública ou até pelas restrições a operações policiais no período, determinadas pelo STF por meio da ADPF 635.
Os dados mostram ainda que a apreensão de munições importadas caiu mais do que a apreensão de munições nacionais.
Polícia Civil e ISP não explicam queda
A Polícia Civil e o Instituto de Segurança Pública fizeram um jogo de empurra quando pedimos que explicassem os dados e a causa da queda.
Questionada sobre por que as apreensões no Rio caíram desde 2017, a Polícia Civil do Rio pediu que procurássemos o Instituto de Segurança Pública, o ISP. Por sua vez, o ISP orientou a procurar a Polícia Civil, pois não poderia comentar a razão de quedas tão expressivas. Por e-mail, mais tarde, a Polícia Civil acabou respondendo que “tanto as apreensões de armas de fogo quanto de munição no estado mantiveram-se em patamar relativamente regular” – destoando completamente das informações da base de dados fornecida pela própria Polícia via Lei de Acesso à Informação, a LAI. O pedido foi feito em parceria com a Fiquem Sabendo.
A Polícia disse ainda que, em relação às apreensões de munição, “o número de unidades apreendidas em 2021 (110.033) foi superior ao registrado no período anterior (109.308)”. Esse número, porém, é impossível de checar.
Por motivos nunca explicados, as bases de dados detalhadas enviadas pela divisão de Transparência da Polícia Civil não informam quantas munições foram apreendidas. Os dados são vinculados ao número do procedimento que apreendeu a mercadoria. Sem isso, não saberíamos que em 2019 houve 7.337 operações que apreenderam munições no Estado inteiro, caindo para 5.924 em 2020 e 1.358 em 2021.
Um levantamento feito pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense, o GENI-UFF, aponta para conclusões semelhantes. Os dados deles mostram que o total de operações no 25º Distrito Policial, no Engenho Novo, caiu 92%, entre 2017 e 2021. No 40º DP, a queda foi de 81% no mesmo período. Analisamos também a base detalhada da própria polícia.
Essa base de dados foi analisada por dois especialistas, que apontaram a discrepância. Foi então feito outro pedido de dados via LAI, para que os dados fossem ainda mais descritivos – o que nos foi em parte negado e, em parte, ignorado.
O aumento do volume de munições apreendidas declarado pela secretaria, se houve, poderia até estar concentrado em poucos casos, mas, como as unidades não constam da base fornecida, é impossível conferir a informação.
A Polícia Civil divulga os dados de munições separadas por tipo e marca apreendida em uma operação, não importando se foram coletados dois ou dois mil cartuchos de cada, o que potencialmente abre espaço para ocultar eventuais desvios. Apesar dos recursos já apresentados, a Secretaria de Estado de Polícia Civil se recusou a detalhar os seus critérios.
Queda de operações em área de milícia
A partir dos dados sobre apreensão de munições e de operações policiais, traçamos um mapa da capital que mostra, por área de abrangência de delegacias, onde mais caíram as apreensões em 2021. Quanto mais escuro for o tom de vermelho ou roxo, maior a queda proporcional nas operações com apreensão de munição. A análise por zonas geográficas e circunscrições policiais mostra detalhes ainda mais intrigantes.
Entre 2014 e 2019, a delegacia registrou uma média de 65 operações com apreensões de munição por ano. Em 2020, foram 33. Em 2021, houve apenas uma operação. A Cidade da Polícia, espaço que abriga mais de 10 delegacias especializadas, a Coordenadoria de Recursos Especiais, a CORE, e a Coordenadoria de Fiscalização de Armas e Explosivos, a CFAE, cinco órgãos da chefia de Polícia Civil e centenas agentes ficam nessa área, no bairro do Jacarezinho.
Na 28ª DP, na zona oeste, a média entre 2014 e 2020 eram 42 operações com apreensão de munição por ano. Em 2021, foram registradas apenas 4 operações com apreensão de munições. – uma queda de 96,6%. A área está em disputa entre traficantes e milicianos há anos, mas aparentemente isso não resulta em mais apreensões – pelo contrário.
Foi na zona oeste que recentemente houve uma operação policial contra lavagem de dinheiro da milícia e que apreendeu, entre bens e dinheiro, muitas munições da CBC.
Você pode verificar a lista de operações com apreensão de munições por circunscrição policial na tabela abaixo:
CBC é a marca de munição mais encontrada
Dentre as marcas identificadas nas apreensões, a principal é a Companhia Brasileira de Cartuchos, a CBC. Em 2016, cartuchos da CBC de vários calibres foram apreendidos em 6,4 mil operações (78%). Em 2021, a CBC foi encontrada em 1.127 operações (83%), e outras 5.145 vieram em 2022 (84%).
As cinco marcas importadas mais comumente apreendidas foram Winchester (EUA), Aguila (México), PMC (Coreia do Sul), Blazer (EUA) e FC (EUA). As três primeiras estiveram presentes em mais de 500 apreensões na maior parte dos anos entre 2014 e 2019. Em 2021, só a Winchester apareceu em mais de 10 apreensões. Em 2022, só a Blazer foi apreendida em 40 operações. As munições fabricadas nos EUA são, há muitos anos, as mais apreendidas dentre as fabricadas fora do país.
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“Até 2019 calibres de grande interesse para o crime como 9mm, .40 e .45 eram de uso restrito e com uso de categorias limitadas. Estes calibres foram abertos para aquisição por qualquer civil. Os registrados na PF podiam comprar até 200 munições e como CAC, até 5 mil por arma. Para munições de fuzil, houve autorização para CACs comprarem até mil por ano por arma. Todas estas categorias acessam munições da CBC”, disse Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, ao explicar que o crime passou a ter mais opções para acessar munições de seu interesse, e que antes dependiam de fontes externas.
“Parece natural e esperado que a participação quase hegemônica da CBC fosse subir após estas medidas irresponsáveis tomadas por Bolsonaro e Exército Brasileiro”, reiterou.
Para especialistas em segurança pública, a diminuição nas apreensões pode ter relação direta com a flexibilização do acesso a armas e munições promovida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, que também permitiu a compra de pólvora para recargas caseiras de munição, ao passo em que não investiu em mecanismos de fiscalização, controle e investigação.
Na recarga, hoje, pode-se reutilizar uma cápsula depois que o projétil foi deflagrado, ou seja, depois que o tiro já foi dado. Assim, é possível preencher a cápsula novamente com pólvora e torná-la apta para um novo disparo. Tudo isso sem ser rastreável. A dinâmica de compra e venda desses equipamentos foi alterada, tanto no mercado legal quanto na clandestinidade.
Decreto assinado por Bolsonaro permitiu que qualquer portador de licença de Caçadores, Atiradores e Colecionadores, o CAC, pudesse ser dono de até 60 armas, sendo até 30 delas de uso restrito, com mil munições por cada arma comum e 5 mil por calibre permitido. Para se ter uma dimensão, Felipe Wu, brasileiro medalhista de prata no tiro esportivo nas Olimpíadas de 2016, dá, em média, 160 mil tiros por ano em seus treinamentos. Já um atirador esportivo, mesmo iniciante, que tenha 30 armas restritas e 30 de uso comum poderia comprar, a cada ano, 180 mil munições novas. E neste limite não estão incluídas as munições recarregadas.
Isso mudou recentemente com a assinatura de um novo decreto que estabeleceu que CACs poderão adquirir até 6 armas e 3.000 munições por ano. A PF e o Exército podem ainda autorizar a compra de até duas armas de uso restrito.
Para Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, a política de segurança iniciada pelo ex-governador Wilson Witzel em 2018 focava mais em gerar imagens cinematográficas do que em resultados, priorizando operações e confrontos midiáticos e deixando de lado a investigação e estratégia.
A política de Witzel, que também extinguiu a Secretaria de Segurança do Rio, foi seguida por seu sucessor, o atual governador Cláudio Castro, e mostra que a estratégia não rende bons números. “As apreensões mais vultosas, tanto em termos de quantidade, quanto em termos de itens mais perigosos, em geral, acontecem sem confronto, sem mortes e com prisões, mas demandam uso de inteligência”, enfatizou.
“Com a possibilidade de compra de munições de fuzis e outras armas antes de calibre restrito ou proibidas a civis, por milhares de CAC, além da disseminação da autorização de máquinas de recarga, o crime organizado já não precisa buscar estes itens fora do país, que demandam percorrer longas distâncias”, explicou Langeani.
Além de pulverizar fontes de fornecimento local, essa facilitação reduziu oportunidades para que a polícia realize apreensões e identifique a origem do material. Langeani exemplificou: um carro que ia ao Paraguai comprar munições e depois retornava ao Rio de Janeiro passava por dezenas de postos de polícia, arriscando ser revistado a cada trecho. Mas, se a munição está sendo comprada, fabricada ou recarregada no estado, há muito menos deslocamento e, portanto, menos possibilidades de controle policial.
É possível preencher a cápsula novamente com pólvora e torná-la apta para um novo disparo. Tudo isso sem ser rastreável.
Cartuchos desviados ou usados, assim, tornam-se valiosos nesse mercado paralelo. Essa reciclagem adiciona uma camada extra de complexidade à já baixa elucidação de crimes no Rio, uma vez que os cartuchos recarregados não são rastreáveis. Não há como saber sua origem, quem os vendeu ou comprou. Em caso de mau uso, os investigadores ficam de mãos atadas. Na época em que foi liberada a compra de até 20 kgs de pólvora por CAC, em 2019, especialistas alertaram que o governo abria uma brecha para a criação de fábricas caseiras de munição.
O próprio Exército, responsável por fiscalizar o setor de armas e munições, já afirmou publicamente que não sabe quantas armas estão nas ruas, muito menos onde. Essas falhas no controle se repetem em relação a clubes de tiro e até mesmo dentro das próprias Forças Armadas. Documentos mostram que muitos clubes funcionam sem alvará e sem o devido monitoramento de frequentadores. Esse é um ponto importante, já que os estabelecimentos têm permissão para vender munição recarregada.
Soma-se à facilitação do acesso a cargas mais letais, e em maiores quantidades, a decisão do governo Bolsonaro de revogar mecanismos de controle, como rastreio e marcação de munições, cruciais para a elucidação de crimes.
Para o policial federal Roberto Uchôa, ex-chefe do Sistema Nacional de Armas da Polícia Federal, o Sinarm, no Norte e Noroeste Fluminense, o mercado de munições requer tanta atenção quanto o de armas. “Armas sem munição não servem para nada. Quando deixamos essa parte nas sombras, estamos facilitando os desvios para o mercado ilegal”.
O policial explicou que o mercado para aquisição de munições se ampliou muito em função do aumento de pessoas registradas como CACs. “Nunca se vendeu tanta munição no país e isso, claro, tem reflexos também no mercado ilegal”, afirmou ele, que disse ter recebido a informação de que a escassez de vários insumos para venda gerou uma corrida por produtos como armas, munições e pólvora. Isso foi verificado no fim de 2022, quando os CACs temiam que Lula promovesse um “revogaço” de normas bolsonaristas sobre armas, o que de fato ocorreu.
Uchôa disse que faltou pólvora no mercado até para a Companhia Brasileira de Cartuchos, a CBC. “Nenhuma loja no país tem pólvora para munição de fuzil. Raríssimas têm para pistola. Procurei em todas as lojas que vendem online e em todas as físicas”, disse.
Proibidos de comercializar munições, os CACs aproveitam a brecha da inoperância do Exército e montam fábricas clandestinas de munição. Algumas investigações em curso mostram que eles recarregam munição até para traficantes.
Polícia não identifica munições
A maioria absoluta das apreensões de munições não identifica a quem elas pertenciam antes.
O relatório final da CPI das Armas apontou, em 2018, que o desvio de munições e armas das polícias civil, militar e de empresas de segurança privada era um problema grave.
“A comissão encontrou ainda sistemas precários de controle de armamentos, com registros feitos em cadernos simples, e constatou o baixo índice de conclusão dos inquéritos sobre os sumiços pelo Ministério Público Estadual, que não chegou a 3% do total de casos”, apontou o relatório. Pouco ou nada mudou.
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