Em Brasília, o relógio marcava 19h de 23 de março de 2017, quando o major do Exército Leonardo Machado de Azevedo enviou uma série de mensagens, em tom de apelo, a um colega de farda. O major pressionava o tenente Marlon Daflon a mudar o depoimento que daria no dia seguinte à justiça militar.
“Só fala que recebeu os Air soft, por favor; Só isso, já arredondei tudo; […] Cara, não faz isso comigo. Só diz que recebeu material e que era Air soft, só isso. Já arredondei tudo (…] O Consoni vai confirmar; Cara, Não faz isso comigo”.
O tenente Marlon Daflon se negou a mentir: “O Sr me desculpa mas não vou mentir, não”.
A aflição do major tinha motivo. Ele era investigado pelos crimes de peculato, falsidade ideológica e ameaça. O Ministério Público Militar o denunciou por desviar armas de fogo apreendidas usando o próprio sistema do Exército, com objetivo de ficar com elas ou repassá-las. As estripulias de Azevedo deram dor de cabeça a oficiais que compuseram a base do governo Bolsonaro.
O Intercept teve acesso aos processos que correm no Superior Tribunal Militar, o STM, e no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, o TJDFT, nos quais o major foi condenado por inserir dados de armas sem origem comprovada para benefício próprio ou de terceiros no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas, o SIGMA. A defesa recorreu da condenação e o processo ainda corre.
Existem hoje no Brasil mais de 800 mil CACs, sigla para colecionadores, atiradores desportivos e caçadores. Essas pessoas e suas respectivas armas estão registradas no SIGMA, que vem sendo violado e fraudado ao longo dos anos, conforme revelamos ao longo desta reportagem. O sistema não foi remodelado para receber tamanha quantidade de novas informações, tornando-se frágil para a inserção de dados falsos.
A ação que correu no STM está vinculada a um processo no TJDFT, no qual Azevedo foi condenado por posse irregular de munição de uso restrito. Em 2017 foram apreendidos em sua casa mais de 1.200 munições e 7 armas – 4 delas sem registro em seu nome.
O Consoni a que ele se refere na mensagem mencionada acima é o capitão Luis Eduardo Consoni, acusado de falsidade ideológica no mesmo processo que o Major Azevedo. Ele foi absolvido, enquanto Azevedo foi considerado culpado por três dos cinco juízes votantes da Corte Militar.
Major Azevedo pediu para ser indicado para intermediar a doação de materiais apreendidos pela Receita Federal ao Exército. Em 2016, sua vontade foi atendida. Segundo o processo, “em seis oportunidades distintas, o acusado foi indicado como sendo a pessoa responsável para tratar da destinação de materiais apreendidos pela Receita Federal” ao Comando da 11° RM.
Isso significa que, a partir de 2016, o Major era a pessoa responsável por dar destino ao que fosse apreendido no Aeroporto Internacional de Brasília, o maior polo de voos domésticos do país e um dos maiores da América Latina.
O material apreendido no aeroporto deveria ser recebido e, em seguida, entregue às unidades competentes da 11.ª Região Militar, que abrange o Distrito Federal, Goiás e o Triângulo Mineiro. Mas isso não era o que ocorria com Azevedo lá. Os documentos mostram que “vários materiais arrecadados foram desviados pelo acusado em proveito próprio, inclusive vários produtos controlados pelo Exército – PCE (armamentos e munições)”.
Ele realizava, “sem o devido processo legal, cadastros de arma sem origem em seu próprio nome e em nome de terceiros no SIGMA”. A defesa do major chegou a alegar que os materiais ilegais encontrados com Azevedo “eram utilizados em atividade de tiro desportivo e adestramento como militar”, já que ele era CAC, Oficial do Exército e instrutor de tiro. Ainda assim, isso não justificaria o desvio do material, uma vez que toda carga deveria ser registrada.
Nos nove meses em que atuou no setor de armas, Azevedo usou o cargo para montar um arsenal particular. O que era uma “rolha” –, gíria militar para tarefas administrativas burocráticas – como inserir dados em um sistema –, ele transformou uma mina de ouro. A denúncia do MPM mostra que o major, repetidas vezes, inseriu informações falsas no SIGMA para registrar armas em seu nome e as repassar.
Como funcionava o esquema
O gaúcho Leonardo Machado de Azevedo, 46 anos, ingressou na Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman, em 1994. Serviu na Presidência da República, no Comando do Exército, e esteve como Adjunto ao Serviço de Fiscalização de Produtos Controlados, o SFPC, em Brasília, entre janeiro e outubro de 2016.
O SFPC é considerado um departamento sensível das Forças Armadas. O órgão concede os registros de armas de fogo e munições, os certificados para os CACs e as transferências de propriedade e destruição de armamentos. É onde deveria haver fiscalização e controle. Todas essas informações relacionadas ao registro de armas e munições são feitas por meio do SIGMA. Azevedo era um dos responsáveis por inserir dados neste sistema.
O setor onde Leonardo Machado de Azevedo trabalhou é responsável por receber e destruir armamentos. Militares interessados em se desfazer de seu acervo pessoal enviam as peças para o SFPC. As armas apreendidas pela Receita Federal também são enviadas para serem destruídas lá. Azevedo viu uma brecha. Começou a receber essas armas pessoalmente, a forjar a destruição e a desviá-las.
Com o seu login e senha pessoais, ele incluiu pistolas, revólveres, fuzis e espingardas em seu próprio nome, de acordo com os documentos judiciais. É como se o responsável por manejar folhas de pagamento de uma empresa aumentasse o próprio salário manipulando uma planilha.
O esquema foi descoberto porque um tenente que também tinha acesso ao SIGMA percebeu os lançamentos indevidos e avisou o comando. O tenente pediu proteção após a denúncia, já que acusava um superior hierárquico. No fim de 2016, um coronel chamou o major Azevedo à sala particular. Queria questioná-lo sobre o cadastramento irregular de armas no SIGMA. Sentados à mesa, a resposta surpreendeu o Ministério Público Militar. Azevedo disse que não concordava com o Estatuto do Desarmamento e que “via os lançamentos no Sistema como oportunidade para regularizar as armas de que tinha a posse, e, também, de outros militares”, segundo consta na denúncia. O caso foi levado ao Alto Comando do Exército.
Uma das armas esquentadas por Azevedo, uma Glock, foi comprada em uma viagem que fez para o exterior, quando estava servindo à Presidência da República, em data não mencionada nos processos.
Da Receita para as mãos do major
A Chefia de Estado Maior da 11.ª Região Militar apurou os fatos e a punição dada ao major por falsear dados e desviar armas foi a de “repreensão”, pena considerada leve. Repreensão é apenas uma bronca, que sai da ficha do militar em cinco anos. As punições disciplinares são advertência, repreensão, detenção e prisão – em ordem de peso e gravidade. O militar também foi afastado de sua função na SFPC e da Receita. Foi determinado pela Justiça Militar que ele mantivesse distância de 200 metros desses locais e fosse proibido de manter contato com as pessoas que lá trabalhavam.
Logo após essa apuração foi instaurado um inquérito para investigar o sumiço de um pacote de armas da marca norte-americana Sig Sauer, apreendido pela Receita Federal, e que deveria ter sido enviado ao departamento de Produtos Controlados para destruição. Eram seis pistolas e quatro fuzis. Os armamentos foram buscados pelo próprio Azevedo na Receita. A ordem era entregá-las a um aspirante, que cobria as férias de um tenente e era o responsável por destruí-las. Mas a destruição não ocorreu.
Quanto o caso estourou, o major tentou coagir o tenente que estava de férias. Ele queria que o colega mentisse em depoimento, dizendo que recebera as armas e que elas eram de airsoft. Mas o tenente não as recebeu, porque o pacote parou antes nas mãos de Azevedo.
O militar aspirante de serviço temporário, no primeiro momento, até afirmou haver destruído as armas. Mas, no dia seguinte, procurou seu superior com uma nova versão. Disse ter sido forçado a mentir e contou que foi ameaçado por Azevedo, caso admitisse que não recebeu as armas.
Não há, nos documentos públicos da Justiça Militar, informações sobre o paradeiro das armas apreendidas pela Receita Federal.
Negócios espúrios
As fraudes no SIGMA acontecem há pelo menos 13 anos, como mostram documentos acessados pelo Intercept. Um dos inquéritos policiais militares sobre fraudes no SIGMA é de 2010 e aponta erros primários, como compartilhamento de senhas por uma equipe inteira.
A investigação do MPM mostra que um atirador esportivo depositou um cheque de R$ 700 na conta bancária de um soldado. Com acesso ao sistema, o militar autorizou a transferência de quatro armas para o acervo de quem o subornou: uma Smith & Wesson, calibre .44 MAG; duas pistolas IMBEL, .380; e uma pistola IMBEL, .45.
O problema é que o inquérito policial militar instaurado à época constatou que o login e a senha no SIGMA utilizados para transferir as armas eram de outro soldado. Ouvido em interrogatório judicial, o soldado que recebeu dinheiro para inserir informações alegou que as senhas do SIGMA eram compartilhadas.
A sentença da Justiça Militar à época foi dura, ressaltando que “a prática dos crimes de corrupção” é “retrato da ‘desorganização’ administrativa” deste setor do Exército. O juiz Hugo Magalhães Gaioso reforçou ainda que são inúmeros os processos criminais que caracterizam o setor “como um verdadeiro ‘balcão de negócios espúrios’, envolvendo particularmente militares do setor”.
Outro caso
O “balcão de negócios espúrios” do Exército é amplo, e o problema é conhecido pelos militares e pela Justiça Militar. Caso parecido com o do Major Leonardo Machado de Azevedo, condenado por fraudar o sistema de registro de armas do Exército e esquentar armas e munições, aconteceu na cidade de Bauru, interior de São Paulo, em 2016, na sede do Serviço de Fiscalização de Produtos Controlados da 2ª Região Militar – 6ª Circunscrição de Serviço Militar.
Na unidade militar do interior paulista, que engloba 161 municípios do oeste paulista, um sargento da reserva remunerada, prestador de serviços para o Exército, dizia acelerar processos para CACs. O “serviço” incluía diversos lançamentos irregulares no SIGMA, com login próprio e de colegas, como fazia Azevedo, em Brasília. Questionado em depoimento sobre quantas informações irregulares lançou no SIGMA, Ozeas Gomes Correia não soube enumerar. Apenas admitiu que foi “bastante”.
Em 2016, o sargento Correia recebeu, em oito depósitos, R$ 4.950,00 de
um médico do interior paulista, para apostilar armas em seu acervo de CAC. O sargento prestou o serviço para o médico-atirador entre abril e maio. Ele usou seu próprio login no sistema SIGMA para expedir seis registros de armas de fogo em nome do médico, além de alterações de dados e transferência de armas.
No mesmo ano, o sargento repetiu a venda de serviços ilegais para uma despachante profissional, e ainda ofereceu a ela uma mala direta de dados pessoais de CACs. Despachante, neste contexto, é o profissional que realiza os trâmites legais – e quase sempre burocráticos – para aqueles que desejam ter posse e porte de arma de fogo. Vender ou repassar dados sigilosos do Exército para alguém externo à instituição é crime, que pode ser enquadrado no artigo 308 do Código Penal Militar, corrupção passiva, com pena de reclusão de dois a oito anos.
O réu também foi perguntado se sabia que poderia estar conferindo porte de arma ao crime organizado. Respondeu que não, pois sempre executava tarefas para atiradores esportivos, mas caiu em contradição quando admitiu saber que criminosos usam o registro de CAC para obter armas de fogo.
O sargento Correia foi condenado a três anos e um mês de reclusão no caso da venda de dados para a despachante, e dois anos e oito meses de reclusão no caso da venda de dados para o médico do interior paulista. Ele responde a ao menos 6 processos semelhantes, dos quais, quatro já foram julgados na primeira instância e estão em grau de recurso no STM.
Já a despachante, recebeu pena de um ano e seis meses de reclusão, e o médico um ano e quatro meses.
Sistema frágil
Ainda que as armas circulassem com facilidade pelas fronteiras secas, portos e rodovias que ligam estados, o Brasil virou definitivamente o país da pólvora durante o governo Bolsonaro, especialmente na categoria dos CACs.
Em teoria, esse grupo adquire armas de fogo para uso recreativo ou esportivo. Mas não nos tornamos uma potência olímpica. Viramos, sim, uma pátria armada: em 2018, eram 117.467 mil CACs registrados. Em 2022, o país passou a ter 813.188 CACs. Em média, foram 872 novos cadastros por dia. Clubes de tiro se espalharam, inclusive dentro da Amazônia Legal. A quantidade de colecionadores e atiradores esportivos ativos no Brasil hoje é maior do que a população de algumas capitais do país, como Cuiabá, Vitória e Rio Branco.
Não à toa, o Exército disse não saber o tamanho do arsenal de CACs em cada cidade brasileira. O órgão responsável pelos registros e pela fiscalização do setor não sabe quantas são e em que mãos estão as mais de um milhão de armas em poder dos CACs.
Em entrevista ao Intercept, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, ministra do Superior Tribunal Militar, confirmou que os processos por fraudes no banco de armas do Exército aumentaram a partir de 2019, quando houve uma explosão de novos registros de colecionadores. “Realmente aumentou de 2019 para cá, e muitos deles nós punimos com pena de prisão. Esse crime é verificado de muitas maneiras, como corrupção – passiva e ativa – e falsidade ideológica. Depende muito da denúncia. Mas, normalmente, elas vêm com a corrupção. Corrupção para agilizar, ou conceder determinadas armas que não podem ser de domínio da sociedade civil”, comentou a ministra.
Procurado pela reportagem, Leonardo Machado de Azevedo decidiu não se pronunciar oficialmente por “orientação dos advogados”, mas respondeu que o intuito da reportagem seria alimentar “a repercussão que pode causar” e não “a investigação ou a busca pela verdade”.
A defesa de Luís Eduardo Consoni não retornou os contatos. Ozeas Gomes Correa não foi localizado.
A reportagem procurou o Exército Brasileiro; questionamos se o SIGMA possui ferramentas que detectam possíveis irregularidades e se o sistema hoje proíbe que servidores cadastrem armas de fogo no próprio nome. O Exército não respondeu diretamente.
Em nota, o Exército afirmou que “segue as leis e decretos que regulam os critérios de aquisição”, que “as irregularidades cometidas são apuradas nos critérios da lei; se considerados crimes militares são encaminhados para Justiça Militar”, e que “esclarecimentos a respeito do assunto serão prestados exclusivamente ao Ministério Público Militar”.
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