João Filho

Junho de 2013: jornadas são um marco para a direita, mas jamais foram derrota da esquerda

Protestos ajudaram a colocar a extrema-direita nas ruas do Brasil, mas não criaram esse movimento – além do mais, pautas estudantis, de negros, feministas e LGBTQIA+ ganharam protagonismo a partir dessas manifestações.

Ilustração: Intercept Brasil

Ilustração: Intercept Brasil

Passados 10 anos, as Jornadas de Junho de 2013 continuam sendo tema de análises e debates na política e na academia. É um tema controverso, que gerou divergências importantes, principalmente dentro da esquerda. 

O Movimento Passe Livre, o MPL, formado por jovens estudantes de esquerda, iniciou uma série de manifestações em São Paulo contra o aumento da tarifa de ônibus da cidade, que à época tinha Fernando Haddad como prefeito. Os primeiros protestos começaram pequenos e movidos por uma pauta identificada com a esquerda, mas com o passar dos dias o cenário virou do avesso. As manifestações tomaram conta do resto do país, o número de pessoas aumentou enormemente e as pautas mudaram. Movidos por uma indignação contra a classe política — genuína, mas despolitizada —, as pautas passaram a ser difusas e genéricas. Os protestos se avolumaram e ganharam uma nova cara. 

Passaram a reivindicar melhorias aos serviços públicos, atacar a corrupção na política e, aos poucos, o que era uma revolta contra a classe política em geral passou a se concentrar contra os petistas que estavam no poder. Partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais passaram a ser hostilizados por manifestantes que se diziam apartidários. “Sem partido!” era um dos gritos de guerra. Com o decorrer dos dias, foi ficando claro que o apartidarismo de fachada servia para esconder um antipetismo alucinado que vinha sendo alimentado pelas elites e grande imprensa por muitos anos. 

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A grande imprensa criticou ferozmente os protestos quando eles ainda eram de esquerda, mas, após o sequestro das pautas pela direita, mudou rapidamente e passou a abraçá-los. Como não lembrar de Arnaldo Jabor, o principal colunista da Globo, mudando radicalmente de opinião sobre os protestos quando eles passaram a ser interessantes para aqueles que queriam derrubar Dilma? Em um intervalo de uma semana, Jabor, que tratava os manifestantes como arruaceiros, passou a tratá-los como jovens heróis que lutavam por um país melhor. A partir dali, a direita passou a controlar a narrativa sobre os protestos.

Logo nas primeiras manifestações, pesquisas indicavam que a aprovação do governo Dilma era de 55%. Um mês depois, despencou para 31%. A avaliação pessoal de Dilma passou de 71% para 45%. O índice de quem desaprovava o governo foi de 25% para 49%. No intervalo de pouco mais de um mês, o governo petista, que tinha aprovação da maioria da população, caiu em desgraça. O caminho para o impeachment começava a se desenhar. 

Em 2015 e 2016, as manifestações de rua continuaram, mas agora sem disfarces. A pauta agora era clara: “Fora Dilma! Fora PT!”. 2013 ajudou a preparar o terreno para o nascimento de movimentos de direita como o MBL e Vem Pra Rua, que atuaram decisivamente no processo golpista contra Dilma Rousseff e, mais tarde, apoiariam a eleição de Bolsonaro. Até aquele momento, não existia manifestações de rua de direita. “A gente [da direita] passou a existir depois de 2013”, afirmou o líder do MBL, Kim Kataguiri, que ajudou a derrubar Dilma, a eleger Bolsonaro e hoje é deputado federal.

Foi ficando claro que o apartidarismo servia para esconder um antipetismo alucinado alimentado pela imprensa por muitos anos.

Há duas leituras predominantes dentro da esquerda sobre as Jornadas de Junho. Uma que trata com romantismo o papel das esquerdas durante os protestos e que rejeita a ideia de que há uma linha de causalidade entre 2013, o golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro. A outra, mais identificada com a esquerda governista (leia-se PT), responsabiliza os movimentos de esquerda por fomentar os episódios que desembocaram no neofascismo bolsonarista. 

Junho de 2013 é um assunto complexo e me parece que ambas leituras têm suas razões. Não acho razoável afirmar de forma categórica que Junho de 2013 foi o ovo da serpente do bolsonarismo. Os valores do neofascismo, que serviram de base ideológica para Bolsonaro, sempre estiveram entre nós. A ideologia do “bandido bom é bandido morto”, a demonização da política e os ataques às minorias sempre estiveram entranhados na cultura do país, principalmente entre a classe média e as elites. O ovo da serpente já estava sendo chocado antes de 2013. Lembremos que em 2011, neonazistas se reuniram no MASP para prestar apoio ao então deputado federal Jair Bolsonaro. Não se pode esquecer também que a ascensão do neofascismo é um fenômeno global e não me parece justo colocá-lo na conta das manifestações de junho. Dentro desse contexto, é impossível afirmar que o bolsonarismo não chegaria ao poder se junho de 2013 não tivesse existido. 

Não acho razoável afirmar de que Junho de 2013 foi o ovo da serpente do bolsonarismo.

À época, fui um crítico feroz das esquerdas que permaneceram nas ruas depois que a direita tomou para si o controle das manifestações. Hoje, mantenho a crítica, mas faço ponderações. Com uma década de distância e depois de absorver outras leituras sobre o acontecimento, compreendo que Junho teve também um papel importante para o acúmulo de experiências dos movimentos estudantis, negros, feministas e LGBTQIA+. As manifestações estudantis de 2015 em São Paulo, por exemplo, são fruto de 2013. As ocupações das escolas públicas estaduais resultaram na queda do secretário de Educação e fez o governo Alckmin suspender o plano de reorganização do governo, que seria trágico para a educação pública infantil do estado. Essa herança de junho de 2013 se replicou dentro de outros movimentos sociais. 

Por outro lado, não dá pra dizer que as manifestações de 2013 não têm qualquer relação com a Lava Jato, o golpe contra Dilma e a eleição do Bolsonaro. Assim como não é possível concluir que existe uma linha direta de causa e efeito entre os eventos, também não é possível afirmar que junho de 2013 não teve um papel importante no que veio a seguir. 

As esquerdas que foram às ruas protestar de maneira legítima contra o aumento do preço das passagens permaneceram nas ruas mesmo depois de conquistarem o objetivo. Continuaram engrossando as manifestações mesmo depois da narrativa dos atos ter sido controlada pela imprensa e pela direita. A partir de um certo momento, ficou claro que as manifestações estavam tomando um mau caminho, mas parte da esquerda não arredou o pé.

Por outro lado, não dá pra dizer que as manifestações de 2013 não têm qualquer relação com a Lava Jato, o golpe de Dilma e a eleição de Bolsonaro.

As ruas foram tomadas pelos símbolos nacionalistas. A camisa da seleção brasileira virou uniforme dos manifestantes. A extrema-direita, ainda que minoritária, também começou a sair às ruas em 2013. Com roupas camufladas e bandeiras do Brasil, pediam a “volta dos militares”ao poder e uma “intervenção militar no país”. A direita e a extrema-direita tomaram gosto pelas ruas, algo que não se via desde a Marcha da Família com Deus pela Liberdade em 1964. A ascensão do bolsonarismo provavelmente aconteceria se não houvesse as Jornadas de Junho, mas negar que elas ajudaram a propiciar o ambiente ideal para o seu florescimento é tapar o sol com a peneira. 

Tanto a visão que romantiza quanto a que demoniza as Jornadas de Junho têm seus erros e acertos. Conclusões simplistas não dão conta da complexidade do episódio. Junho de 2013 continuará sendo estudado, debatido e possivelmente jamais haverá consenso dentro da esquerda. Mas ambas leituras concordam em uma coisa: a direita soube explorar melhor o fenômeno e saiu mais forte dele. 

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