O caminho para chegar a Nova Pádua, na Serra Gaúcha, tem cheiro de suco de uva. Não podia ser diferente, com os extensos parreirais à margem de todas as estradas ao seu redor. Os cachos suspensos sugerem que a colheita na cidade mais bolsonarista do Brasil está próxima. Repetimos a rota quase três anos após nossa primeira visita ao município e, lá, encontramos raríssimos eleitores arrependidos, produtores rurais enfrentando dificuldades e uma surpresa: quase 100% da população vacinada.
O autodeclarado “pequeno paraíso italiano”, no Rio Grande do Sul, foi a cidade que deu o maior número de votos para Bolsonaro. Lá, 82% dos eleitores escolheram o então candidato do PSL no primeiro turno da eleição de 2018. Naquela ocasião, o Intercept foi até a cidade para conhecer essas pessoas e entender quais eram suas motivações. A identificação com muitas pautas que Bolsonaro defende, somado ao antipetismo convicto, fez o percentual de votos no representante de extrema direita saltar para quase 93% no segundo turno.
Com 2.563 habitantes, Nova Pádua oferece uma amostra dos 11% do eleitorado que permanecem fiéis ao presidente, independentemente do que ele faça – ou deixe de fazer. Lá, encontrei pessoas como o padre José Mussoi, um dos bolsonaristas mais extremos com quem conversei. Segundo ele, os números de infectados e mortos na pandemia causada pelo novo coronavírus foram “falsificados pela globolixo”, e tudo não passa de uma “terceira guerra mundial bacteriológica para criar outra ordem econômica social no mundo”. Questionado sobre que ordem seria essa, ele gaguejou um pouco antes de cravar. “A ordem da escravidão. É um projeto comunista, escravocrata que está aos poucos tomando conta do mundo. Para combater, precisa parar de assistir a globolixo, que representa todos os jornais e a imprensa. Em segundo lugar, tem que investir na educação séria. Há muitas décadas, o projeto de educação está sendo enfraquecido para alienar o povo”.
Como em 2018, ainda é difícil encontrar alguém que não apoie Bolsonaro, mas a pandemia revelou algo que distancia o presidente até dos mais ferrenhos bolsonaristas do “paraíso italiano”: a vacinação contra a covid-19. Enquanto o presidente insiste em dizer que não se vacinou e faz campanha contra os imunizantes, 83% de toda a população de Nova Pádua tomou as duas doses ou a dose única da vacina, e um terço já aplicou a dose de reforço.
Segundo Paulo Paliosa, diretor municipal de saúde, considerando que a vacina infantil ainda não havia chegado à cidade na primeira quinzena de janeiro e que algumas pessoas que trabalham em municípios vizinhos se vacinaram nessas cidades, a adesão foi de praticamente 100%. “Nossa ideia, como defensores do SUS que somos”, diz o gestor, dando ênfase à frase, “é que a população tenha acesso e use o sistema. A vacina veio para ser aplicada, e nossa função, além de vacinar, é orientar as pessoas”.
O município registrou 411 casos de covid-19 e 12 mortes, um número alto para um lugar com menos de 3 mil habitantes. Mas Paliosa acredita que a quantidade de diagnósticos se deve ao grande número de testes realizados – uma taxa por 100 mil habitantes 64% acima da média nacional.
O secretário de Saúde, Odir Boniatti, um bolsonarista convicto que tem medo de o Brasil se tornar “um socialismo, tipo Venezuela ou Argentina”, fala com orgulho sobre o investimento do município na saúde pública, embora mais da metade da população tenha convênios médicos. “Aplicamos ao menos 20% da receita tributária na saúde”, me afirmou – o mínimo exigido por lei é 15%.
O município não tem hospital, mas o secretário Boniatti disse que todas as pessoas diagnosticadas com covid-19 são acompanhadas por telefone, o que só é possível devido ao tamanho do município. Uma enfermeira liga diariamente para saber como paciente e a família estão se sentido, passa todas as informações para o médico e, caso o quadro se agrave, a pessoa é levada para o hospital mais próximo, em Flores da Cunha ou Caxias do Sul.
Quanto à vacinação, disse Boniatti, a secretaria fez busca ativa pelas pessoas que não compareceram, usando os telefones cadastrados por elas no posto de saúde. “Ligávamos para elas e, se tivessem alguma dúvida sobre a vacina, explicávamos de imediato, e a pessoa já vinha. Ninguém se recusou”.
A forma como o município conduziu as políticas de saúde durante a pandemia mostra como os serviços públicos funcionam bem em Nova Pádua. Em 2010, ano do último levantamento do IBGE, a cidade estava em primeiro lugar no ranking nacional da taxa de alfabetização, com todas as crianças entre seis e 14 anos na escola. As ruas de asfalto ou de calçamento são limpas e bem iluminadas. As áreas de convívio social oferecem segurança o bastante para que os moradores se reúnam todos os dias ao final da tarde e conversem amistosamente. Uma cena que, à primeira vista, é comum em qualquer cidade do interior, mas que não é exatamente igual em Nova Pádua.
Pobreza é algo que parece não existir por lá. Nem mesmo o bairro mais distante do centro, conhecido como loteamento, pode ser considerado uma periferia. A sensação é de que eu não estava no Brasil. Nunca havia ido ao sul do país, mas a fotógrafa que estava comigo, gaúcha, teve a mesma percepção. Impressiona, por exemplo, a beleza das casas, muitas delas com piscina, sobrado, grandes varandas, janelas e portas trabalhadas em madeira, além de belos jardins gramados e floridos. A cidade é quase um condomínio de mansões.
Nova Pádua facilmente serviria de cenário para qualquer novela que se passasse em uma vila italiana próspera – incluindo os moradores, brancos e com forte sotaque estrangeiro, como personagens. Às vezes, era difícil entender o que eles falavam. Os paduenses descendem dos imigrantes italianos que, na tentativa governamental de embranquecer o Brasil, receberam incentivos para se instalar na região sul entre os séculos 19 e 20. Pádua, aliás, é o nome de uma cidade do norte da Itália. Vem daí tantas referências que a Pádua brasileira preserva. Nos dois dias que permaneci na cidade, só vi uma pessoa negra. Era a moça que fazia a limpeza na pousada onde nos hospedamos.
Dificuldades silenciadas
Mesmo com tanta tanta prosperidade aparente, a vida no “paraíso italiano” gaúcho já não é tão fácil como antes, principalmente para os cerca de 450 produtores rurais. Eles enfrentam uma seca que tem se agravado desde outubro. Segundo levantamento do escritório da Emater em Nova Pádua, a estimativa é que alguns agricultores percam 10% da produção de uva na safra 2021/2022 – o ano agrícola começa sempre em julho e vai até junho do ano seguinte. Considerando todas as culturas, as perdas chegam a R$ 9,1 milhões.
Em outubro de 2018, lembrou o prefeito, Danrlei Pilatti, do Progressistas, houve uma chuva de granizo, o que contribuiu para agravar mais a situação dos produtores rurais. “Quando há um evento climático como esse, a uva pode levar até dois anos para se recuperar e atingir a produtividade normal. Nós estávamos começando a superar isso e veio a estiagem”, lamentou o prefeito, que declarou situação de emergência no município.
Fiéis ao presidente Bolsonaro, os produtores rurais de Nova Pádua passam pelos obstáculos em silêncio. Eles não admitem que está mais difícil lidar com o problema da seca nos últimos anos do que em anos anteriores, principalmente nos governos petistas, quando o acesso a empréstimos subsidiados pelo governo federal era mais fácil. Sem crédito, a seca se soma à falta de verbas para investimento na modernização da produção e custeio dos ciclos produtivos. O dinheiro de um empréstimo pode ser usado, por exemplo, pra implantar a irrigação pelo sistema de gotejamento, mais econômica e que garante que a vegetação seja molhada na medida certa.
Um exemplo é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o Pronaf, que oferece crédito para ajudar os agricultores tanto no custeio dos ciclos produtivos, quanto nos investimentos para modernização da produção.
‘Você acha que eles vão admitir que agora está pior?’
De acordo com um relatório divulgado em 2020 pelo Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas, de 2016 a 2019, o Pronaf enfrentou “relativa estagnação com viés de baixa”. A quantidade de contratos assinados para adquirir empréstimos diminuiu 21% do ano agrícola 2013/2014 para 2019/2020, a última safra analisada.
Também minguou a verba disponibilizada pelo governo federal para subsidiar o programa e garantir tarifas menores do que a Selic, a taxa básica de juros. O relatório mostra que, após um aumento de 2013 até 2017, o orçamento destinado ao Pronaf caiu nos três anos seguintes, de R$ 8 bilhões para R$ 3 bilhões, aproximadamente. O documento destaca que foi observada a mesma tendência, a partir de 2016, em relação aos valores efetivamente pagos.
Ronaldo Ramos, assessor de Política Agrícola da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares, a Contag, diz que a consequência de ter menos subsídio é que os juros do Pronaf ficaram mais altos do que a taxa Selic nas duas últimas safras. A taxa chegou a 2%, a menor da história, enquanto os juros do programa atingiram até 4,5%. Para ele, embora as tarifas do Pronaf nunca tenham sido exorbitantes ou abusivas, “não faz sentido que a categoria da agricultura familiar pague taxas anuais superiores à taxa básica de juros”.
João, produtor rural que há 30 anos trabalha com plantio de uva em Nova Pádua, concorda que o Pronaf já não é mais tão vantajoso quanto antes. O último empréstimo que ele pegou, de quase R$ 70 mil, foi em 2014 para comprar um trator. Pagou juros de 2,5% ao ano. “Agora, aumentaram para 4%. Antes, a gente fazia um empréstimo para comprar máquinas e deixava o nosso dinheiro investido. Não compensa mais. É melhor usar o nosso dinheiro mesmo”, disse o agricultor. Ele é um dos raros moradores da cidade que não votou no Bolsonaro, mas não se sente confortável para tornar isso público, principalmente porque a maioria dos paduenses não assume que a crise existe.
Éder Salvador é representante do Sindicato dos Trabalhadores Agricultores Familiares em Nova Pádua e atesta que os produtores conseguem empréstimo sem dificuldade. “Claro que, às vezes, o valor que eles gostariam não alcança, mas é muito difícil alguém ir até o banco e não conseguir. Deu uma pequena subida agora [na taxa de juros], mas nada comparado com a inflação que temos hoje”, afirmou.
Giovane Fabian, produtor de uva e de vinhos, também se diz satisfeito. “Os últimos anos foram dos melhores em investimento na parte da agricultura. O que não ajudou foi o clima. E isso não tem como o governo interferir. O que ele [Bolsonaro] podia ter feito, fez”. Não é o que dizem os números.
Um levantamento que eu fiz com base nos dados do Banco Central, especificamente sobre o Pronaf em Nova Pádua, mostra que a maior quantidade de empréstimos ocorreu em 2014, durante o governo Dilma, com 323 contratos. Esse número foi oscilando nos anos seguintes e chegou ao menor valor dos últimos sete anos em 2021, apenas 279 contratos. Já a soma dos valores emprestados aumentou quase o dobro, de R$ 7,1 milhões em 2014 para R$ 13,8 milhões no ano passado, o que segue uma tendência nacional.
Na análise do Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas, a redução do número de contratos e o aumento do valor médio “pode significar que agricultores menos capitalizados estão se desfiliando do programa mais rapidamente e em maior proporção que os agricultores mais capitalizados”.
O assessor da Contag, Ramos, apontou outro problema: o subsídio do governo para o Pronaf, nos últimos três anos, tem se esgotado até novembro, ou seja, apenas quatro meses depois de iniciado o ano agrícola. Na safra atual, os empréstimos para custeio e para investimento já estão suspensos desde 1º de setembro e 16 de novembro, respectivamente, paralisando todos os pedidos de financiamento com taxas de juros de 4,5% e 3% ao ano. Para evitar essas suspensões, disse Ramos, a agricultura familiar teria que ser prioridade. Mas, no governo atual, não é o que acontece.
Municípios pequenos como Nova Pádua, cuja economia é basicamente agrícola, sentem ainda mais as consequências da falta de investimento para os produtores rurais. Quando a agricultura familiar é beneficiada, ela ajuda a economia local e gera receita também para os pequenos comerciantes da cidade, aumentando ainda a oferta de emprego e a arrecadação do município.
Nada disso é levado em conta pelos agricultores da cidade no momento de defender Bolsonaro. “Durante 10, 15 anos [nos governos petistas], a gente teve mais estabilidade para trabalhar. A economia crescia, e o negócio era mais seguro para comprar, vender e investir. Mas você acha que eles vão admitir que agora está pior?”. A pergunta de João encontra eco na hipótese de José, que trabalha com produtores rurais. “Por mais que percebam que a coisa está difícil, eles são muito orgulhosos. Continuam defendendo porque são teimosos e não querem dar o braço a torcer. Mas também porque a crise ainda não chegou para eles como chegou para a população mais pobre”.
Grupo de zap da vida real
É nos banquinhos das calçadas, ou sentados em cadeiras em frente aos pequenos comércios, que os Bunai, os Sonda, os Menegat e mais algumas dezenas de sobrenomes respeitados em toda a cidade falam sobre a estiagem e a colheita, defendem o trabalho duro e criticam políticas de assistência social. Vez ou outra, compartilham alguma notícia falsa. Como um grupo de WhatsApp bolsonarista que saiu do mundo virtual, Nova Pádua reúne dos mais conspiracionistas aos que reconhecem alguns erros do presidente e até cogitam votar em outro candidato na próxima eleição – desde que não seja do PT.
A desconfiança em relação aos jornalistas é um traço marcante. Muitos moradores se negaram a me dar entrevista, principalmente aqueles que falaram com o Intercept em 2018, como o atual vice-prefeito, Inácio Sonda, e o comerciante Delvino Bunai. Irritados com a forma como foram retratados, eles disseram que a reportagem mentiu e inverteu suas falas.
‘Não falta trabalho, mas os vagabundos estão aí, querendo só dinheiro. Eu acho que quem não trabalha tinha que morrer de fome’.
Insisti bastante para que me explicassem o que havia sido distorcido. A resposta foi dada pelo vice-prefeito. “Deu a entender que em Nova Pádua o pessoal é bobo, burro, não tem cultura. Me desculpe, mas não vou falar com você. Quer entrevistar alguém, entreviste daquela rua para lá”, encerrou, com um tom misto de impaciência e educação. Um homem que também estava na calçada completou, sem olhar para mim: “a imprensa é toda esquerdista. Tudo que a gente falar, ela vai jogar contra, sabendo que em Nova Pádua é tudo bolsonarista”. Assim como acreditam que Bolsonaro é injustiçado, perseguido ou até sacaneado pelos jornalistas, eles avaliam que também são.
Os paduenses dão um valor especial ao trabalho duro. Para eles, acordar de madrugada e não descansar durante todo o dia é o que lhes define como pessoas honradas. Por isso, quem está desempregado ou não acha razoável trabalhar exaustivamente não tem valor algum e é totalmente descartável. Zulnir Menegat, mais conhecido como Miro, cuida da principal pousada da cidade há mais de três décadas. Ele conta que perdeu R$ 100 mil por causa da pandemia e concorda com Bolsonaro que as pessoas não deveriam ter ficado em casa. Acostumado a trabalhar desde criança, “com uma enxadinha pequenininha” e dormindo atualmente no máximo quatro horas por dia, Miro defende o fim dos programas sociais. “Não falta trabalho, mas os vagabundos estão aí, querendo só dinheiro. Eu acho que quem não trabalha tinha que morrer de fome”.
Como em qualquer grupo de WhatsApp bolsonarista, nem todos os membros de Nova Pádua têm opiniões extremistas como as de Miro. Edite Debon, moradora de um dos bairros mais afastados do centro, o loteamento Jorge Baggio, acha que as pessoas devem ter o mínimo para sobreviver. Ela é merendeira em uma escola municipal, vive de aluguel e seu marido está desempregado. “Você vê tanta gente que, coitados, estão passando fome e precisam de ajuda. Aqui [em Nova Pádua] até que não tem muito, mas vai para o lado de Porto Alegre, é de não acreditar. Que não seja uma ajuda grande, mas dar pelo menos o suficiente para eles comerem”.
William Menegat, que trabalha duro com o pai Zulnir na Pousada del Miro e é formado em turismo, reconheceu que Bolsonaro “fala muita bobagem e tem um jeito grosso e estúpido”, mas avalia que é exatamente isso que atrai algumas pessoas. “É até melhor mostrar realmente o que é do que ficar só na enrolação”, disse o jovem, um potencial eleitor do Sergio Moro. “A questão é ser anti-PT”.
Além do antipetismo e da dedicação total ao trabalho, a opinião sobre a vacinação das crianças contra a covid-19 também é semelhante entre os paduenses. Nenhum dos moradores com quem conversei se disse contra. No máximo, os defensores mais dedicados de Bolsonaro ficaram em cima do muro.
O padre Mussoi, por exemplo, acredita que a vacina contra a covid-19 é parte da estratégia de uma “guerra que fatura bilhões”. Mas, quando perguntei o que achava da vacinação infantil, ele não foi tão firme. “É uma interrogação, prefiro não opinar”.
O secretário de Saúde Boniatti também não cravou uma opinião negativa. Pelo contrário. Embora se diga “balançado com esse assunto”, ele garantiu que vai acatar o que a maioria dos cientistas e médicos estão dizendo e completou: “acho que toda população tem que ser vacinada, de 0 a 100 anos”.
Não existe antivacina na cidade mais bolsonarista do Brasil.
JÁ ESTÁ ACONTECENDO
Quando o assunto é a ascensão da extrema direita no Brasil, muitos acham que essa é uma preocupação só para anos eleitorais. Mas o projeto de poder bolsonarista nunca dorme.
A grande mídia, o agro, as forças armadas, as megaigrejas e as big techs bilionárias ganharam força nas eleições municipais — e têm uma vantagem enorme para 2026.
Não podemos ficar alheios enquanto somos arrastados para o retrocesso, afogados em fumaça tóxica e privados de direitos básicos. Já passou da hora de agir. Juntos.
A meta ousada do Intercept para 2025 é nada menos que derrotar o golpe em andamento antes que ele conclua sua missão. Para isso, precisamos arrecadar R$ 500 mil até a véspera do Ano Novo.
Você está pronto para combater a máquina bilionária da extrema direita ao nosso lado? Faça uma doação hoje mesmo.