#TIBnasEleições
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“Esse ano só estão distribuindo santinho. Dinheiro que é bom, nada”, reclama uma moradora do bairro Escalvado, na periferia da pequena Amarante, no interior do Piauí. Perguntei quanto estava custando o voto. “Depende de quanto a gente pede. Tem vez que é R$ 200, R$ 150, R$ 300. Varia”, me disse.
Sentada em uma cadeira de plástico colocada na calçada em frente a sua casa, a última de uma rua de estrada de chão, sem saneamento, em um morro na parte alta cidade, ela esperava definir naquela madrugada em quem iria votar para deputado, senador e governador ao lado de outras duas amigas. “Só escolhi o 13, o Haddad”, disse outra mulher. Ou seja, apenas o voto para presidente não estava à venda.
Toda eleição, a cena se repete. As portas das casas abertas até tarde da noite são o sinal de que os cabos eleitorais precisam para saber onde podem convencer eleitores – e até comprar votos. As cadeiras nas calçadas e o olhar atento dos moradores quando um carro passa mais devagar, também. Com 17.592 moradores, Amarante já teve eleição decidida por 3 votos de diferença. Cada voto conta.
Por lá, todo mundo se conhece. Por isso as pessoas pensavam que eu estava lá para comprar votos, uma “estrangeira” a serviço das eleições. Era noite de quinta-feira, a três dias da votação do primeiro turno, e todo estranho no bairro era visto como uma fonte de dinheiro. As mulheres foram diretas quando perguntei se já tinham candidatos. “Ainda não. Estamos esperando chegarem com as propostas boas.”
Acompanhada pelo fotógrafo Thiago Amaral, eu estava, sim, interessada no mercado informal de votos na cidade, mas não como compradora. Fiquei na cidade do começo de quinta-feira até a manhã domingo, acompanhando as movimentações da véspera da eleição. Como o local é pequeno e minha presença levantou suspeitas – uma assessora do atual prefeito chegou a comentar que havia uma fiscal do Tribunal Superior Eleitoral na cidade –, preferi não me identificar como jornalista.
‘A média é R$ 50 por pessoa.’
No carro, o guia que me acompanhava disse que o preço exigido pelo trio de mulheres estava inflacionado. Morador da periferia de Amarante, ele conhece bem o que acontece em época de campanha. “A média é R$ 50 por pessoa. Aí, quando a família é grande, pode fechar o voto de todos por uns R$ 400. Se for só um casal e eles pedem um milheiro de tijolo, por exemplo, aí eles dão só a metade do valor”.
O pensamento dos moradores da cidade que vendem o voto é pragmático. “O povo diz que não pode vender [o voto]. [Mas] Não dá é pra ficar sem nada. E é certo se eles podem ganhar em cima da gente quatro anos, prometer mundo e fundos?”, reclamou uma das mulheres, ao lembrar que o prefeito eleito na cidade só ousou subir o morro que leva até a sua casa quando era candidato, e desde então pouco fez pelo local.
De acordo com os últimos dados do IBGE, em 2016, apenas 4,2% da população de Amarante tinha carteira de trabalho assinada. O salário médio mensal desses trabalhadores formais é pouco maior que o mínimo, o que deixa o município em 8º lugar no ranking estadual da renda mais baixa.
Quase todos os empregos giram em torno da prefeitura, e é isso que dá mais poder aos políticos locais. Quando um candidato sai derrotado das eleições, as pessoas que o apoiavam são diretamente afetadas. Se tinha um emprego, perde; se era fornecedor da prefeitura, terá que esperar um pouco mais para receber o dinheiro e não consegue pegar novos contratos; se é dono de comércio, depende do pagamento dos salários dos servidores em dias para manter as vendas. Eleição importa.
Caderninho na mão
Algumas ruas adiante, no bairro de Areias, também na periferia, vi um carro circulando por volta das 21h com adesivos da candidata a deputada estadual Lucy Silveira, do PP; do candidato a deputado federal Flávio Nogueira, do PDT, e do candidato ao senado Marcelo Castro, do MDB, todos da mesma coligação. Lucy, esposa do prefeito de Teresina, o tucano Firmino Filho, se elegeu. É a primeira vez que ela se candidata a um cargo público e foi a segunda mais votada. Os outros dois foram reeleitos.
Em algumas casas, um rapaz descia do carro com um caderno na mão. O guia me disse que aquela era a ocasião em que os cabos eleitorais anotavam os pedidos dos moradores e, às vezes, o número dos títulos eleitorais. “Depois eles vêm deixar o dinheiro e dizem que têm como saber se a pessoa votou mesmo, por causa da apuração dos votos na seção eleitoral”. Bravata ou não, é uma forma de intimidar. Optei por não descer do carro para evitar duas situações: ser confundida com alguém da oposição que estava ali para comprar votos também ou ser descoberta como jornalista.
Acordei na sexta-feira com o fotógrafo me ligando. Disse que passou em frente a um comitê e viu que pessoas entravam na casa, recebiam um papel e saiam. Um cabo eleitoral fazia anotações em um caderno. Havia uma fila de moradores ali, esperando para falar com a liderança política local.
Flagramos movimentações suspeitas como essa no comitê do candidato a deputado estadual Luiz Neto, do PRP, e no comitê da coligação “A vitória com a força do povo”, que reúne os candidatos do PT, MDB, PP e de mais seis partidos. Não consegui identificar exatamente o que as pessoas recebiam, mas o guia que nos acompanhava disse que ali era distribuído dinheiro e vale combustível – quatro litros para moto e R$ 50 para carros.
40 em comida, 10 em cachaça
Luiz Neto é um ex-prefeito de Amarante que já foi cassado. Em 2015, quando ainda estava no cargo, foi acusado de atirar em um idoso após uma disputa por terras. Seu histórico de agressão é antigo. Em 2012 ele foi condenado a pagar R$ 30 mil de indenização por danos morais para um morador que teve a casa invadida e foi agredido com um facão. O episódio ocorreu em 2010. Luiz Neto não se elegeu para deputado estadual este ano.
Mais tarde, almoçando em um restaurante, ouvi um homem contando à dona do local que recebeu R$ 50 do cabo eleitoral de um candidato a reeleição para deputado estadual. “Ele (o cabo eleitoral) tinha era um pacote de dinheiro amarrado na liga. Cheguei dizendo que estava há três dias sem trabalhar e que precisava de um dinheiro para fazer a feira. Aí o cara olhou pra outro e fez assim (gesto com uma mão aberta). Se ele tivesse feito com as duas era R$ 100. Peguei o dinheiro e comprei R$ 40 de comida pra dentro de casa. Os outros R$ 10 tomei de cachaça”.
O vale-combustível é uma forma popular de compra de votos na região, me contaram alguns moradores de Amarante. No Posto Kennedy, que fica na entrada da cidade, perguntei ao frentista quais eram os candidatos que estavam dando o vale para abastecer lá. Ele preferiu não dizer, mas me mostrou o papel.
O recibo, preenchido à mão, tem apenas o carimbo do posto e a assinatura da gerência, mas não traz o nome de nenhum político. “Se a sua nota tiver esse número aqui (o CNPJ da empresa), tem a assinatura da minha patroa também. Aí a gente troca”, explicou o frentista.
Na sexta-feira, a Polícia Rodoviária Federal havia apreendido R$ 100 mil dentro de um táxi na BR 343, em Teresina. Depois que pararam o carro, os policiais flagraram o homem, que se identificou como dono do dinheiro, ligando para um candidato e o informando onde havia sido abordado. Com esses R$ 100 mil, seria possível comprar 2 mil votos a R$ 50.
Sábado é o dia
A correria pelos votos fica mais intensa no sábado.
Entrei na casa de Clemilton, que foi vice-prefeito de Amarante na gestão do prefeito Luiz Neto, do PSD. Ambos foram cassados pelo Tribunal Regional Eleitoral do Piauí em 2014, por abuso do poder econômico, político e de autoridade.
Lá dentro, as pessoas formavam fila para falar com Clemilton. O assunto era o mesmo: “uma ajudinha”.
Uma mulher reclamava que desde o dia anterior ia ao comitê e não conseguia nada. “Eu só vim porque eu estou precisando muito. Estou sem gás de cozinha”, dizia em tom penoso. Em outro canto um homem que ajudava na campanha parecia irritado. “Eu não prometi dinheiro pra ela, eu disse que dava R$ 600 pra família dela”. “Eu já prometi a cesta básica”, dizia outra pessoa do comitê.
Sentados em cadeiras colocadas no corredor da casa, algumas pessoas preenchiam centenas de santinhos com os números que os eleitores deveriam digitar na urna. Para deputada federal era Rejane Dias, do PT, esposa de Wellington Dias, candidato à reeleição para governador pelo mesmo partido. Os demais candidatos anotados no santinho eram Oliveira Neto (PPS) para deputado estadual e Marcelo Castro (MDB) e Jesus Rodrigues (Psol) para o senado – somente o último não foi eleito. Para presidente, o candidato era o petista Fernando Haddad.
A corrida pela compra de votos de última hora não se restringe a Amarante. É comum ouvir relatos de casos assim em todos os 17 municípios da região do médio Parnaíba. Antes do fim da viagem, atravessamos o rio para ir até a vizinha São Francisco do Maranhão conversar com Iverlene Maria de Oliveira, que já foi candidata em seis eleições e diz ter fama de ser “radical e grosseira” porque se recusa a comprar votos.
“Quando a gente começa uma campanha, acredita muito na mudança dos eleitores”, diz Oliveira, que já se elegeu vereadora e vice-prefeita. “Só que quando chega na última semana, não se sabe mais o voto de ninguém. A gente vai falar com as pessoas e elas acham que têm o direito de exigir alguma coisa em troca”.
Ela conta que um dos episódios que mais a marcou ocorreu em 2000, quando foi candidata à prefeitura. “Cheguei em um povoado distante e a pessoa me recebeu com muita alegria. Disse que lá eram oito votos, que eles não vendiam e que estavam só me esperando pra dizer que eram meus eleitores. Fiquei maravilhada, achando que aquilo era o efeito do trabalho de conscientização que eu estava fazendo”.
Mas, bem, não era exatamente isso. “Quando eu vou saindo, o homem me chama e mostra a casa de farinha [espécie de moinho] . Ele disse que havia esquecido de fazer uma observação. Os oito votos seriam para quem desse o motor da casa de farinha”. Oliveira acabou em último lugar, com 10% dos votos.
Dois dias antes, a candidata a deputada federal pelo PT Neide Carvalho havia comentado comigo, antes do início de uma “motocada” eleitoral – uma carreata de motos –, como esses pedidos são recorrentes. Carvalho, que teve 3.337 votos e não foi eleita, conta que recusou diversas vezes durante a campanha pedidos de “ajudinhas” de R$ 10 e de compra de remédios.
“[Ontem] tinham uns carros distribuindo cesta básica no bairro Petecão [referia-se a Piripiri, uma cidade ao norte do Piauí]. Essas coisas aumentaram muito na última semana”, diz, ao comentar que ficou perplexa com a movimentação de carros e motos de pessoas comprando votos na região. “As pessoas vão continuar miseráveis porque esse tipo de coisa tira a vaga de quem quer fazer um mandato popular.”
De sexta até domingo, apenas nove pessoas foram presas por crimes eleitorais no Piauí. Nesse mesmo período, o Ministério Público Federal apreendeu outros R$ 100 mil que seriam distribuídos nos municípios de Água Branca, na região do médio Parnaíba, próximo a Amarante, e em Morro do Chapéu e Barras, no norte do estado. Também foram apreendidos medicamentos e boletos de água, além de um extrato de um saque de R$ 10 mil em dinheiro. Os procuradores suspeitam que tudo isso seria usado para comprar votos.
O juiz da comarca de Amarante Netanias Batista de Moura, que costuma dar plantão em uma churrascaria na cidade na noite anterior à eleição, descreveu as eleições em Amarante como “uma das mais tranquilas do Piauí”.
Ele diz que nunca há denúncias. “E, quando tem, não são comprovadas”.
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