Nessa altura dos acontecimentos, virou um padrão do humor ácido dizer que 2020 foi o ano em que os Quatro Cavaleiros do Apocalipse parecem ter decidido baixar nos Estados Unidos. Mas, mesmo antes dos temores por guerra, pestilência e colapso econômico começarem a ganhar forma, já era possível observar sintomas mórbidos se espalhando pelas extremidades do corpo político. O sinal mais forte de uma doença social iminente foi o renascimento e a disseminação de ideologias extremistas — crenças que, há não muito tempo, eram rejeitadas pelo triunfalismo progressista como meras relíquias da memória histórica.
Modificadas pelas novas tecnologias da informação e buscando força nos sentimentos de deslocamento econômico e demográfico, as ideologias fascistas e sectárias encontraram um lar no coração dos membros de uma nova geração de americanos.
Não importa se a maioria das pessoas entendeu a situação ou não: uma luta violenta já está ocorrendo. Nos últimos anos, um ritmo constante de massacres foi realizado por extremistas associados à nova extrema direita. Esses ataques têm como alvo sinagogas, mesquitas e comunidades onde imigrantes se concentram. Na esteira disso, os atiradores deixaram para trás manifestos condenando um mundo que eles alegavam estar diminuindo seu espaço para pessoas como eles.
O que esses ideólogos à deriva nas correntes desse movimento realmente esperavam, porém, era uma crise real, que lhes daria a oportunidade de colocar em prática suas ideias de guerra racial e purificação étnica. Essa crise veio.
A combinação do coronavírus com o súbito colapso da economia americana deram à sociedade um choque exógeno que não era visto há gerações. A pandemia e as tensões sociais que ela desencadeou vão provavelmente impulsionar ainda mais as forças que deram origem ao novo extremismo de direita, mesmo se elas também produzem energias contrárias que poderiam reviver as melhores promessas progressistas.
Participar de previsões políticas é uma atividade tola, de alto risco e baixa recompensa. Mas, depois de seguir as encarnações dessa nova ideologia extremista tanto dentro quanto fora do país — e lidar com o fato de que há um grupo de jovens que se mostraram dispostos a morrer por ela — me parece irresponsável não aconselhar as pessoas a se prepararem para o que está no horizonte.
Embora alguns ainda não tenham aceitado esse fato, os EUA estão no meio de uma imparável transição demográfica e cultural rumo ao multiculturalismo. Os desafios naturais envolvidos nessa mudança não devem ser ignorados. Cabe a todos fazer sua parte para torná-la um sucesso, garantindo ao mesmo tempo que todos sintam que têm um lugar no país.
Essa mudança demográfica, no entanto, também deu origem a sérias angústias entre alguns membros da comunidade majoritária — angústias que ajudaram a permitir a ascensão de um nacionalista branco chamado Donald Trump à presidência. É provável que esses sentimentos dos majoritários aumentem à medida que grupos minoritários venham a abraçar suas próprias formas de consciência racial, frequentemente baseadas na reparação de injustiças passadas sofridas nas mãos da maioria.
A atual onda de protestos nacionais foi desencadeada por um assassinato com fortes conotações sectárias — outro homem negro morto por um policial branco. De uma perspectiva histórica, os países que experimentaram um colapso econômico geral ao mesmo tempo em que explodiram as tensões étnicas enfrentaram dificuldades para lidar com isso, para dizer o mínimo. Os Estados Unidos ainda têm muitos recursos à disposição para lidar com esses desafios, mas a gravidade da situação atual não deve ser subestimada.
Os americanos estão vivenciando níveis de desemprego sem precedentes em sua história moderna. Segundo algumas estimativas, quase metade desses empregos pode nunca retornar. Ao mesmo tempo, impressionantes atos de transformação cultural simbólica estão ocorrendo em tempo real. Enquanto estátuas de figuras polarizadoras ligadas à fundação europeia dos EUA desabam uma após a outra, muitas vezes com o apoio de americanos brancos progressistas, o projeto político daqueles que estão nos extremos — particularmente os nacionalistas brancos — é simultaneamente ameaçado e encorajado.
À primeira vista, parece que os acontecimentos estão impulsionando os EUA na direção oposta aos objetivos dos nacionalistas brancos e que eles provavelmente sentirão o gosto da derrota. Mas, por outro lado, um colapso estrutural da sociedade americana que a fratura em linhas étnicas é o pré-requisito para a própria visão que eles mantêm de uma sociedade purificada pelo fogo da violência racial.
“Para os nacionalistas brancos, esta é uma crise e também uma oportunidade.”
“Uma das coisas pelas quais os nacionalistas brancos sempre se interessaram é impor sua própria compreensão do tempo: uma narrativa de como era o passado e como deveria ser o futuro”, diz Alexandra Minna Stern, autora de “Proud Boys and the White Ethnostate: How the Alt-Right is Warping the American Imagination” [“Proud Boys e o etnoestado branco: como a direita alternativa está distorcendo a imaginação americana”, sem edição brasileira]. “Nesse sentido, o coronavírus e os protestos desestabilizaram o tempo. A história está sendo reescrita e os marginalizados estão sendo reconhecidos”.
“Para os nacionalistas brancos, esta é uma crise e também uma oportunidade”, diz Stern. “Na opinião deles, movimentos como o Black Lives Matter são uma forma de política de identidade por excelência. Se for bem-sucedido e ganhar força, na visão deles, a consciência racial branca também poderá aumentar”.
É claro: isso não é para equiparar o movimento Black Lives Matter aos nacionalistas brancos. Mas, em meio às agitadas mudanças sociais que estamos testemunhando, muitas delas progressistas, os identitários de extrema direita também veem uma oportunidade.
Não é necessário dizer que ver as coisas de uma perspectiva etno-nacionalista é uma escolha. Nos EUA, essa escolha, obviamente, não é popular hoje em dia. Uma grande proporção — talvez até mesmo a maioria das dezenas de milhões que foram às ruas no movimento de protesto sem precedentes desencadeado pelo assassinato de George Floyd — eram americanos brancos. Resta ver quanto tempo esse apoio durará, mas a indignação espontânea pelo assassinato de um negro desarmado por um policial branco é nobre e encorajadora.
No entanto, aqueles brancos que são etnonacionalistas — e existem muitos deles — provavelmente verão esses acontecimentos de forma muito mais sombria: como um sinal de que estão prestes a ser deslocados de seu privilegiado papel histórico na sociedade americana ou, ainda pior, reduzidos a uma minoria marginalizada. Em um país com laços sociais frouxos e acesso fácil a armamentos, não são necessárias muitas pessoas pensando dessa forma para causar problemas sérios.
Se você olhar para as sombras, já poderá ver os contornos de uma ameaça que estará conosco nos próximos anos. No início de maio, um grupo de homens, descrito pelos promotores como tendo “experiência militar”, foram presos e acusados de tentar desencadear violência como parte de um plano mais amplo para causar o colapso do governo federal e desencadear uma guerra civil. Uma série de tiroteios e ataques utilizando veículos durante os protestos recentes devem sinalizar que há pessoas prontas para que suas crenças mais extremas cheguem à prática.
Ainda mais ameaçador, para um estado erodido por anos de corrupção, há sinais de que agências policiais e as forças armadas foram infiltradas por indivíduos que aderiram a ideologias de extrema direita. Se uma crise séria vier, a história sugere que serão pessoas assim — com acesso a treinamento e armas — cuja deserção para o lado dos extremistas teria as mais terríveis implicações.
Ao mesmo tempo, assim como é errado — até perigoso — promover categorias raciais essencializadas que agrupam um grande número de pessoas diversas, seria um erro atribuir ao movimento de extrema direita uma unidade que ele não possui. Nem todos os vários subgrupos estão dispostos a se envolver em violência, e nem todos eles têm as mesmas opiniões sobre todas as questões. Na medida em que a extrema direita pode ser descrita como tendo uma perspectiva unificada, é sobre questões de raça e imigração. Nesse tema, a disseminação do coronavírus e os protestos liderados por minorias nos EUA são dois lados da mesma moeda: ambos produtos da globalização, que é a única força em que estão unidos em seu desejo de destruir.
É esperado que a extrema direita continue travando essa batalha para desfazer a globalização com quaisquer ferramentas que tenha à disposição, legais e ilegais, violentas e não-violentas. Aqueles de nós que têm que conviver com a realidade de um mundo complexo e cosmopolita — incluindo as dezenas de milhões de americanos e europeus de origem minoritária cuja própria existência e identidade são produtos dessa realidade — devem negociar uma resposta apropriada. A única coisa que não podemos fazer é cair na armadilha de acreditar que esse conflito não existe ou que pode ser ignorado.
“Para aqueles cujo objetivo final é um mundo multipolar, onde todos estão isolados e em seu próprio lugar, os eventos recentes são vistos como uma crítica à globalização”, diz Benjamin Teitelbaun, pesquisador especialista em extrema direita na Universidade do Colorado, em Boulder, e autor de um novo livro sobre o ex-guru de Trump, Steve Bannon, chamado “War for Eternity: Inside Bannon’s Far-Right Circle of Global Power Brokers” [“Guerra pela Eternidade: por dentro do círculo de Bannon de influenciadores políticos de extrema direita”, sem edição brasileira].
“Se alguém considera que a expressão primária da decadência em nossa era é o cosmopolitismo”, diz Teitelbaum, “a única maneira de sobreviver a essa era é através de um anti-cosmopolitismo militante”.
Tradução: Maíra Santos
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