Members of the Brazilian Army check vehicles traveling along BR 174 highway, often used by Venezuelans seeking shelter in Brazil, in Pacaraima, Roraima state, Brazil, on Tuesday, Feb. 20, 2018.

Vídeo: general incentiva surto de coronavírus para ‘imunizar tropa' em abrigo de refugiados

Soldados trabalham com refugiados venezuelanos em Roraima, na fronteira com a Venezuela – e muitos já pegaram covid-19.

Members of the Brazilian Army check vehicles traveling along BR 174 highway, often used by Venezuelans seeking shelter in Brazil, in Pacaraima, Roraima state, Brazil, on Tuesday, Feb. 20, 2018.

A crise do coronavírus

Parte 106


Os militares que trabalham na força-tarefa humanitária de amparo a refugiados venezuelanos, em Roraima, estão se expondo deliberadamente ao novo coronavírus como forma de se imunizarem contra a doença. Fazem isso por ordem do general Antônio Manoel de Barros, comandante militar da operação Acolhida. O oficial ignora os riscos de um surto da doença na tropa se disseminar desenfreadamente entre os 6.096 migrantes abrigados na região.

A ideia é buscar o que na literatura médica se chama de imunidade de rebanho ou de grupo. Ela é atingida quando a maioria de uma determinada população já criou defesas contra uma doença infecciosa. Isso acaba por extinguir localmente o vírus ou bactéria causador dela por falta de organismos suscetíveis para infectar e se reproduzir.

Você possui 1 artigo para ler sem se cadastrar

O Reino Unido tentou adotá-la. Porém, após um surto de infecções que que atingiu inclusive o primeiro-ministro Boris Johnson, ela foi trocada pelo isolamento social em 23 de março. Além disso, a Organização Mundial da Saúde e cientistas que pesquisam a doença ainda têm dúvidas se pessoas que tiveram a covid-19 e se curaram estão de fatos imunes a novas infecções pelo vírus.

Sem dar bola a nada disso, Barros, de 57 anos, defendeu que seus comandados buscassem se contaminar numa gravação de pouco mais de três minutos distribuída aos integrantes militares e civis da operação Acolhida em 18 de abril.

O general, que aparece com o rosto coberto por uma máscara camuflada, afirma estar com covid-19. E comemora: “É como eu digo, vale para mim, vale para vocês. Nós não estamos infectados, nós estamos sendo imunizados para ações futuras. Essa é a visão que nós temos que ter”.

No vídeo, o general relata que, além dele, 55 militares dos 567 envolvidos na operação estão com covid-19. Ele diz ainda que “três militares foram evacuados porque tinham algum tipo de risco inerente à sua condição física e de uma maneira preventiva”, sem esclarecer, no entanto, qual o estado de saúde deles.

Em seguida, o oficial diz que quatro refugiados tiveram diagnóstico positivo para coronavírus. Mas, ao se referir aos migrantes, Barros usa a expressão “contaminados”, e não “imunizados”: “Essa semana foi muito intensa, com muito trabalho. O covid (sic) chegou sim aos abrigos, nós temos aí quatro pessoas contaminadas, sendo duas crianças”.

Na segunda, 4 de maio, os militares infectados já eram 98 e a de “imunizados”, ou seja, que já tiveram a covid-19 e se recuperaram, 94, mostrando como a fala do general incentivou o crescimento do número de subordinados com a doença na tropa. Ao todo, Roraima tinha 740 casos confirmados da doença até o começo da semana. Os militares são 26% deles – ou seja, respondem por mais de um quarto dos casos confirmados no estado.

General de divisão do Exército, Antônio Barros assumiu a coordenação operacional da Acolhida em janeiro, substituindo o general Eduardo Pazuello, que foi indicado secretário-executivo – o segundo cargo na hierarquia – do Ministério da Saúde após a demissão de Luiz Henrique Mandeta. Em fevereiro do ano passado, Barros foi o responsável pela Operação Muquiço, que resultou nas mortes do músico Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo em abril de 2019, no Rio de Janeiro.

‘Imunização’ aumenta riscos para refugiados

A “autoimunização” já seria preocupante se o risco de um surto da doença envolvesse apenas a tropa. O sistema de saúde de Roraima já era precário antes mesmo do início da pandemia. Ao todo, o estado tem 15 leitos de UTI prontos para atender pacientes de covid-19, número que planeja ampliar para 24.

Mas, ao encorajar a exposição ao vírus, Barros coloca em risco os refugiados venezuelanos, como frisam integrantes de ONGs que atuam nos abrigos da operação Acolhida em Boa Vista e em Pacaraima, cidade que faz fronteira com a Venezuela.

Uma médica e outros três outros profissionais da área de saúde com quem conversei disseram, sob a condição de anonimato, que militares infectados mas assintomáticos circulam entre civis e refugiados sem máscaras. E ainda debocham dos integrantes de ONGs. “Há um tenente que se acha o Rambo. Ele ignora as medidas preventivas e afirma ser imuno-recuperado (sic)”, me disse um deles. “A maior parte dos migrantes chega aos abrigos da força-tarefa humanitária subnutrida, com imunidade baixa, exaustas e já doentes após caminharem por dias”, lembrou outro profissional de saúde.

Segunda uma médica que atende os migrantes, testes para covid-19 só são realizados quando os refugiados apresentam sintomas compatíveis com a doença. Assim, é muito provável que os dados apresentados pela Acolhida – 12 casos da covid-19 entre mais de 6 mil refugiados – estejam subdimensionados.

“Os testes são muito caros, custam em média R$ 400 em alguns poucos laboratórios privados. Na rede pública de Roraima, eles são aplicados apenas em um número restrito de pacientes civis. O mesmo acontece com os refugiados abrigados. Já os militares têm mais acesso aos testes”, afirmou a médica.

Ela me contou que Barros defende abertamente a adoção de imunidade de rebanho. No entanto, projeções matemáticas mostraram que mesmo no Reino Unido ela causaria a altas taxas de hospitalização e necessidade de cuidados intensivos, sobrecarregando a capacidade dos serviços de saúde e levando-os ao colapso.

General Antônio Manoel de Barros, comandante militar da operação Acolhida.

General Antônio Manoel de Barros, comandante militar da operação Acolhida.

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

‘Figura de linguagem’

Apesar da operação Acolhida afirmar que todos os pacientes suspeitos são submetidos a testes com base nos protocolos estabelecidos pelo Ministério da Saúde, os dados que ela apresentou reforçam a tese dos integrantes de ONGs que atuam na força-tarefa. Um exemplo é a quantidade de militares submetidos à testagem.

De acordo com a assessoria da operação, 567 militares participam da força-tarefa humanitária. Desses, 114 foram submetidos a testes – , aproximadamente 20% do contingente. Já entre os 6.096 refugiados, apenas 22 foram testados, o que equivale a menos de 0,2% do grupo.

Quase a metade dos mais de seis mil refugiados atendidos nos abrigos da força-tarefa humanitária são crianças e adolescentes. Outras 131 pessoas têm mais de 65 anos e fazem parte dos grupos de risco.

Antes do fechamento da fronteira com a Venezuela, na metade de março, cerca de 500 imigrantes entravam no Brasil diariamente via Pacaraima, no norte de Roraima. No ano passado, quando estive no estado para mostrar a rotina de violência imposta aos refugiados, os migrantes ocupavam barracas montadas sob coberturas metálicas. O distanciamento entre as estruturas era pequeno e os venezuelanos se aglomeravam em filas para comer e fazer a higiene pessoal.

Segundo os militares, o distanciamento entre as barracas foi aumentado e uma área foi criada para garantir o isolamento dos migrantes que apresentam sintomas da doença ou tiveram infecção por coronavírus confirmada. No início de abril, um relatório epidemiológico estimou que até 15% dos 650 mil moradores de Roraima serão contaminados. O documento é assinado por duas médicas – uma delas oficial do Exército.

Questionada sobre o vídeo, a assessoria de imprensa da Acolhida informou que “não há exposição deliberada de pessoal ao coronavírus”. “Todos os protocolos estabelecidos no plano emergencial de contingenciamento para a covid-19, para medidas de controle em diversas situações e locais, estão sendo seguidos, tais como uso de máscaras, EPI e álcool 70%”, diz a nota, que minimiza a fala de Barros, descrita como “uso de figura de linguagem para emulação do moral e espírito dos integrantes da Operação” e “ mensagem de estímulo”.

Uma definição ambígua para uma instituição baseada em hierarquia em que “missão dada é missão cumprida” como o Exército.

Nem todo mundo pode se dar ao luxo de pagar por notícias neste momento.

E isso está tornando cada vez mais difícil financiar investigações que mudam vidas.

A maioria dos jornais lida com isso limitando o acesso a seus trabalhos mais importantes por meio de assinaturas.

Mas no Intercept Brasil, acreditamos que todos devem ter acesso igual à informação.

Se você puder, há muitos bons motivos para nos apoiar:
1) Nosso objetivo é o impacto: forçamos os ricos e poderosos a respeitar pessoas como você e a respeitar a lei
2) Somos financiados pelos leitores, não por corporações, e somos sem fins lucrativos: cada real vai para nossa missão de jornalismo sem rabo preso, não para pagar dividendos
3) É barato, fácil e seguro e você pode cancelar quando quiser

Escolha fortalecer o jornalismo independente e mantê-lo disponível para todos com uma doação mensal. Obrigado.

FAÇA PARTE

Faça Parte do Intercept

Entre em contato

Conteúdo relacionado

Inscreva-se na newsletter para continuar lendo. É grátis!

Este não é um acesso pago e a adesão é gratuita

Já se inscreveu? Confirme seu endereço de e-mail para continuar lendo

Você possui 1 artigo para ler sem se cadastrar