Greta Thunberg não conseguiu. Bill McKibben e a ONG 350.org também não. E nem o Acordo de Paris. Mas a covid-19 está reduzindo as emissões de dióxido de carbono e de outros gases de efeito estufa geradas pela atividade humana, graças à desaceleração ou paralisação total de viagens e de inúmeras atividades econômicas em todo o mundo.
Embora a queda das emissões de CO2 provocada pela pandemia de coronavírus não seja tão acentuada quanto a visível redução de poluentes “convencionais” (fuligem e fumaça), o efeito dessa primeira diminuição é muito mais significativo: fuligem e fumaça envenenam e matam no presente, enquanto os gases de efeito estufa seguem por aí para agredir o clima pelo próximo século. A queima de combustíveis fósseis nos dias de hoje equivale a uma sentença de morte para as futuras gerações. No sentido contrário, deixar de queimar combustíveis fósseis gera um benefício permanente.
Até agora o único declínio de emissões de CO2 digno de nota durante a era da consciência climática – que começou na primeira Conferência da ONU sobre o Clima, realizada em 1995 – foi em 2009, no início da Grande Recessão. Houve uma redução breve e moderada.
A atual retração, no entanto, pode ser dura o bastante para cortar pela metade o aumento anual da quantidade de dióxido de carbono na atmosfera – é esse dado que dita as mudanças climáticas, segundo cálculos de Charles Komanoff, coautor deste artigo e diretor do Carbon Tax Center.
Seria cruel considerar positiva a atual redução brusca de emissões de carbono, enquanto o número de mortes provocadas pelo coronavírus cresce de forma vertiginosa e muitas pessoas enfrentam privações e perdem seu sustento? E essas reduções não serão negadas quando o vírus for controlado e as emissões retornarem? Não e não.
Como tantas outras coisas que estão acontecendo, a questão em torno da redução de CO2 no futuro vai depender de quem reconstruir nossa sociedade após o vírus. Mas a redução não poderá ser rejeitada. Da mesma forma que as emissões de carbono persistem na alta atmosfera como agentes constantes das mudanças climáticas, emissões evitadas são um alívio permanente.
As viagens aéreas canceladas neste ano não serão feitas em 2021 pelo simples fato de que a maioria das pessoas que viajam de avião o fazem regularmente. Uma viagem perdida não é uma experiência extraordinária que vai precisar ser recuperada no ano que vem. Trata-se de uma viagem que não foi feita e ponto. O mesmo vale para deslocamentos a trabalho e lazer.
Então, sim, a queda repentina da queima de petróleo para uso em veículos e aeronaves deixa uma marca duradoura. A retração da economia dos Estados Unidos neste ano pode reduzir entre 30 e 40% as emissões de carbono que iriam para a atmosfera. Quedas similares – ainda que mais amenas – em outras partes do mundo poderiam reduzir uma parte por milhão (ppm) da atual concentração de 415 ppm de CO2 na atmosfera – certamente uma conquista modesta, mas algo sem precedentes na história moderna.
O sofrimento é uma outra história. Se uma calculadora de felicidade e tristeza pudesse quantificar prós e contras de eventos devastadores, a redução da quantidade de CO2 na atmosfera provocada pelo coronavírus seria menos importante do que as mortes e da perda da normalidade em nossas vidas.
Ainda assim, essa normalidade deve ser deixada para trás se quisermos deixar um planeta com vida para os nossos filhos.
O problema é como cortar as emissões de carbono com o mínimo de sofrimento e o máximo de justiça social e econômica – sem que a natureza force reduções por meio de pandemias e outros eventos caóticos sem precedentes, o que certamente pode acontecer.
O fato de que o nosso comportamento diante da covid-19 está sendo benéfico no enfrentamento das mudanças climáticas sugere que a “normalidade” pode ser alterada – e de forma rápida. Embora ainda não possamos apresentar modelos para uma redução de emissões igualitária e planejada, percebe-se o despertar de uma consciência social que se manifesta em quatro aspectos principais. Esses frutos da pandemia de coronavírus deveriam nos dar esperanças quanto às transformações necessárias para que a civilização não cometa um suicídio climático coletivo.
Em primeiro lugar, a retomada do prestígio e do valor da ciência. Quem assiste ao circo montado por Trump em seus comunicados diários sobre o coronavírus pode observar o imunologista Anthony Fauci – diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos – intervindo para corrigir comentários ignorantes e perigosos do presidente. De modo similar, sabemos que médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde estão cuidando dos doentes, na linha de frente do combate à pandemia. Epidemiologistas e jornalistas especializados em ciência trazem informações para que o público possa lidar com a situação. Além disso, químicos, biólogos e estatísticos desenvolvem estudos e testes para encontrar uma vacina que acabe com a epidemia. Como escreveu o pesquisador Michael Gerrard, as lições sobre mudanças climáticas da covid-19 farão ecoar os alertas dos cientistas, de modo a minimizar os perigos previstos e lidar com os impactos que seguirão sendo enfrentados.
Em segundo lugar, a crise está nos ajudando a ver o quanto nosso bem-estar depende de governanças fortes e proativas. Precisamos mais do que nunca de governos das pessoas para as pessoas. A atenção principal deve ser dedicada a elas e não às empresas – algo que ficou claro na resposta tímida das grandes empresas às quais Trump se dirigiu exigindo que fabricassem equipamentos de proteção aos profissionais de saúde.
Em terceiro lugar, talvez possamos abandonar o derrotismo de que nada pode ser feito de forma imediata. Veja o exemplo de tantas pessoas como nós que se isolaram em suas casas. Estamos aprendendo do dia para a noite que simplicidade não significa necessariamente austeridade; que uma vida frugal não precisa ser sinônimo de privação; e que podemos abdicar de nossos direitos ao lazer e ao consumo quando temos um propósito maior – atualmente, impedir o adoecimento e a morte de outros seres humanos; a longo prazo, achatar a curva crescente de emissões de carbono e paralisar de forma drástica o caos climático.
Por fim, se nossa sociedade é capaz de agir para produzir um milhão de respiradores e um bilhão de máscaras de proteção, certamente teremos condições, dentro de alguns anos, de agir em uma escala muito maior para construir e instalar um milhão de turbinas eólicas e centenas de milhões de células de energia solar, abrir faixas de ciclovias em nossas cidades, e assim por diante. Com a pandemia de coronavírus exigindo um recomeço brutal mas necessário, poderemos jogar fora, para o nosso bem, todo o individualismo que impediu esse tipo de avanço até agora.
O mais comovente é que a crise inculca um apreço renovado pela solidariedade. Por paradoxal que pareça, quanto mais somos forçados a nos isolar, mais nos damos conta da necessidade de consciência social e de relações solidárias entre as pessoas.
Para que eu tenha saúde, você não pode ficar doente. Minha alimentação depende da sua capacidade de plantar, transportar e distribuir comida. Minha vida agora está literalmente nas suas mãos, quando você decide restringir suas atividades em espaços públicos, manter a distância adequada em relação a outras pessoas e respeitar as medidas de isolamento.
Se precisamos tanto um do outro, como posso tolerar que você não tenha um sistema de saúde acessível? Neste momento, quando fica evidente a precariedade com que vive metade – ou mais – da população dos Estados Unidos, como posso aceitar um governo que prioriza a saúde dos bilionários – cuja remuneração em uma semana é maior do que o dinheiro que ganhamos ao longo de uma vida – em detrimento dos 90% de norte-americanos que ganham menos de cem mil dólares por ano?
De que forma a solidariedade tem a ver com o clima? Em tudo. Pessoas com saúde frágil e de bolsos vazios não têm condições de lutar por ações climáticas, mas podem agir se o governo lhes der amparo, por meio do Green New Deal – um plano de combate às mudanças climáticas –, com bons salários, para que elas implementem as transformações necessárias.
Há muitas sinergias. Ao oferecer pagamento direto às famílias norte-americanas, o governo está a um passo de pagar mineiros e pecuaristas para que instalem células de energia solar e façam a manutenção de parques eólicos. A possibilidade de uma renda garantida, ainda que temporária, pode ser o caminho para uma abordagem de “dividendos de carbono” que resulte em impostos sobre os combustíveis fósseis sem prejudicar os mais necessitados. Além disso, trocar um volume frenético de viagens ao exterior por roteiros locais poderia reduzir o tamanho de empresas socialmente destrutivas como o Airbnb, fazendo com que os aluguéis de apartamentos sejam mais acessíveis, reduzindo a quantidade de deslocamentos longos e as pegadas de carbono.
No que tange os super-ricos, suas fortunas nunca se mostraram tão destrutivas. Em todo o mundo, os 5% que estão no topo da pirâmide queimam mais carbono do que a metade mais pobre, segundo estudo recente da Universidade de Leeds. Diante da pandemia, será que as pesquisas e discussões sobre desigualdade econômica da última década poderiam culminar em novas tentativas de transformar fortunas privadas em uma nova forma de riqueza compartilhada, com base em fontes de energia renovável e comunidades sustentáveis?
Mais do que a retirada de investimentos de combustíveis fósseis e as ações judiciais de entidades de classe, esse é o tipo de programa que de fato nos libertará do império dos combustíveis fósseis, do qual dependem os portfólios dos super-ricos. Nesse processo, a aspiração tóxica de pertencer ao mundo dos bilionários poderia ser abandonada. Adeus, vontade de adquirir um helicóptero. Adeus, sonho de ter uma ilha privada. Adeus, congressistas comprados com dinheiro sujo.
Esperamos que as elites que seguem a icônica frase direitista de Margaret Thatcher de que “essa coisa de sociedade não existe” sejam em breve contestadas pelos milhões de cidadãos que, diante da pandemia, já se deram conta de que estamos todos no mesmo barco furado.
Economista e ativista, Charles Komanoff vive em Nova York e é diretor do Carbon Tax Center. Christopher Ketcham vive no interior do estado de Nova York e é autor do livro “This Land: How Cowboys, Capitalism, and Corruption are Ruining the American West”.
Tradução: Ricardo Romanoff
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