Quando o coronavírus começou a se espalhar, a Mongólia adotou medidas de precaução: fechou seus mais de 4.500 km de fronteiras terrestres com a China e restringiu a entrada de viajantes que partissem da Coreia do Sul e do Japão – à época, também epicentros da pandemia. Mesmo assim, o vírus chegou à Mongólia: o primeiro infectado – ou “paciente zero”, no jargão epidemiológico – foi um francês que ingressou no país via Moscou.
A história se repete em muitos outros países que passaram a enfrentar a pandemia devido ao ingresso de viajantes infectados que chegavam da Europa. Os primeiros casos de coronavírus na África do Sul foram de pessoas que visitaram o norte da Itália para esquiar. Na América Latina, o paciente zero foi um brasileiro que passou pela Lombardia. Os primeiros contaminados de Bangladesh também tinham viajado à Itália. No Panamá, o caso inicial foi importado da Espanha. Na Nigéria, a primeira experiência foi com um italiano que viajava a trabalho. O início da pandemia na Jordânia também tem origem na Itália.
Enquanto a covid-19 se espalha pelos Estados Unidos e assola diversos países, políticos lutam para construir a narrativa de quem é o culpado. O vírus começou na China, isso é claro, mas os discursos sobre como a epidemia se tornou uma pandemia global geralmente deixam de lado um elemento decisivo: o papel da Europa.
Os países europeus foram impactados de modo muito mais severo do que as nações asiáticas e espalharam o vírus de forma mais significativa do que outras regiões. O Intercept analisou novos estudos sobre os pacientes zero de covid-19 em todo o mundo, e os resultados são alarmantes. Viagens saindo da Europa – e deslocamentos internos – são responsáveis pelos primeiros casos de coronavírus em ao menos 93 países, nos cinco continentes, resultando em mais da metade dos primeiros casos de cada país. Viagens saindo da Itália levaram pacientes zero a 46 nações, enquanto as da China resultaram no início da contaminação em 27 países.
Os países europeus demoraram a cancelar seus voos. Essa é uma das razões pelas quais as viagens oriundas da Europa facilitaram a disseminação do coronavírus. O principal terminal de Milão foi paralisado em 16 de março, quando a região da Lombardia, no norte da Itália, já contava 3.760 casos em uma população de 10 milhões. Em contraste, a China cancelou os voos que saíam de Hubei em 23 de janeiro, quando havia 500 casos relatados em todo o mundo e 17 mortes na província chinesa, cuja população é de 58 milhões. Os aeroportos de Heathrow (Londres) e Charles De Gaulle (Paris) seguem funcionando, enquanto o número de casos aumenta no Reino Unido e na França. Na Espanha, as operações dos maiores aeroportos de Madri e Barcelona só foram interrompidas quando o tráfego aéreo já tinha sido drasticamente reduzido.
A imprensa dedicou uma atenção relativamente pequena ao papel da Europa como aceleradora da disseminação do vírus. Um gráfico do New York Times que se popularizou nas últimas semanas apresenta o monitoramento da disseminação, mas só do período em que a China é a maior exportadora do vírus. Outras matérias têm o país asiático como alvo mais claro, como o artigo do The Atlantic que argumenta: “É hora de culpar alguém? Sim.”
Em alguma medida, essa ideia faz sentido: a eclosão do vírus aconteceu em Wuhan – 9º cidade mais populosa da China – e as autoridades do país inicialmente acobertaram o perigo da contaminação. Viajantes que saíram da China infectaram pessoas em países como Coreia do Sul, Itália, Rússia, Alemanha, Índia e Estados Unidos.
Mas enquanto China, Coreia do Sul, Taiwan e Hong Kong estabilizavam os números relacionados ao coronavírus – numa combinação de testes massivos, mapeamento rigoroso do contato entre as pessoas e medidas rígidas de isolamento –, a contaminação nos países europeus disparava. Apesar de terem visto o contágio devastador na China e a resposta imediata dos países vizinhos, a Europa foi atropelada pela velocidade da contaminação que partiu de Milão, Paris e Londres rumo a países vizinhos, África e América Latina.
“Os países europeus pediram conselhos aos asiáticos? Imagino que não”, disse François Dabis, diretor da Agência de Pesquisa de Aids e Hepatite de Bordeaux, na França. “Vimos as reações nos países asiáticos, mas naquele momento não pensamos que eles seriam um modelo, pois não pensamos que teríamos a mesma epidemia.” Dabis acrescenta que as autoridades de saúde pública europeias começaram a elaborar suas respostas ao coronavírus tendo como base a epidemia da SARS, de 2003, que se manteve mais localizada na Ásia.
Muitos países do leste asiático desenvolveram suas análises e o monitoramento do contato entre as pessoas depois da SARS, embora a Coreia do Sul tenha aprendido as lições mais importantes da experiência com o MERS, em 2015, quando a produção de testes atrasou devido a regulações então em vigor. Por conta disso, o país se preparou para responder à covid-19 com testes imediatos e generalizados. “Depois de 2015, eles mudaram a legislação para permitir que, durante uma crise de saúde pública ou de doença infecciosa, fosse possível aprovar e implementar novas testagens de diagnóstico de forma muito mais rápida, usando o teste da Organização Mundial de Saúde como modelo”, disse Claire Standley, pesquisadora no Departamento de Saúde Internacional da Universidade de Georgetown. Por outro lado, a Food and Drug Administration, FDA – agência de vigilância sanitária norte-americana – permitiu que apenas um centro de prevenção e controle de doenças desenvolvesse testes nas primeiras semanas, afetando de forma drástica a capacidade dos Estados Unidos de conter a pandemia.
Itália, França, Espanha e Reino Unido também falharam no incremento do volume de testes. “Faltou capacidade logística para testar, e seguimos sofrendo por isso na França”, afirmou Debris. O pesquisador explica que, na Europa, somente a Alemanha tem o parque industrial necessário para produzir testes da covid-19 de modo urgente e em grande escala – a França, ele acrescenta, “não obteve testes da Ásia em grande quantidade”.
O resultado é significativo: a Europa se tornou uma placa de Petri, e as viagens saindo do continente impactaram o mundo inteiro, com efeitos mais danosos na África e na América Latina. “O legado colonial vive em momentos virais. Não me surpreendeu que uma viagem da Bélgica resultasse no primeiro caso conhecido na República Democrática do Congo”, disse Adia Benton, antropóloga da Universidade de Northwestern. “O ‘conhecido’ também é um sintoma colonial. É bem possível que tenha havido um caso anterior, mas sabemos o dos viajantes. A doença deles fica registrada.” O primeiro caso em Senegal, por exemplo, foi importado da França; em Gambia, do Reino Unido; em Angola, de Portugal; e no Suriname, da Holanda. No Facebook e em grupos de WhatsApp, foi usado o termo “coronizados”, num trocadilho com a palavra “colonizados”.
Na África, a disseminação da covid-19 atingiu primeiro a classe política devido a suas frequentes viagens ao exterior. Um único evento em Londres, com a participação do príncipe Charles e do príncipe Alberto II de Mônaco, por exemplo, criou possíveis focos de contaminação em pelo menos dois países africanos. Embora o primeiro caso em Moçambique tenha sido confirmado oficialmente em 20 de março, alguns jornalistas especularam que a primeira pessoa contaminada no país possa ter sido Eneas Comich, prefeito de Maputo, capital moçambicana. O mandatário possivelmente contraiu o vírus em um evento da WaterAid, realizado em 10 de março, em Londres, no qual sentou-se à mesa com os príncipes Charles e Alberto – que testaram positivo pouco tempo depois. Há inclusive imagens de Charles tossindo e cobrindo a boca com a mão durante o evento.
O ministro de Água e Saneamento de Burkina Faso, Niouga Ambroise Ouédraogo, também participou do encontro – e há suspeitas de que tenha sido mais um a se contaminar na ocasião. Ele é um dos sete ministros do país africano que foram infectados pelo coronavírus, prejudicando gravemente o governo – que luta para conter uma disseminação acelerada do vírus.
Os Estados Unidos se tornaram o novo epicentro da pandemia, que provavelmente se estenderá por meses ou anos. “Será necessário [mecanismos para] uma responsabilização global de como gerenciamos pandemias”, disse Standley. “Nesse momento não acredito que seja proveitoso usar a pandemia para estimular discursos nacionalistas ou apontar o dedo e identificar culpados. Mas acredito que seja possível responsabilizar nossos sistemas e governos no que diz respeito a como poderiam ter respondido melhor.”
Segundo Dabis, na falta de uma estratégia coerente da OMS e da ONU, os europeus acreditaram em suas próprias instituições, mas acabaram se decepcionando. “Pensamos que as organizações políticas que brotaram nos últimos anos – G7, G20, Comissão Europeia – pudessem ter trazido soluções, mas vemos claramente que não chegaram a nenhuma”, disse. “Cada país faz o que quer, quando quer. Não há uma visão global.”
Tradução: Ricardo Romanoff
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