Garoto joga bola na praça Custódio F. Ferreira, a praça Pôr-do-sol, no Alto de Pinheiros, em São Paulo.

A vida de um jogador de base na bagunça dos grandes times do Brasil: sorte a sua se houver arroz e feijão

Longe dos holofotes, o sonho de jogar futebol no Brasil esbarra em condições precárias – e, às vezes, mortais.

Garoto joga bola na praça Custódio F. Ferreira, a praça Pôr-do-sol, no Alto de Pinheiros, em São Paulo.

Ser jogador de futebol. Quanta gente já não sonhou com isso?

Com 11 anos, eu levei essa ideia a sério e entrei para as categorias de base de um time de Porto Alegre. Fiquei apenas seis meses. Felizmente, minha família tinha condições financeiras que me permitiram priorizar os estudos. Depois dessa breve experiência, só voltei a pensar no assunto aos 17 anos.

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Engraçado que, quando você entra nesse mundo, percebe que os sonhos vão ficando cada vez mais distantes. E, ao mesmo tempo, você está lá, lutando. As pessoas de fora veem você como uma “estrela”, como se sua vida fosse igual à dos caras que aparecem na TV. Mas a realidade é uma merda. Acham que você tem dinheiro, um carro bom, roupas de marca, sendo que às vezes nem tem travesseiro para dormir ou cobertor para se esquentar. No caso do meu ex-treinador Emerson, que jogou nas categorias de base, o cobertor era sua toalha de banho. Ele a deixava secando de manhã cedo para se cobrir de noite. Aliás, sorte a sua se houver arroz e feijão em dia de jogo, diferente do meu amigo “Índio”, que jogou o campeonato estadual no Mato Grosso. Lá o seu almoço era um pote de bananas – e isso que ele já jogava no profissional.

Uma vez perguntei se o treino iria continuar, e o treinador respondeu, me xingando: “tu tá com medo de raio?”

Fora as condições precárias, vocês acham que a gente ganha quanto por mês? Dedicamos todo nosso tempo, esforço e foco para isso, dormindo regrado, acordando cedo, dando a vida nos treinos, faça sol, chuva, calor, frio e até raio caindo – uma vez perguntei se o treino iria continuar, e o treinador respondeu, me xingando: “tu tá com medo de raio?”

Depois de nos doarmos ao máximo, longe de nossas famílias, quanto vocês acham que recebemos de remuneração? Menos de um salário mínimo. Ou às vezes nenhuma, como ocorre com meu parceiro Luquinhas, que joga na quarta divisão de Portugal. Em outros clubes, é só um vale-transporte mensal, porque, querendo ou não, os jogadores precisam ir para os treinos durante a semana. Pelo menos disso os dirigentes se dão conta.

Mas e quando não dá para reservar a grana só para o transporte? E quando você tem filhos? Quando tem que ajudar a família com o pouco que ganha? Sua mãe? Seus irmãos? Eu tenho amigos que seguem no futebol, mas já abandonaram o sonho de se tornar grandes ou de ter uma vida melhor: eles jogam apenas porque é o que lhes resta, é isso que eles têm, e pronto. É o que eles foram ensinados a fazer, é o que eles sabem fazer em um país com cada vez menos investimentos em educação pública. E essa é a única saída “limpa” e “justa” que eles encontram, para quem sabe um dia sair da pobreza. Na verdade, eles têm outro caminho a seguir, e vocês sabem de qual eu estou falando. Esse mesmo: o crime. Às vezes, alguns até conseguem conciliar os dois, tráfico e futebol.

Na segunda-feira, mesmo dia em que o alojamento do Bangu pegou fogo, um ex-companheiro de clube, que está jogando a segunda divisão do Campeonato Gaúcho, no profissional, me pediu dinheiro emprestado porque a polícia pegou a droga dele, e ele estava devendo para os donos da boca. Decidiu vender drogas para aumentar sua renda, que não é suficiente para sustentar sua mãe e seus irmãos.

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Imagem: arquivo/Ramiro Simon

Situação parecida aconteceu com meu amigo Adilio, que jogou comigo no profissional da segunda divisão do Rio de Janeiro. Ele nunca vendeu droga, nada disso. Mas, com o salário de R$ 1 mil que recebia, já ajudava a manter sua família e sua casa na favela. Só que a temporada durava apenas seis meses. No resto do ano, fechava “contrato” com o pai dele e virava pedreiro na pré-temporada. E o Léo, um dos melhores volantes do campeonato nessa mesma temporada? Lá estava ele, vendendo chá-mate na beira da praia durante as férias – quando não fazia um bico de barbeiro.

Em 2017, disputei a Copa São Paulo de Juniores pela equipe sub-20 da Chapecoense. Os clubes de cada grupo ficam no mesmo lugar durante a primeira fase. Dividimos hotel com o Nova Iguaçu, do Rio de Janeiro, e o Sampaio Corrêa, do Maranhão. Na sala de jogos, jogando pingue-pongue, um dos meninos do Nova Iguaçu perguntou quanto que a gente ganhava por mês. Eles ficaram impressionados: R$ 600, um salário do qual nós mesmos reclamávamos o tempo inteiro. Eles ganhavam R$ 80 por mês. Com o time do Maranhão não tivemos a oportunidade de conversar sobre isso, mas sei que eles ficaram três dias dentro de um ônibus para chegar até São Paulo, algo comum com equipes do Norte ou Nordeste que tentam jogar a principal competição de base do Brasil. As federações ajudam pouco ou nada.

Em 2015, mais de 82% dos jogadores de futebol recebiam menos de R$ 1 mil por mês, segundo a CBF.

Eu poderia escrever um livro sobre todas as histórias que eu ouvi ou testemunhei no verdadeiro mundo do futebol. Isto que eu descrevi é a situação atual da imensa maioria dos atletas no Brasil. Mesmo entre os profissionais: em 2015, mais de 82% dos jogadores de futebol recebiam um salário inferior a R$ 1 mil, de acordo com a Confederação Brasileira de Futebol. E deve ter muita história pior, que eu nem sei ou nem imagino. Cada dia é uma surpresa: quando você acha que já viu de tudo, você acaba tomando banho de mangueira na frente do vestiário, porque os chuveiros estão todos estragados. No clube onde isso aconteceu, a água que tomávamos vinha em um cooler – na verdade, era uma mistura de água com grama, com bolhas de óleo por cima. Um amigo meu até brincava “rapaz, a piscina lá de casa é mais limpa que essa água”. Nós que vivemos do futebol não temos ideia do que pode acontecer. Sempre tem algo novo, mas nós não nos damos conta, porque estamos sempre focados no nosso sonho, que é o que nos motiva perante as inúmeras dificuldades e humilhações.

Partida durante a Copa de Seleções Estaduais Sub-20, em 2017.

Ramiro jogando pela seleção gaúcha durante a Copa de Seleções Estaduais Sub-20, em 2017.

Foto: arquivo pessoal/Ramiro Simon

Acho que é por isso que o futebol continua. Porque no fundo, no meio de tudo isso, nós temos fé de que um dia sairemos dessa situação, de que um dia vamos alcançar este lugar privilegiado, que poucos conquistam, e que todo mundo assiste na televisão. Por mais impossível que pareça, e que a realidade do mundo grite na nossa cara que não dá, que é um em um milhão que chega lá.

Ainda assim, continuamos. A gente carrega a alma daquela criança sonhadora. Ela ainda sonha dentro de nós, esperando o dia em que nos tornaremos jogadores de futebol. Agora, aos 21, sigo correndo atrás desse objetivo. Sou volante e estou em teste para jogar em um time da primeira divisão do Canadá.

E é por essa persistência que a ganância de quem organiza o futebol passa despercebida. Às vezes até percebemos, mas não tem o que fazer, né? Vamos arriscar nosso sonho reclamando que gostaríamos de um salário digno? Ou de uma alimentação melhor? Ou de uma cama melhor? Ou um ventilador? É assim e deu. Se você incomodar muito, é mandado embora, e eles acham outro por aí. O que mais tem é garoto querendo o nosso lugar. Para a maioria dos que financiam o futebol no país, esses princípios básicos são “desperdício de dinheiro”, porque não dão retorno a curto prazo. Ninguém entrou nessa para perder, não é? E quem paga a conta somos nós. No pior cenário, pagamos com a vida. Foi o que aconteceu com os garotos do Flamengo.

Este é o mundo do futebol: milhares de sonhos no meio de falsidade, ganância, corrupção e egoísmo. E tudo isso longe da família, longe de casa, desde bem cedo. Abrimos mão de tudo pelo nosso objetivo.

Muitos falam que jogador de futebol só fala em Deus. Não é para menos: só Ele é capaz de nos manter firmes diante disso tudo. No papel, as chances são mínimas.

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