El Salvador quer parar a violência de gangues, mas o governo Trump segue apoiando ações baseadas na fracassada política “mãos de ferro”

El Salvador quer parar a violência de gangues, mas o governo Trump segue apoiando ações baseadas na fracassada política “mãos de ferro”

O governo dos EUA financia importantes novos programas de reabilitação de gangues salvadorenhas com uma mão, e policiamento punitivo com a outra. Não dá certo.

El Salvador quer parar a violência de gangues, mas o governo Trump segue apoiando ações baseadas na fracassada política “mãos de ferro”

Oswaldo entrou para a gangue salvadorenha Barrio 18 quando tinha 14 anos. Aos 20 e poucos anos, quis sair. Felizmente, os líderes da gangue lhe deram permissão para isso. Mas o avisaram: “Ninguém lá fora vai estender a mão para você como a gangue faz”.

Durante muito tempo, isso foi verdade. Para Oswaldo, seu grupo na gangue era sua família adotiva. Cuidavam dele e conseguiam comida e abrigo para ele e sua família. Fora do bando, vulnerável e sozinho, ele mal conseguia se virar vendendo escovas de dentes em um mercado. Oswaldo havia concluído o ensino médio e esperava encontrar um emprego estável. Mas, ao ser chamado para uma entrevista, lembra, “a primeira pergunta foi: ‘Você é membro de gangue?’” E depois: Você é tatuado? Você tem parentes em gangues? Amigos? Você é de um bairro controlado por gangues? Oswaldo negou seu passado durante todo o interrogatório, mas não pode mentir quando o entrevistador disse que ele precisava levantar a camisa. O torso de Oswaldo é coberto com tatuagens da Barrio 18. Assim, ele foi rejeitado em mais um emprego. Logo depois, a mulher foi embora com o filho pequeno dos dois, chamando Oswaldo de fracassado.

Ele contou a um pastor de confiança que estava tendo dificuldades. Em particular, estava tão desesperado que pensava em voltar para a gangue. O pastor disse a ele que conhecia uma empresa que queria contratar ex-membros de gangues. Oswaldo não pôde acreditar.

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“Este é um país em que as pessoas não acreditam que membros de gangues possam mudar”, disse ele ao Intercept no semestre passado, sentado em uma sala de reuniões, empregado da empresa de que o pastor lhe falou naquele dia, três anos antes. A empresa é a League Central America, uma fábrica têxtil que faz uniformes para universidades americanas como Arizona State e Yale. O presidente da League, Rodrigo Bolaños, tem sido um raro e vocal defensor da contratação de ex-membros de gangues entre a comunidade empresarial salvadorenha. Bolaños argumenta que o problema das gangues em El Salvador não é tão complicado. Houve gangues em todo o mundo, da Inglaterra a Chicago, em todos os períodos da história, diz ele.

“Da mesma forma que as gangues os criam, também podemos tirá-los das gangues com forças positivas como segundas oportunidades e educação”, disse ele. A empresa testa quem pertenceu às três principais gangues rivais de El Salvador – a MS-13 e duas facções da Barrio 18 – com técnicas como jogos para quebrar o gelo, que exigem proximidade física. Segundo Bolaños, se um novo contratado não suportasse os testes, “ainda não estava pronto”. A empresa subsidia a educação secundária e universitária dos funcionários, caso eles ainda não tenham concluído os estudos, e oferece aulas no local.

A iniciativa da League tem sido amplamente celebrada, até mesmo por dois líderes da MS-13, que chegaram a convocar Bolaños para uma reunião na prisão onde são mantidos para dizer que esperavam que todos seus membros pudessem passar por um programa como o dele. Um crescente corpo de pesquisa sobre desistência de gangues descobriu que é essencial focar em pessoas que tenham saído recentemente ou desejam sair de uma gangue, oferecendo reabilitação e emprego. “A League é um modelo de como reinserir ex-membros de gangues na sociedade”, concluiu uma importante pesquisa acadêmica sobre a participação de gangues em El Salvador em 2017.

Rodrigo Bolaños, centro, presidente da League Central America, fotografado com dois detentos não identificados dentro da prisão de Apanteos, em Santa Ana, El Salvador.

Rodrigo Bolaños, centro, presidente da League Central America, fotografado com dois detentos não identificados dentro da prisão de Apanteos, em Santa Ana, El Salvador.

Foto: Salvador Meléndez

O governo dos EUA demorou um pouco mais para se aproximar. Um dia, há alguns anos, dois representantes do Escritório de Assuntos Internacionais de Narcóticos e Aplicação da Lei do Departamento de Estado, ou INL, fizeram uma visita. Bolaños conta que eles se mostraram céticos. Ele teve a impressão de que eles “não acreditavam nisso”. Mas, depois de passar duas horas conversando com Bolaños e de visitar a fábrica, pareceram satisfeitos – e a INL acabou investindo em um programa que direcionaria especificamente ex-membros de gangues que haviam acabado de cumprir penas de prisão para trabalhar na League.

Pode parecer normal que o governo dos EUA direcione fundos para um programa que pareça tão salutar. Mas para El Salvador e países vizinhos, como Honduras e Guatemala, isso representa uma mudança tênue e delicada na política externa dos EUA. Isso marca um distanciamento de anos de uma abordagem apoiada pelos EUA que favorecia a resposta mano dura, ou “mão de ferro”, às gangues, e basicamente evitava trabalho que envolvesse diretamente membros e ex-membros de gangues que desejassem deixar o crime e a violência para trás. A política anterior dos EUA errou na direção de uma resposta quase que exclusivamente militar, policial e de encarceramento em massa; e quando o trabalho de prevenção da violência foi financiado, o governo estipulou que as organizações que implementassem projetos financiados pelos EUA no local deveriam garantir que os participantes não tivessem vínculos com gangues. Na verdade, até recentemente, segundo restrições do Departamento do Tesouro dos EUA, era proibido usar dinheiro de ajuda do governo para qualquer programa que envolvesse diretamente membros da MS-13.

Essa mudança de política pode ser ameaçada pelas atitudes e ações, atualmente em voga na Casa Branca, que pretendem demonizar membros de gangues. De sua campanha presidencial até a recente política de separação de famílias na fronteira, o presidente Donald Trump usou a MS-13 para justificar suas exigências por leis de imigração mais severas. Ele vem insistindo que seus membros – que chamou repetidamente de “animais” – sejam tratados como uma ameaça existencial aos Estados Unidos.

Mas embora Trump e muitos em sua administração ajam como se houvesse gangues salvadorenhas devido a uma falta de resistência, partes do governo federal dos EUA na América Central – que por anos permitiram a implementação exatamente do tipo de política que Trump agora pede – reconheceram que a mano dura falhou. “Foi uma política que não teve resultados positivos”, disse Enrique Roig, ex-coordenador da Iniciativa de Segurança Regional da América Central para a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), um importante veículo para os fundos americanos para a região. “Toda a intenção de se concentrar mais no lado da prevenção, na aplicação respeitosa da lei” era corrigir os erros do passado, como “o uso do encarceramento como o principal método para lidar com o problema”. O objetivo também era construir “relações de confiança entre comunidades e policiais, para que as pessoas nas comunidades denunciem crimes de fato e a polícia saiba o que está acontecendo, respondendo de uma maneira que respeite os direitos humanos”.

Exportando uma abordagem fracassada

Nos anos 1980 e 1990, as forças policiais nas principais cidades dos EUA mergulharam de cabeça em uma abordagem dura do crime conhecida como “janelas quebradas” ou policiamento “tolerância zero”, usando vigilância e altas taxas de detenção em resposta a todos os crimes de menor importância, a fim de conter os crimes maiores. Décadas mais tarde, os Estados Unidos ainda estão lutando com o legado fracassado do método janelas quebradas, incluindo o encarceramento em massa e a brutalidade policial que desencadearam movimentos como o Black Lives Matter e uma onda de reforma da justiça criminal. Mas os países da América Central ainda estão implementando políticas antigangues de tolerância zero, impulsionadas e apoiadas pelo governo dos EUA. E este é o caso, apesar do fato de que a abordagem geralmente não obteve sucesso em reduzir as taxas de criminalidade em toda a região; na verdade, muitas vezes, os próprios poderes policiais e militares estiveram envolvidos em crimes.

El Salvador, como a maioria dos países, há muito tempo tem crianças descontentes em comunidades pobres criando gangues. O antropólogo salvadorenho Juan José Martínez D’Aubuisson data as primeiras gangues aos anos 1950, quando a modernização do estado provocou uma migração interna massiva e desorganizada para os centros urbanos. O que surgiram foram as equipes de bairros ou escolas, defendendo suas honras e seus territórios com lutas corporais e brigas com facas. Desde meados da década de 1990 e no início dos anos 2000, as equipes domésticas se misturaram com o legado violento de uma guerra civil recentemente encerrada – e com a cultura das gangues de rua dos EUA, que chegou junto com as dezenas de milhares de salvadorenhos deportados dos Estados Unidos durante esse período. De acordo com o FBI, muitos desses deportados eram membros de duas gangues formadas nos EUA e compostas principalmente por refugiados de guerra salvadorenhos: a Mara Salvatrucha, também conhecida como a MS-13, e a Barrio 18.

À medida que as gangues cresceram em tamanho e poder, os sucessivos governos salvadorenhos reagiram com a mano dura, fazendo isso com total apoio dos Estados Unidos. Implementada oficialmente primeiro em 2003, a política tem sido consistentemente vendida ao povo salvadorenho como o antídoto para uma explosão de violência entre gangues que fez com que milhares de pessoas de El Salvador rumassem a países vizinhos ao norte para buscar asilo nos Estados Unidos. Mas, por causa da mano dura, os jovens em bairros marginalizados enfrentam o abuso policial, incluindo tortura e assassinatos extrajudiciais. Desde a adoção da política em 2003, as prisões de El Salvador se tornaram famosas: uma visita das Nações Unidas em 2017 encontrou uma prisão operando com mais de 900% de sua capacidade e outras com ocupações entre 200% e 600%. Presos morrem regularmente de doenças evitáveis. Enquanto isso, a política fracassou em seu único objetivo. Paradoxalmente, quando ela foi implementada, o país tivera quase uma década de taxas de homicídio em declínio, mas, desde então, a violência aumentou, disparando nos últimos três anos, de modo que El Salvador manteve seu lugar como uma das capitais de assassinatos do mundo.

Membros da gangue MS-13 em uma das três "gaiolas de gangues" de 12x15 na delegacia de polícia de Quezaltepeque em 20 de maio de 2013, em San Salvador, El Salvador.

Membros da gangue MS-13 em uma das três “gaiolas de gangues” de 12×15 na delegacia de polícia de Quezaltepeque em 20 de maio de 2013, em San Salvador, El Salvador.

Foto: Giles Clarke/Getty Images

Com a mano dura se transformando, ao longo dos anos, em um conflito de baixa intensidade entre as gangues e o governo, organizações da sociedade civil em El Salvador vêm tentando uma abordagem alternativa: trabalhar diretamente com gangues para ajudar membros a abandonar ou renunciar à violência ou, em alguns casos, intervindo para mediar e interromper os assassinatos de vingança, por exemplo. Essas iniciativas são frequentemente baseadas em programas de cidades norte-americanas como Boston, Chicago e Los Angeles (a cidade onde se originaram as maiores gangues de El Salvador).

No jargão do setor de ajuda, esse trabalho é conhecido como “prevenção da violência terciária”, e implica trabalhar com pessoas que não estejam “em risco”, mas que já estão em conflito com a lei. É um tipo de justiça restaurativa, não punitiva. Não importa a forma, a prevenção da violência terciária enfrenta intenso ceticismo e envolve riscos significativos. Além de exigir uma proximidade com a violência praticada por alguns membros de gangues e autoridades de segurança do Estado, os grupos que trabalham com gangues são, muitas vezes, criminalizados, por meio da aplicação da lei ou pelo público em geral, como simpatizantes de criminosos.

Não ajudou o fato de que o governo dos EUA se concentrou em capacitar a polícia salvadorenha e pouco fez para abordar as causas da violência das gangues. Conforme Roig, isso se deveu a “nervosismo e preocupação” generalizados quanto o trabalho terciário.

O impacto da reticência em El Salvador foi que, em qualquer projeto que recebesse recursos federais dos EUA, “era estritamente proibido trabalhar com jovens em conflito com a lei”, disse Rick Jones, da Catholic Relief Services. Importante organização internacional não-governamental e uma das pioneiras da prevenção terciária em El Salvador, a Catholic Relief Services vinha, desde o início dos anos 2000, fazendo trabalho de rua com membros e ex-membros de gangues para interceder em ciclos de violência e para ajudá-los a conseguir empregos lícitos para que pudessem deixar as gangues. O governo dos EUA foi bastante escrupuloso em relação a esse trabalho inovador.

A política foi apoiada por lei em outubro de 2012, quando o Departamento de Controle de Ativos Estrangeiros do Departamento do Tesouro designou a MS-13 como “organização criminosa transnacional”, acrescentando a gangue a uma lista ao lado de grupos terroristas como a Al Qaeda. Muitos especialistas contestam a extensão e o alcance das atividades transnacionais das gangues, incluindo o tráfico de drogas entre países, argumentando que a maioria dos grupos é formada por crianças dos bairros mais pobres do país, que mal conseguem se alimentar. Ainda assim, a designação colocou em movimento uma cadeia de possibilidades para o governo dos EUA. Por um lado, permitiu ao INL abrir um escritório de campo no país, o que seria impossível sem a presença de um grupo criminoso transnacional oficialmente designado. Em 2016, a Imigração e fiscalização alfandegária dos EUA construiu uma estratégia transfronteiriça em torno da designação, “destacando para El Salvador agentes especiais” que trabalhariam com a polícia civil nacional salvadorenha para perseguir os bens da gangue e agir em um “fluxo livre de inteligência acionável entre o setor e nossos parceiros de aplicação da lei do país anfitrião”.

O impacto direto da designação do Departamento do Tesouro é que se tornou ilegal para cidadãos e corporações norte-americanas se envolverem em transações financeiras com membros da MS-13. O impacto indireto foi que também se tornou ilegal que as agências federais dos EUA apoiassem financeiramente qualquer programa que envolvesse membros da gangue, mesmo que o objetivo do programa fosse tirar esses membros das organizações criminosas.

Em zonas de conflito em todo o mundo, essas designações tiveram efeito inibidor sobre o trabalho terciário em que atores do governo ou da sociedade civil tentam se envolver com grupos armados para acabar com a violência. As designações interromperam as negociações de paz e levaram ao desmantelamento da negociação em lugares tão diversos quanto as Filipinas, o Paquistão, o Sri Lanka e a Índia.

A designação em El Salvador veio na esteira de uma trégua secreta, à qual os EUA se opunham. Em março de 2012, o governo salvadorenho levou a MS-13 e a Barrio 18 a uma mesa de negociação, e agências de cooperação internacional da União Europeia e de outros países se comprometeram a criar iniciativas destinadas a ajudar ex-membros de gangues a se desarmar e reingressar na sociedade. Sete meses depois, os EUA acrescentaram a MS-13 a uma lista de grupos terroristas e organizações de lavagem de dinheiro de alto nível.

Líder da Barrio 18, Carlos Mojica Lechuga, à direita, gesticula durante uma entrevista coletivas em uma prisão feminina em San Salvador, El Salvador, em 24 de setembro de 2012. Os líderes da Barrio 18 e da MS-13 concederam uma entrevista coletiva para celebrar os 200 dias de trégua entre as gangues rivais.

Líder da Barrio 18, Carlos Mojica Lechuga, à direita, gesticula durante uma entrevista coletivas em uma prisão feminina em San Salvador, El Salvador, em 24 de setembro de 2012. Os líderes da Barrio 18 e da MS-13 concederam uma entrevista coletiva para celebrar os 200 dias de trégua entre as gangues rivais.

Foto: Jose Cabezas/AFP/Getty Images

“Era uma crença equivocada na embaixada dos EUA que as gangues salvadorenhas eram uma espécie de empreendimento criminoso sofisticado”, disse Adam Blackwell, diplomata canadense envolvido em negociações de trégua. “Eu ficava dizendo a eles: ‘Se isso for verdade, se eles estão operando no nível dos cartéis, mostrem-me o dinheiro’. E ninguém nunca conseguiu fazer isso.”

Segundo Blackwell, a trégua foi elaborada com base em padrões internacionais para processos de desmobilização pós-conflito, como os usados na Irlanda e na Colômbia – e também nas experiências dos EUA com a redução da violência das gangues. “Estávamos tentando convencer a Embaixada [dos EUA] de que só estávamos tentando fazer o que eles haviam feito sucesso em Los Angeles.” Não adiantou. Em El Salvador, onde os EUA têm sido há gerações a influência estrangeira mais importante, a mensagem repercutiu como uma determinação: a única maneira aceitável de definir e abordar a questão das quadrilhas é através de medidas punitivas.

Uma nova oportunidade para as segundas oportunidades

Embora tenha sido algo pouco notado na época, as agências federais dos EUA não estavam unificadas por trás da designação do Departamento do Tesouro e da abordagem linha-dura. Em uma entrevista em 2014, Roig não falou nada, dizendo apenas que a USAID não trabalhava com pessoas que estivessem tentando deixar as gangues, e que a designação de 2012 “certamente coloca limitações no que a USAID pode fazer com a MS”.

Porém, em uma recente entrevista ao Intercept, Roig, agora diretor da Creative Associates International, empresa de ajuda humanitária sediada em Washington, disse que, nos bastidores, ele e outros estavam trabalhando para educar seus pares sobre a prevenção da violência terciária. Em 2012, a USAID levou líderes municipais de Los Angeles à região para compartilhar as melhores práticas do programa de redução da violência das gangues da cidade, que incluía o trabalho terciário. Então veio a designação do Departamento do Tesouro, o que, conforme Roig, dificultou que se colocassem em prática as lições de Los Angeles.

As linhas de falha de resistência não ocorreram pela agência, disse Roig, mas pelos indivíduos. Em reuniões interinstitucionais que incluíam a USAID, o FBI, a Imigração e outros, “algumas pessoas diziam: ‘A gente nunca pode trabalhar com esses garotos, eles são criminosos’. Outras diziam: ‘Ah, sim, esses grandes programas de prevenção, devemos fazer mais para apoiá-los’. Minha experiência foi de que dependia muito das pessoas”.

Durante anos após a designação do Departamento do Tesouro, a USAID ajudou a organizar uma série de conferências e eventos de alto nível sobre prevenção da violência, incluindo o trabalho terciário, nos EUA e na América Central. “Começamos a escrever a respeito em todos os documentos de estratégia. Quando fazíamos briefings no Congresso, falávamos a respeito”, contou ele. Isso “ajudou a sensibilizar os formuladores de políticas dentro do Estado e da AID” e introduziu na “consciência burocrática que essa era a direção que queríamos mudar”.

Essa análise permaneceu marginalizada até 2015, quando milhares de crianças da América Central que fugiam da violência apareceram na fronteira sul dos EUA. Diante das crianças, o governo Obama investigou as causas da emigração. Nos três países, encontrou corrupção sistêmica. Na Guatemala, havia conflitos por recursos naturais que às vezes eram alimentados por medicamentos e frequentemente afetavam desproporcionalmente os povos nativos. Em Honduras e El Salvador, o que se destacou foi a violência de narcotraficantes e gangues. A investigação do governo norte-americano levou a uma nova abertura para a prevenção terciária – um movimento chocante em El Salvador. Jones, da Catholic Relief Services, lembrou-se de pensar na época que os visitantes do Departamento de Estado “estão muito abertos no momento. (…) Estão explorando seriamente o que podemos financiar que vá funcionar”.

Em 2016, o INL financiou o cientista político da Universidade Internacional da Flórida José Miguel Cruz para conduzir um estudo de como e por que os membros escolhem deixar as gangues ou ficar nelas. O estudo dele descobriu que 68,6% dos atuais membros das gangues de El Salvador tinham intenção de sair. E embora 16,7% dissessem que jamais sairiam, a grande maioria – 81,5% – dizia conhecer alguém que havia “se acalmado” ou se tornado inativo em sua gangue. “Acalmar-se”, mais comum do que sair por completo, é uma forma dos membros preservarem sua identidade de gangue sem mais contribuir para a violência e o crime.

Cruz descobriu que os que conseguem deixar suas gangues enfrentam dificuldades intermináveis, inclusive cruzar com inimigos antigos, dificuldades para encontrar trabalho, abandono da família e assédio policial. Empregadores que, como a League Central America, conhecem e aceitam o passado dos funcionários e estão dispostos a apoiá-los por meio de lutas prolongadas ligadas a suas vidas antigas são vitais para impedir que ex-membros voltem às gangues novamente, informou o estudo ao INL. Naquele mesmo ano, um metaestudo de estratégias de prevenção da violência em todo o mundo, encomendado pela USAID, recomendou intervenções focadas com infratores violentos e descobriu que estratégias “agressivas de ‘tolerância zero’ (…) podem criar tensão na comunidade e minar a eficácia coletiva”.

Em fevereiro de 2017, o Departamento do Tesouro concedeu uma isenção, chamada de licença OFAC, ao Departamento de Estado e à USAID. A licença permite que as agências façam determinados trabalhos com ex-membros ou membros não ativos da MS-13. As dispensas expiram no final deste ano, e as agências federais estão se preparando para buscar a renovação.

A licença também cobre outras organizações, como a League e a Catholic Relief Services, que realizam os projetos financiados em parte por agências federais dos EUA. Embora as ONGs sejam livres para solicitar diretamente uma licença, Jones disse que a Catholic Relief Services fez a solicitação, que foi negada, e não recebeu explicação alguma. Um porta-voz do Departamento do Tesouro disse que a agência não comenta as licenças individuais. (A USAID e o INL encaminharam todos os pedidos de comentários para esta matéria ao Tesouro.)

Uma preocupação significativa é a de que, com alguns projetos cobertos pela licença OFAC, as organizações locais precisam entregar as identidades das pessoas que participam dos programas de prevenção da violência a um grupo de trabalho da Embaixada dos EUA – composto por pessoas da Administração de Repressão às Drogas, do FBI, do Departamento de Segurança Interna, o Departamento de Defesa e outros – para avaliação. Os participantes se preocupam com o fato de que a exigência levará ao aumento da vigilância e do abuso por parte das autoridades, sejam eles funcionários de imigração dos EUA ou agentes da lei salvadorenhos. Várias ONGs submeteram formalmente sua resistência à estipulação, que aparece em um futuro projeto da USAID em Honduras, e estão aguardando a resposta do governo.

O projeto de Honduras oferece uma janela para mudanças no pensamento do governo federal sobre o trabalho terciário. Em fevereiro, a USAID convidou organizações a solicitarem financiamento para realizar um programa para reduzir a reincidência entre jovens violentos. O projeto de US$ 8 milhões, a ser implementado nos cinco municípios mais violentos de Honduras, é chamado de “Melhoria da prevenção da violência terciária”. Com o projeto, a USAID diz que está complementando o trabalho das agências penitenciárias estaduais de Honduras que estão “buscando transformar o sistema de justiça juvenil” em “um modelo moderno, de reabilitação e justiça restaurativa” e observa que a agência está investindo agora em múltiplos projetos de prevenção terciária em Honduras.

Rosa Anaya, da Catholic Relief Services, coordena o programa “Segundas Oportunidades” dentro das prisões em El Salvador.

Rosa Anaya, da Catholic Relief Services, coordena o programa “Segundas Oportunidades” dentro das prisões em El Salvador.

Foto: Salvador Meléndez

Em El Salvador, a Catholic Relief Services e a League estão usando fundos americanos para um programa chamado “Segundas Oportunidades”, que busca criar um canal da prisão para o emprego, incluindo treinamento profissional para detentos, terapia cognitivo-comportamental e oficinas focadas em temas como “masculinidades”, o estudo de ideias distorcidas de masculinidade, traumas de infância e violência – ou, segundo Jones, “de onde tudo veio em primeiro lugar”. A ideia é enviar uma mensagem: “Você tem uma escolha. Isto não é normal. Você pode mudar”, disse ele. O estudo de 2016 da USAID destacou a terapia cognitivo-comportamental, particularmente os programas focados em “tornar-se um homem”, como a estratégia mais eficaz de prevenção da violência.

A Catholic Relief Services e a League também recrutaram outras ONGs e os sistemas nacionais de justiça e prisão salvadorenhos para se unirem à Segundas Oportunidades. A ampla adesão é importante, porque a raiz da violência das gangues não é o fracasso individual, mas as injustiças sistêmicas que devem ser corrigidas na sociedade, disse Rosa Anaya, chefe do grupo da Segundas Oportunidades da Catholic Relief Services. “Nenhum juiz, instituição governamental, empresa, família ou indivíduo será capaz de superar sozinho o grande desastre em que nos encontramos.”

E nem um pouco cedo demais: “Nos próximos cinco anos, 12 mil pessoas terão cumprido suas sentenças. O que elas farão?”, perguntou Jones. “Esses programas são fundamentais para reduzir a reincidência.”

Em outubro do ano passado, entramos em uma prisão perto de San Salvador, chamada Apanteos, juntamente com uma importante delegação de ONGs, empresários locais e dois representantes do INL. Pintado de amarelo claro, com as palavras “Yo cambio”, ou “Eu posso mudar”, no portão e em muitas das paredes internas, Apanteos foi enfeitada para uma festa de formatura da Segundas Oportunidades. Fomos levados em excursão pelas cozinhas da prisão, onde os detentos treinam como cozinheiros; os galinheiros, onde um adolescente preso exibiu fileiras de ovos aos visitantes; e tanques onde cultivavam tilápia. Era um dia de visita, e o pátio comum estava cheio de famílias.

Jornalistas, representantes dos governos dos EUA e de El Salvador e líderes empresariais locais fazem um tour por uma pequena granja que é administrada pelos detentos dentro da prisão de Apanteos, em Santa Ana, El Salvador.

Jornalistas, representantes dos governos dos EUA e de El Salvador e líderes empresariais locais fazem um tour por uma pequena granja que é administrada pelos detentos dentro da prisão de Apanteos, em Santa Ana, El Salvador.

Foto: Salvador Meléndez

Ao longo do ano passado, a Segundas Oportunidades treinou 811 pessoas, incluindo presos e ex-presos e funcionários do sistema judiciário e do setor privado. Entre outros fatores, a Catholic Relief Services mediu as mudanças positivas de atitude dos presos participantes. “Ter evidências de uma mudança confiável e uma rede de apoio confiável por trás delas ajuda as empresas a sentirem que podem empregar essas pessoas”, disse Anaya. Dos 21 participantes da Segundas Oportunidades que concluíram o programa e foram libertados, 18 conseguiram encontrar emprego.

A proibição do Departamento do Tesouro de usar o dinheiro dos EUA para se envolver com a MS-13 ainda está em vigor. Mas nenhuma das organizações que compõem a Segundas Oportunidades está violando nada, porque são cobertas pela renúncia do OFAC. Sem a dispensa, esse trabalho seria uma violação da lei federal dos EUA.

Mensagens confusas

O INL agora celebra publicamente o trabalho terciário que financia. Em um discurso na League Central America em abril de 2017 sobre a Segundas Oportunidades, Glenn Tosten, então diretor da seção do INL na Embaixada dos EUA em San Salvador, disse que ver as primeiras pessoas passarem pela Segundas Oportunidades “mudou minha maneira de ver os desafios de segurança em El Salvador”. E continuou: “Devo admitir que no começo me senti cético. Achava que não havia outra opção… que os jovens que se juntavam a gangues em El Salvador estivessem perdidos para sempre”. Mas o programa “me convenceu de que, de fato, há outro caminho. Existem um processo e um sistema de apoio que realmente podem transformar a vida das pessoas”.

Essa mensagem ainda é uma voz minoritária no governo dos EUA. Principalmente, o foco está em ajudar e treinar a polícia salvadorenha – apesar de um registro bem documentado de extorsões, abusos e execuções extrajudiciais.

Ao final de seu turno na League, Oswaldo ainda precisava voltar às ruas de uma sociedade que acredita que membros de gangues saem “apenas mortos”. Ele tinha muito medo da polícia. Um de seus maiores temores, ele disse, é que os policiais o parem no dia do pagamento, vejam o dinheiro que tem no bolso, “e digam que é [dinheiro de] extorsão. E então me matem”. Sua mulher ainda não havia retornado com o filho. Ela dizia temer chamar a atenção da polícia através de sua associação com ele.

A imprensa salvadorenha descobriu vários casos de tortura e assassinato extrajudicial de suspeitos de membros de gangues pela polícia e por soldados. Jovens de comunidades pobres enfrentam assédio constante das autoridades. Muitas vezes, são levados em custódia sem motivo, e frequentemente têm drogas ou “dinheiro de extorsão” plantados neles. Às vezes, os policiais estão trabalhando para uma gangue rival, mas, muitas vezes, são apenas corruptos. O abuso de autoridade é tão grave, que recentemente o ministro da segurança admitiu que a violência estatal contribui para a crise dos refugiados no país.

As agências federais dos EUA continuam apoiando a polícia salvadorenha em uma tentativa de profissionalizá-la, dizem, mas o auxílio é direcionado inclusive para unidades implicadas em violações graves e sistemáticas dos direitos humanos. Os Departamentos de Estado, Defesa, Justiça e Segurança Interna relataram uma ampla gama de doações e treinamento para a polícia civil nacional de El Salvador em 2015 e 2016, de acordo com dados divulgados ao Congresso e compartilhados com o Intercept por John Lindsay-Poland, especialista em América Latina americano que participou da solicitação. As doações e o treinamento vão de combate ao cibercrime e ao narcotráfico, passando por administração de polígrafos, “técnicas de detenção e autodefesa” e “tratamento de cães”. Os treinamentos também envolvem cursos de coletas de informações e inteligência e de operações especiais de comando. As doações incluem itens como caminhonetes, computadores, câmeras, beliches e coletes à prova de balas.

O Departamento de Estado também informou que doou câmeras fotográficas e forneceu outras formas de assistência ao departamento interno da polícia nacional que investiga denúncias de abuso policial. No entanto, um estudo recente do gabinete de responsabilidade do governo descobriu que, de modo geral, o Estado e outros departamentos não estão implementando sistematicamente os direitos humanos em seus treinamentos em El Salvador e outros países da América Central. Roig, o ex-funcionário da USAID, diz que o fato de que a ajuda chega às unidades envolvidas em abusos sistêmicos “não é nada positivo” e representa um obstáculo para a prevenção efetiva da violência. “É mais difícil fazer o trabalho de prevenção e policiamento comunitário quando se tem uma desconfiança geral da polícia e dos abusos dos direitos humanos”, disse ele.

Outro lugar em que os EUA apoiaram fortemente um sistema repleto de abusos de direitos foi o sistema prisional de El Salvador. Um regime de leis especiais conhecido como “medidas extraordinárias” restringe o acesso de supostos membros de gangues a necessidades básicas, como comida, água e comunicações com o mundo exterior. Com “medidas extraordinárias”, as mortes de detentos dobraram, em grande parte devido a surtos de doenças como a tuberculose, de acordo com um relatório da ONU de junho de 2018.

A ONU e a Cruz Vermelha chamaram as “medidas extraordinárias” de violação dos direitos humanos e instaram o governo salvadorenho a revogá-las. A atual administração do presidente Salvador Sánchez Cerén afirmou que tal clamor é baseado em falsidades, e consagrou com sucesso a política, originalmente temporária, em lei – o que é apoiado pela embaixada dos EUA. Em abril de 2018, quando as medidas foram renovadas, a embaixadora dos EUA, Jean Manes, encorajou os congressistas salvadorenhos a votarem afirmativamente, dizendo em uma entrevista na televisão que “falamos sobre medidas extraordinárias, mas essas são medidas normais”. Então brincou: “Se os líderes da gangue não gostam disso, então eu gosto”.

Ao forçar políticas como essas, os EUA estão alimentando a violência de um lado, enquanto tentam resolvê-la de outro por meio da prevenção terciária.

O comissário Hugo Ramirez, subdiretor de segurança pública da polícia civil nacional de El Salvador, deseja que isso mude. “Acontece que quanto mais músculos desenvolvemos, mais efeitos indesejáveis vimos”, disse ele ao Intercept. Ramirez viajou pelos Estados Unidos para estudar iniciativas de policiamento comunitário e prevenção da violência terciária. Sua opinião não é comum entre a polícia salvadorenha, mas ele agora argumenta que, “definitivamente, se não prosseguirmos com um foco de prevenção terciária, não será possível. É uma dívida que temos com este país”.

“Os EUA apoiarem isso é fundamental”, acrescentou.

Currier e Mackey relataram essa história como bolsistas de reportagem da Adelante Latin America com a Fundação Internacional de Mídia Feminina. A reportagem de Mackey também foi possível graças a uma doação do Fundo para Jornalismo Investigativo e uma bolsa com o Instituto Schuster de Jornalismo Investigativo, com o apoio da Fundação Ford.

Foto do Título: Um grupo de internos da prisão de San Vicente comemora a conclusão do programa “Segundas Oportunidades”.

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