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Jair Bolsonaro estudou sobre trabalho escravo. Ou, ao menos, foi o que ele disse ao historiador Marco Antonio Villa na manhã seguinte ao primeiro turno da eleição, em entrevista na Jovem Pan.
Se estudou mesmo, parece não ter aprendido nada. Em um minuto e vinte segundos falando sobre o tema, o candidato conseguiu cometer uma série de erros sobre o assunto.
O maior deles foi ao exemplificar o que seria o trabalho escravo.
“Marco, me permite dar um exemplo? Eu fui estudar, são 180 itens. Por exemplo, na sua propriedade tem uma senhora de trinta anos, que está com máscaras, luva, roupa e bota, e está pulverizando uma plantação de alface para combater pulgão. Chega o Ministério Público do Trabalho, faz um teste de gravidez dela, e nem ela sabia que tava grávida. Vai que tá grávida? Então, em cima do ativismo judicial, [fazem um] processo para expropriar o imóvel. Isso não pode continuar acontecendo.”
Bolsonaro não sabe que o Código Penal prevê quatro situações que podem caracterizar o trabalho escravo, e não 180. E o seu exemplo, hipotético, não tem nada a ver com a definição do crime.
Bolsonaro não sabe que o Ministério Público não pode fazer testes de gravidez, muito menos o empregador.
Bolsonaro não sabe a quem cabe a fiscalização. Não é função do Ministério Público do Trabalho, mas do Ministério do Trabalho.
E o exemplo que ele deu não tem nada a ver com a definição de trabalho escravo contemporâneo.
“Isso aqui em nenhum lugar do mundo é trabalho escravo”, resume o procurador Ulisses Dias de Carvalho, vice-coordenador da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. Para ele, um caso desses até poderia se tratar de uma grave infração trabalhista, mas não de trabalho escravo.
Os critérios para definir o que é o trabalho análogo à escravidão são claros, e todos os relatórios onde ela é encontrada são públicos e podem ser obtidos através da lei de acesso à informação.
Como a escravidão realmente é
Na semana passada, o fazendeiro Cyro Pires Xavier, do interior do Mato Grosso, próximo à família do ministro da Agricultura, Blairo Maggi, foi condenado por trabalho escravo. Ele é reincidente. Desta vez, entre os 23 trabalhadores que viviam em uma situação análoga à escravidão em sua fazenda, havia uma grávida.
Sem nenhum equipamento de proteção, a trabalhadora manuseava as roupas de seu companheiro que eram utilizadas para a aplicacação do agrotóxicos. E seu filho, de dois anos, convivia ao lado de várias bombas e embalagens de veneno sem qualquer isolamento.
Ela trabalhava sem um banheiro adequado ou água potável. A geladeira não funcionava durante todo o dia. O lixo era enterrado ao lado da sua casa, “tornando o ambiente absolutamente insuportável”. Próximo do local, ela era obrigada a defecar em uma fossa coberta com folhas de bananeira.
“À noite, em razão da distância ao ‘banheiro’ externo, a trabalhadora grávida tinha que fazer suas necessidades no ’chuveiro’, também sem cobertura e improvisado. No alojamento masculino não havia forro no teto. Também não era fornecido material de limpeza e tampouco papel higiênico”, descreveu o juiz, em decisão que partiu de ação do Ministério Público do Trabalho.
A situação dela se soma a diversos outros problemas encontrados nos relatos dos outros 22 trabalhadores que, em conjunto, ajudam a sustentar a conclusão dos auditores.
“Não é uma simples irregularidade que caracteriza trabalho escravo, mas todo um contexto de ações e omissões do empregador em garantir uma condição mínima de trabalho”, diz Maurício Krepsky, auditor fiscal que comanda a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho.
Com a decisão do Mato Grosso, a justiça ficou perto de, pela primeira vez, cumprir o que prevê a PEC 81: a desapropriação de terras cujos donos sejam condenados por trabalho escravo. E foi exatamente isso que Jair Bolsonaro prometeu combater nesta manhã.
Ninguém perde terras por trabalho escravo
Na entrevista, o candidato começou seu disparate falando do “ativismo judicial”, ou seja, a perseguição de “fiscais e do MST” ao produtor rural no país. Depois, criticou a emenda constitucional 81, que prevê a expropriação de propriedades rurais e urbanas onde for encontrado o trabalho escravo.
A chamada PEC do Trabalho Escravo foi fruto de uma grande mobilização da sociedade civil. Demorou anos para tramitar na Câmara, devido à forte resistência da bancada ruralista, e finalmente foi aprovada em 2014. Ironicamente, contou com o voto de Bolsonaro em sua aprovação no Plenário no primeiro turno, em 2004. Na segunda votação sobre o tema, em 2012, ele se absteve.
Pena nunca é cumprida.
Para mostrar sua indignação, fingiu que seu interlocutor é um fazendeiro escravagaista. “Não pode o Marco Antônio Villa, com 90 anos de idade, praticar o trabalho escravo, e você punir sua esposa, seus filhos e seus netos [com a expropriação das terras].”
Recorrendo a uma ideia torta sobre herança, Bolsonaro não explicou que, com a emenda, não seria punida a família do historiador Villa, mas somente o próprio fazendeiro. E que essa não é a principal punição ao trabalho escravo – mas, sim, a pena de dois a quatro anos de prisão prevista no Código Penal, que quase nunca é cumprida.
Também não lembrou que a emenda, até hoje, não resultou em nenhuma desapropriação. Graças à resistência da bancada ruralista – que já anunciou apoio a Bolsonaro –, ela nunca foi regulamentada.
‘Vamos discutir, mas não dessa forma’
O candidato arrematou seu monólogo afirmando que “em cima do ativismo judicial, muitos entendem que o trabalho análogo à escravidão é trabalho escravo, e partem para a expropriação de imóveis.” Mais uma vez, o candidato demonstra não entender do assunto.
O crime previsto no Código Penal é de redução de alguém à “condição análoga à de escravo”. Por que “análoga”? Porque desde 13 de maio de 1888, o Estado não permite a propriedade de uma pessoa por outra, que era a base da escravidão colonial e imperial.
O crime, portanto, é de uma condição semelhante à condição de escravo, que foi abolida com a Lei Áurea. Isso é uma questão formal. Mas o fenômeno tem vários nomes: trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, formas contemporâneas de escravidão, usadas aqui no Brasil, nas Nações Unidas e por governos em todo o mundo.
Bolsonaro falou tudo isso sem ser questionado pelos jornalistas que o entrevistaram. Não sei se por ignorância ou por conivência, não houve réplica e tréplica, e ele falou como se estivesse em suas lives no Facebook.
As únicas interrupções foram feitas por Villa no seguinte diálogo:
Bolsonaro: Vamos punir o trabalho escravo.
Villa: Sim, sim.
Bolsonaro: Mas não dessa forma proposta.
Villa: Claro.
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