No fim de uma noite de maio de 2009, Shannon Mouillesseaux, uma americana que trabalhava para a Agência de Refugiados das Nações Unidas, acordou com um estrondo em seu quarto de hotel no Sri Lanka. Um bando de homens com capuzes e máscaras, usando uniformes militares, derrubou sua porta a pontapés, jogou-a no chão, e começou a agredi-la física e sexualmente de forma tão brutal que ela temeu por sua vida.
Treinada para auxiliar populações em crise, ela sabia o que deveria ser feito na sequência de um episódio de agressão sexual, mas aparentemente seus supervisores nas Nações Unidas não sabiam.
Mouillesseaux recentemente contou sua história em uma entrevista para o programa “The World”, da Public Radio International, PRI, a rede pública de rádio dos EUA. Ela disse que a ONU ofereceu muito pouco apoio na sequência do ataque e levou sete horas para mandar um motorista ao encontro dela em resposta às suas chamadas desesperadas. Depois disso, ela precisou enfrentar sozinha uma série de exames médicos invasivos e interrogatórios policiais. O escritório de segurança da ONU não investigou adequadamente a cena do crime, o que prejudicou a possibilidade de processar seus agressores. Posteriormente, a ONU negou cobertura aos custos médicos decorrentes dos efeitos de longo prazo do ataque. Por fim, depois de várias trocas de contratos de curto prazo e de receber uma oferta para ocupar uma vaga em local difícil, ela chegou à conclusão de que era melhor sair da agência de refugiados (também conhecida como ACNUR).
A experiência de Mouillesseaux com a ONU não é um caso isolado. A despeito de seu encargo de proteger os direitos humanos globais, a ONU tem um sério problema com agressões sexuais, que não parece prestes a melhorar apesar da divulgação de diversas histórias como a da norte-americana e das abundantes críticas que a entidade recebe. Com um faturamento anual da ordem de 50 bilhões de dólares, e uma força de trabalho de mais de cem mil pessoas, a ONU negligencia e eventualmente até pune vítimas de agressão sexual, segundo atuais empregados, ex-empregados e especialistas entrevistados para esta matéria. Um relatório do jornal The Guardian de janeiro documentou extensamente esse padrão, mostrando que trabalhadoras na ONU foram ignoradas ou demitidas depois de reportar assédio sexual, agressão e estupro, enquanto os agressores de dentro da organização continuam a agir com impunidade.
Uma análise conduzida por The Intercept revelou que a ONU não puniu nenhum membro do Secretariado por agressão sexual ou abuso contra colegas ao longo de mais de uma década, entre 2006 e 2017.
Uma análise conduzida por The Intercept sobre as medidas disciplinares tomadas contra funcionários da área de Secretariado – aproximadamente 40 mil pessoas, fora as tropas de paz – revelou que a ONU não puniu nenhum desses trabalhadores por agressão sexual ou abuso contra colegas ao longo de mais de uma década, entre 2006 e 2017. “A ONU se descreve como uma entidade que abre caminho para a igualdade de gênero e para um mundo sem violência sexual e de gênero, mas isso é só uma face da moeda”, contou Mouillesseaux a The Intercept. “Na outra, você encontra assédio sexual, abuso de beneficiários e negligência direta e intencional contra as pessoas que sofreram abuso dentro da organização ou a serviço dela”.
Sarah Martin, consultora de violência de gênero que já trabalhou para agências da ONU e ONGs por cerca de vinte anos, disse que retaliação e estigmatização contra sobreviventes é algo comum. “Existem regras tácitas para preservar o silêncio e manter as coisas dentro da família”, disse Martin, comparando esse aspecto da cultura da ONU com as Forças Armadas dos EUA. “Infelizmente, acho que o militares talvez tenham avançado mais do que a ONU nesse aspecto”, acrescentou.
Todas as informações disponíveis dão a entender que a ONU não mantém nem compartilha estatísticas sobre funcionárias que tenham sofrido agressão sexual, mas os especialistas consideram que o âmbito do problema pode ser extenso. “Aonde quer que você vá [dentro da ONU], encontrará um sistema patriarcal que não se parece em nada com o mundo que a ONU alega estar buscando”, diz Paula Donovan, ex-funcionária da ONU e uma das diretoras da campanha Code Blue, que luta pelo fim das agressões sexuais na ONU. Donovan e outras pessoas apontam para os numerosos dados sobre agressão sexual disseminada e exploração pelas Forças de Paz da ONU como indício de uma cultura de abuso difundido e silenciamento de sobreviventes.
Ano passado, a Associated Press (AP) investigou cerca de 2 mil casos de agressão sexual por Forças de Paz da ONU entre 2004 e 2012, e descobriu que muito poucos agressores foram presos. Em uma declaração a The Intercept, um porta-voz da ONU disse que a organização criou uma nova força-tarefa e está atuando para educar populações locais sobre o risco de abuso, fortalecer mecanismos de denúncia e acabar com a impunidade. Para os críticos, a ONU já tomou medidas semelhantes no passado e não obteve maiores resultados.
Ao mesmo tempo, no entanto, a ONU mal reconhece os episódios de agressão sexual contra seu quadro de funcionários. “A ONU tenta diferenciar assédio sexual (praticado por pessoal da ONU contra outras pessoas do quadro de funcionários) de abuso sexual (praticado contra populações). Não vemos essa distinção”, diz Donovan. “É apenas um espectro contínuo do assédio sexual até o tráfico sexual. A cultura institucional da ONU é permissiva em relação a esses comportamentos, e os acoberta”.
Embora aparentemente a ONU não mantenha estatísticas regulares e atualizadas sobre agressão sexual a funcionárias, ao longo dos anos foram produzidos vários estudos de menor escala que apontam para a mesma conclusão: o problema é endêmico, e a ONU maltrata as sobreviventes.
Um relatório de 2013 da ACNUR concluiu que 45% do seu quadro de pessoal já tinha sobrevivido a um incidente que colocara suas vidas em risco durante o trabalho, sendo que uma parcela significativa provavelmente envolvia agressões sexuais. Sobreviventes desse tipo de agressão contam que foram estigmatizadas pela ACNUR e tiveram sua confidencialidade quebrada, e o relatório descobriu que o suporte dado a elas pela ONU foi “inadequado” e deu a entender que a agência “sabe o que fazer quando uma refugiada sofre agressão sexual, mas não quando se trata de alguém do quadro de funcionários”. Um estudo interno da ACNUR de 2015 descobriu que apenas 3 em cada 10 mulheres e 4 em cada 10 homens concordavam que “na maior parte do tempo é seguro manifestar-se livremente na ACNUR”. (Um representante da ACNUR deu uma declaração de que a organização planeja atualizar seu relatório sobre incidentes que colocam vidas em risco. Um porta-voz da ONU declarou que o Secretariado da organização também está preparando uma pesquisa para quantificar o assédio sexual na ONU, embora não tenha mencionado agressão sexual.)
Vários ex-funcionários da ONU que conversaram com The Intercept disseram que as consequências por reportar assédio e agressão sexuais poderiam variar de culpabilização e ridicularização até o recebimento de avaliações de desempenho ruins, redução de oportunidades para continuar empregados, e inclusive demissão.
“Há uma mentalidade de cowboy. Você é vista como fraca e incapaz de desempenhar seu papel se, depois de sofrer um ataque, não conseguir voltar [ao trabalho] no dia seguinte.”
“Há uma mentalidade de cowboy”, disse Mouillesseaux. “Você é vista como fraca e incapaz de desempenhar seu papel se, depois de sofrer um ataque, não conseguir voltar [ao trabalho] no dia seguinte.”
“Tive que brigar por um contrato temporário em Genebra, que uma amiga e colega me ajudou a conseguir”, disse ela. “Nem todo mundo tem essa sorte. Muitas sofrem o término dos contratos sem qualquer apoio.”
Rosalia Gitau, co-fundadora da Rede Humanitária de Mulheres e ex-funcionária da ONU, acrescentou que trabalhadoras de cor podem enfrentar ainda mais discriminação no local de trabalho, e é necessário conduzir mais pesquisas sobre “como a interseccionalidade pode aumentar os desafios” para trabalhadoras humanitárias que reportem abusos. Uma funcionária negra das Forças de Paz da ONU afirmou que suspeitava estar sendo discriminada pelos gerentes de recrutamento depois de reportar uma agressão sexual. (Por ainda estar empregada, ela pediu para não ser identificada). Ela disse que sua única alternativa para continuar empregada na sequência de seu ataque foi assumir uma função em lugar difícil, e, embora tenha procurado ajuda de colegas seniores e de recursos internos para empregados da ONU, ninguém pôde ou quis ajudá-la. Em seu novo posto de trabalho, ela vivenciou flashbacks graves, depressão e insônia. “A lição que tirei disso é não me envolver em problemas”, disse ela. “É um sistema muito cruel”.
Em resposta a uma pergunta sobre a forma como a ONU lida com agressões sexuais contra pessoas do seu quadro de funcionários, o porta-voz da ONU declarou que o Secretário-Geral, Antonio Guterres, criou uma força-tarefa sobre assédio sexual e estabeleceu uma política de tolerância zero. Além disso, a ONU criou um grupo de trabalho sobre assédio sexual e, em fevereiro de 2018, lançou um serviço telefônico de apoio para as vítimas. A ONU não falou de agressão sexual em nenhuma de suas respostas.
No caso de Mouillesseaux em particular, a ONU declarou que “a forma como se lidou com a situação à época não foi plenamente satisfatória e ela não encontrou o nível adequado de apoio”. Eles também reconheceram suas contribuições para melhorar a resposta da ONU às agressões sexuais: Mouillesseaux criou um grupo de apoio de sobreviventes e foi coautora do primeiro protocolo amplo da ACNUR em casos de agressão sexual. Ela contou que a ACNUR nunca apresentou um pedido formal de desculpas a ela por ter lidado mal com sua terrível experiência.
Um obstáculo crítico à busca de justiça em casos de abuso sexual é a imunidade diplomática da ONU, que, para os críticos, permite à ONU – e aos agressores dentro da organização – atuar praticamente impune.
Desde sua fundação, a ONU opera fora das jurisdições locais de quaisquer países. Uma convenção de 1946, com o intuito de proteger os funcionários da organização de sistemas judiciários caprichosos ou corruptos, dispõe que a ONU “proverá meios adequados para resolução de […] conflitos”, o que se traduziu em um sistema judiciário interno à organização. Esse sistema é o único a que as sobreviventes podem recorrer caso sofram agressão por um funcionário da ONU, retaliação por um agente da ONU por reportarem agressões, ou mesmo agressão por um agente externo, nos casos em que as autoridades locais não tomem as medidas cabíveis.
“Venho litigando contra a ONU há 23 anos, e a estrutura é sistemicamente corrupta”, afirma Edward Flaherty, um advogado que já representou delatores, sobreviventes de assédio sexual e outros funcionários da organização. “Eles na ONU se dizem humanitários, mas passam bem longe disso quando se trata de seu próprio quadro de pessoal”.
“Eles na ONU se dizem humanitários, mas passam bem longe disso quando se trata de seu próprio quadro de pessoal.”
O porta-voz da ONU disse a The Intercept que o sistema de justiça mantém independência em relação ao restante da organização. A despeito disso, o sistema, constituído por inspetores, juízes e advogados contratados pela ONU, já proferiu várias decisões contra funcionários, incluindo delatores e sobreviventes de agressão sexual.
O Tribunal de Apelação da ONU decidiu de forma favorável à organização e contrária aos funcionários em aproximadamente 70% dos casos onde se alegavam diversos tipos de infrações entre 2009 e 2016, segundo um estudo feito pelo Projeto de Responsabilidade Governamental (Government Accountability Project, GAP). “Isso claramente mostra um viés”, disse Bea Edwards, analista de políticas do grupo. Entre 2006 e 2014, o Escritório de Ética das Nações Unidas revisou 140 acusações de retaliação e só decidiu plenamente em favor dos empregados em 4 casos, de acordo com o GAP.
Num dos casos mais longos da história do tribunal da ONU, a organização está tentando afastar a acusação de que teria demitido indevidamente uma ex-investigadora da ACNUR, Caroline Hunt-Matthes, por reportar que funcionários de alto escalão teriam obstruído uma investigação sobre estupro e assédio. Depois de uma decisão inicialmente favorável à ex-funcionária, o Tribunal de Apelação da ONU reverteu o julgamento por uma questão meramente técnica em 2014. Caroline ainda aguarda um novo julgamento quase 14 anos depois de sua demissão.
Em janeiro deste ano, uma funcionária subordinada acusou Luiz Loures, Secretário-Geral Assistente do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), de agressão sexual e assédio. Por deter imunidade diplomática absoluta, Loures está isento de investigação criminal. Em vez disso, as acusações foram investigadas pelo sistema judiciário interno da ONU, e, em fevereiro, um painel de investigadores da UNAIDS declarou que Loures estaria absolvido, tendo a decisão final cabido ao Diretor Executivo da agência, Michael Sidibé.
No entanto, a organização de Donovan, Code Blue, desqualificou o caso como tendo recebido “tratamento grosseiramente indevido”, e citou como exemplo o conflito de interesse de Sidibé ao atuar como testemunha e árbitro final do processo. A revista Foreign Policy também obteve recentemente documentos que mostravam que os investigadores encontraram inconsistências no depoimento de Loures, e que outras testemunhas corroboraram a narrativa de sua acusadora.
No final de fevereiro, Loures anunciou que estava deixando seu cargo. Ele afirma que essa decisão não estaria relacionada às acusações contra ele. Outras mulheres também vieram a público com alegações de assédio e agressão sexual por parte de Loures. As mulheres contaram ao jornal The Guardian que “não reportaram o ocorrido porque não confiavam no sistema de denúncias, ou porque também haviam sofrido assédio sexual nas mãos dos superiores hierárquicos a quem haviam recorrido em busca de apoio”.
Por todo o setor humanitário, colegas de trabalho e figuras de autoridade são em regra os agressores, não pessoas de fora, segundo Donnelly, que participa da área de pesquisas do Centro Internacional Feinstein. “Em muitos casos a pessoa a quem [a sobrevivente] deveria se reportar era o próprio agressor”, diz Donnelly. “Quase não tivemos notícia de pessoas que efetivamente teriam sido punidas”.
Uma análise de The Intercept das decisões disciplinares relativas aos membros do quadro de pessoal do Secretariado da ONU constatou que a organização não puniu nenhum funcionário da área por agressão sexual ou abuso contra colegas entre julho de 2006 e junho de 2017. A ONU puniu apenas doze empregados por assédio sexual durante esse período, sendo que nos últimos cinco anos foram apenas três.
The Intercept baseou sua análise na circular anual de informações sobre questões disciplinares da ONU, um documento acessível ao público que contém todas as punições aplicadas aos funcionários. Foram analisados 11 ciclos anuais, entre julho de 2006 e junho de 2017. O documento não lista o número de denúncias feitas em um determinado ano, nem quantas delas ainda estão sob investigação, ou quantas foram extintas ou solucionadas sem ação disciplinar, e essa falta de transparência dificulta ter um panorama dos mecanismos de reparação.
A ONU puniu apenas doze empregados por assédio sexual entre julho de 2006 e junho de 2017, sendo que nos últimos cinco anos foram apenas três.
Algumas das medidas disciplinares da ONU parecem excepcionalmente lenientes. Em 2007, um funcionário que assediou sexualmente uma colega recebeu apenas uma advertência escrita. Em 2008, outro funcionário foi demovido por ter relações sexuais com uma subordinada e tentar promovê-la. A punição mais dura identificada por The Intercept nos últimos anos para infrações sexuais foi “afastamento do serviço” com compensação financeira.
Flaherty considera que um mecanismo eficaz de reparação exigiria criar um sistema de justiça independente e acabar com a imunidade da ONU. O sistema de justiça da ONU “é simplesmente grotesco”, disse ele. “A imunidade atinge o âmago dos direitos humanos individuais e do devido processo legal”.
Outros ativistas concordam que os esforços recentes da ONU para limitar a retaliação e conter o assédio sexual não serão adequados para lidar com a violência sexual contra suas funcionárias. “A resposta da ONU para isso é ‘vamos criar um serviço telefônico de suporte’, como se isso fosse causar um resultado diferente. Isso é ultrajante”, disse Donovan, da Code Blue.
Donovan disse ainda que um juízo imparcial, independente do sistema da ONU, deveria investigar e adjudicar alegações de abuso, “seja uma acusação de assédio sexual ou uma delação apontando violência disseminada, ou qualquer caso entre esses extremos”. É necessária uma reforma da cultura e da liderança da ONU para que haja mudança, acrescentou Martin. “Nossa gestão corrupta não está dando mostras de boa liderança nesse tema. Eles não criaram um clima em que as pessoas possam vir a público e falar sobre isso honestamente”, disse ele. “Uma ampla mudança de cultura precisa acontecer”.
Tradução: Deborah Leão
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