Presidente Michel Temer participa de cerimônia em homenagem ao Dia do Exército, em 19 de abril de 2017.

Militares, os privilegiados que passarão incólumes pela reforma da Previdência

Apesar de um déficit que chega a R$ 127 mil por beneficiário, governo não tem prazo para encaminhar mudanças na aposentadoria da categoria.

Presidente Michel Temer participa de cerimônia em homenagem ao Dia do Exército, em 19 de abril de 2017.

Repetida à exaustão pelo governo, a principal bandeira da reforma da Previdência é o “fim dos privilégios”. Um belo discurso, que esbarra na prática em distorções que seguem intocáveis. A maior delas, como mostram números do próprio Ministério da Fazenda, veste farda. E está sendo deixada debaixo do tapete, com o aval de uma das maiores instituições de ensino do país: a Fundação Getúlio Vargas (FGV), autora de um texto institucional de apoio à manutenção do atual sistema de aposentadoria dos militares.

Publicado em novembro pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN), ligada à Fazenda, o relatório “Aspectos Fiscais da Seguridade Social no Brasil” revela que, em 2016, o déficit per capita anual (diferença entre o que se paga e o que se arrecada) dos militares reformados (em inatividade irrevogável) chegou a nada menos do que R$ 127,6 mil. No caso dos pensionistas militares, o quadro também não é muito diferente: R$ 99,2 mil. Para se ter uma ideia, no regime geral de previdência urbano, de quem trabalha na iniciativa privada, o déficit per capita foi de R$ 1,5 mil no mesmo período, de acordo com a STN.

Tabela de gastos com previdência

Reprodução

Até o déficit em números absolutos no regime dos militares é destacado pela STN, que considera haver um “descompasso muito grande” entre as receitas e as despesas, resultando num rombo próximo aos R$ 34 bilhões para um contingente de cerca de 299 mil reformados e pensionistas. No caso dos servidores públicos civis, por exemplo, de acordo com o relatório, o déficit foi de R$ 43,1 bilhões. No entanto, é preciso lembrar que esse índice é relativo a um grupo de  632,5 mil beneficiados, ou seja, pouco mais que duas vezes o contingente dos militares. No regime geral dos trabalhadores da iniciativa privada (urbano e rural), o déficit relatado pelo Tesouro foi de R$ 138,1 bilhões, para quase 34 milhões de pessoas.

Apesar de os números do próprio governo escancararem a distorção nos benefícios dos militares, o Ministério da Fazenda prefere não entrar no assunto. Afirma, em nota, que o tema deve ficar para outro momento:

A previdência dos militares é regulada em lei, e não pela Constituição. O que se está discutindo no Congresso é uma emenda à Constituição. O Governo Federal avaliou não ser oportuno inserir na Constituição matéria que não consta atualmente no texto e, em paralelo à proposição desta reforma constitucional, discute com o Ministério da Defesa a aplicação de regras similares aos militares, a ser proposta após à aprovação da PEC. Não será viável rever a regra dos militares se não houver a aprovação da PEC da Previdência”.

O discurso de jogar a discussão a perder de vista é reforçado pelo Ministério da Defesa. Em nota, em que ressalta que “o militar não se aposenta, ingressa na inatividade mantendo o vínculo com a profissão”, o órgão diz que está realizando estudos para aperfeiçoar o atual regime de benefícios, mas…

“Em função da complexidade desse trabalho e da possibilidade de alterações ao longo do mesmo, não há, ainda, um prazo definido para sua conclusão”.

Para o economista Marcelo Medeiros, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o governo “perdeu credibilidade” quando deixou determinados grupos de fora da reforma:

“Começou dizendo ‘vai todo mundo ser igual, idade mínima e tempo rigoroso de contribuição’, tentou apertar o cinto nos pobres, mulheres e empregados informais, mas logo em seguida afrouxou para os funcionários públicos estaduais, policiais e militares. Que cinto é esse?”

Como funciona a aposentadoria militar?

Pelas regras vigentes, o militar das Forças Armadas se torna inativo de duas formas: voluntariamente, depois de completar 30 anos de serviço; ou de forma involuntária, ao atingir a idade limite de permanência em seu cargo. Assim, ele passa a figurar no quadro da reserva, podendo ser convocado de volta à atividade em casos de urgência.

Os limites etários para um militar passar para a reserva variam de acordo com as patentes:

Tabela de cargos das Forças Armadas

Reprodução

Para passar ao status de reformado — quando não pode mais ser convocado —, também é necessário atingir uma “idade limite” de permanência na reserva que varia de acordo com o posto:

“Art 26. A idade limite de permanência na reserva é:

  1.        a) para Oficial-General, 68 anos; para Oficial Superior (inclusive membros do magistério militar), 64 anos; para Capitão, Capitão-Tenente e Oficial Subalterno, 60 anos;

  2.        b) para praças, 56 anos.

Ao passar para o quadro de inativos, o militar continua a receber o valor integral de seu soldo. Da mesma forma, após falecimento, seus herdeiros dividem uma pensão equivalente à integralidade do soldo.

Mais de R$ 25 mil a 658 pensionistas

O Ministério da Defesa trabalha com números discrepantes em relação aos considerados pela Fazenda. Para a pasta à qual as Forças Armadas estão subordinadas, em 2016, eram 156.328 inativos e 191.819 pensionistas. Entre esses últimos, 48% ganhavam mais de R$ 5 mil por mês, sendo que 658 deles recebiam mais de R$ 25 mil mensais.

Tabela de pensionistas das Forças Armadas

Reprodução

A grande maioria dos pensionistas (98%, aproximadamente, em cada força) é de mulheres. O economista e consultor legislativo do Senado Pedro Fernando Nery lembra que, embora o benefício de pensões vitalícias para filhas solteiras tenha sido parcialmente extinto em 2001, ele ainda existe para militares que estavam na ativa antes da mudança e que fizeram a opção por pagar uma contribuição adicional de 1,5%:

“É provável que a sociedade continue pagando por isso até o fim desse século, as projeções são para 2080 ou 2090.”

É aposentadoria ou não é?

Os militares são considerados pelo Tesouro como o maior déficit financeiro per capita dentre todos os regimes por dois motivos: de um lado, como para outros servidores públicos, o próprio governo tem papel equivalente ao que no regime geral seria a “empresa contratante”, responsável por parte da contribuição; de outro, a alíquota de 7,5% paga por cada militar (inclusive os inativos) é destinada apenas às pensões. O resultado é que o governo arca sozinho com todo o custo.

Assim, militares não contribuem para a Previdência porque são tecnicamente considerados à parte dela devido ao formato de “inatividade” da reserva, que pode ser revogada em caso de urgência.

No entanto, essa possibilidade de ser chamado de volta à ativa respeita uma idade limite que varia de acordo com o posto. Um Capitão-Tenente ou um Oficial Subalterno, por exemplo, passam da reserva para a reforma aos 60 anos.

Em nota, o Ministério da Defesa reforçou que “as despesas referentes aos militares inativos não são despesas previdenciárias; são consideradas como um Encargo Financeiro da União (entendimento ratificado pelo Tribunal de Contas da União)”.

O TCU coloca em xeque essa relativização em seu documento “Previdência Social no Brasil”, publicado em outubro:

“Na avaliação do Tribunal, o sistema de proteção social dos militares visa à cobertura dos mesmos riscos cobertos pelo RGPS (setor privado) e pelo RPPS (setor público) da União, com inter-relacionamento desses regimes, especialmente quanto à contagem recíproca de tempo de serviço. Diante disso, independentemente da forma de custeio, não há como contestar a natureza previdenciária dessas despesas.”

Apoio institucional da FGV

Independentemente de eventuais discussões de mudanças no regime que possam vir a vingar, os militares ganharam um apoio de peso, que vem sendo replicado nos sites da Marinha e do Exército para tentar sensibilizar a população sobre a importância da manutenção do atual sistema. Focado basicamente numa perspectiva da importância histórica das Forças Armadas, um estudo da Fundação Getúlio Vargas, elaborado a pedido do Ministério da Defesa, foi categórico:

“A conclusão central desse parecer é que as Forças Armadas não devem ser incluídas na PEC (da Previdência)”.

O estudo tem entre seus quatro autores o próprio presidente da FGV, Carlos Simonsen Leal, e, de acordo com a assessoria de imprensa da fundação, trata-se de uma posição institucional.

“A translação das regras da seguridade social de servidores públicos civis e de funcionários do setor privado para as Forças Armadas seria injustificável e ilógica e as impediria de cumprir o seu papel, certamente afetando o Estado no seu cerne”, diz outro trecho do documento.

O relatório não cita números de déficit no regime atual, trazendo apenas uma tabela que mostra que os países que possuem regimes separados para os militares são maioria no restante do mundo. Ainda segundo a assessoria, trata-se do único estudo feito pela FGV abordando o tema. No site do Exército, o documento virou até banner:

No meio da discussão da reforma, são poucos os que cutucam o vespeiro dos militares. Um dos raros exemplos é o da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), que na campanha “Dez mentiras da reforma da Previdência” destinou um capítulo para falar do privilégio dos integrantes das Forças Armadas:

Trecho de campanha da ANPR

Reprodução

Em nota, o Ministério da Defesa alega que há uma série de direitos que os militares não possuem, na comparação com os civis:

“Ao se falar em Reforma da Previdência, tendo como foco principal o equilíbrio das contas e o ajuste fiscal, este Ministério entende que, no que se refere aos militares das Forças Armadas, já ocorreu uma grande reforma com a edição da Medida Provisória 2.215-10/2001. Nessa ocasião, foram suprimidos diversos direitos dos militares (achatamento salarial), o que já resultou em uma economia acumulada que ultrapassa R$ 110 bilhões. Além dos direitos suprimidos, a legislação atual não permite aos militares das Forças Armadas, por exemplo, serem remunerados por horas extras, adicional noturno, adicional de periculosidade ou funções gratificadas, resultando em uma economia adicional, anual, para a União de aproximadamente R$ 21 bilhões”.

 

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